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Game changer: Sobre videogames, contrafação e governança digital

Como a indústria de jogos eletrônicos deu novos rumos ao combate da contrafação e os novos desafios que devem ser superados para o sucesso da governança digital de seus ativos imateriais.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Atualizado às 08:12

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Qualquer um dos leitores que andasse pela rua Uruguaiana, localizada na região central da cidade do Rio de Janeiro, durante o início da década de 2000, iria se deparar com um cenário absolutamente comum à época: uma vasta gama de comércios populares vendendo uma lista extensa de mídias contrafeitas de obras audiovisuais, fonográficas e jogos eletrônicos.

Esse fato cotidiano não era desconhecido da população carioca, das autoridades policiais responsáveis pela fiscalização local e muito menos das empresas titulares das obras originais ali vendidas de maneira desautorizada. O problema era que a forma de controle, fiscalização e responsabilização pelos atos de contrafação ali cometidos eram ineficazes diante do cenário concretizado, de modo que a sensação do combate aos atos ilícitos perpetrados era a de "enxugar gelo". Fechava-se um comércio ilegal, abriam-se outros cinco. A relação custo-benefício para os titulares de obras originais no combate a comercialização ilegal não era, portanto, razoável e interessante do ponto de vista econômico.

O cenário de "normalização" da contrafação era facilitado pelo fato de que o conteúdo era ainda disponibilizado, majoritariamente, por meio de mídias físicas. Era possível a disseminação de cópias não autorizadas em escala geométrica, já que os conteúdos ali vendidos eram facilmente reproduzidos e compartilhados pela tecnologia existente.

Esse cenário teve uma reviravolta com a disseminação dos chamados conteúdos digitais e as plataformas de streaming, em que a obra só pode ser acessada por meio de uma assinatura do serviço dos titulares dos conteúdos. Essa mudança tecnológica foi responsável pela mudança do paradigma do compartilhamento e da reprodução de obras audiovisuais, fonográficas e de jogos eletrônicos.

Não por outro motivo, diversas pesquisas e estudos ao redor do mundo apontam que o fornecimento dos conteúdos de maneira digital foi responsável diretamente pela redução do compartilhamento de obras não autorizadas¹.

A perspectiva deste texto irá voltar-se para a análise da indústria de jogos eletrônicos e sua criatividade no combate à disseminação de obras não autorizadas por meio de uma verdadeira governança digital de seus ativos imateriais, apontando os novos desafios a serem enfrentados nessa dinâmica.

As plataformas de jogos mais conhecidas no mercado (Playstation da Sony, Xbox da Microsoft e Nintendo) passaram a adotar um inteligente sistema de comercialização de softwares aplicados (jogos eletrônicos) por meio de seus próprios marketplaces. Para adquirir os jogos eletrônicos, os consumidores não necessitavam de mídias físicas bastando realizar o download dos softwares pelo próprio sistema, armazenando os dados no próprio hardware (console) pertencente ao usuário.

Essa nova dinâmica representou uma verdadeira revolução no segmento, permitindo às empresas de jogos eletrônicos um maior controle quanto à disseminação dos softwares aplicados ao sistema que comercializam. Para realizar o download, o usuário/consumidor tem de possuir uma conta registrada no marketplace da plataforma. Somente desta forma é possível ao usuário realizar a compra dos jogos eletrônicos que deseja usufruir, de modo que estes jogos comprados e baixados ao sistema podem ser acessados em sua biblioteca pessoal.

Para além da facilidade que tal medida impõe aos usuários, como o fato de não precisar se encaminhar a um estabelecimento ou mesmo de ter de esperar a entrega da mídia física, sob a perspectiva das empresas, tanto o uso, quanto a comercialização de softwares aplicados, passaram a ser controlados pelas plataformas, restringindo-se o compartilhamento desautorizado no mercado.

E isso pelo fato de que o usuário, mesmo que na maioria das vezes não saiba, submete-se a um regime contratual com as plataformas quando do registro de sua conta no marketplace dessas empresas. O conteúdo obrigacional assumido pelos usuários reflete-se em dois principais espectros: o primeiro relacionado à propriedade dos softwares aplicados (jogos) e o segundo à possibilidade de rompimento unilateral do contrato quando descumpridas as cláusulas desse acordo.

As plataformas retiram do usuário a propriedade quanto aos softwares aplicados ao sistema (jogos). O usuário, quando do download dos jogos, adquire uma licença de uso². Por meio desta simples alteração na "vestimenta" jurídica, o usuário não tem mais a propriedade para revenda ou compartilhamento dos jogos, sendo restrito o seu direito exclusivo ao uso, desde que obedecidas as demais obrigações assumidas no contrato. Isto faz com que o compartilhamento desautorizado dos softwares seja drasticamente reduzido.

Como é comum a qualquer tecnologia ou dinâmica disruptiva, novos desafios para a otimização desse controle quanto ao compartilhamento desautorizado serão postos para as empresas do segmento. Os usuários, mesmo diante do maior controle acima mencionado, encontram meios para o compartilhamento dessas mídias digitais em descumprimento ao assumido nas obrigações contratuais com plataformas.

Pode ser facilmente encontrada em famosos marketplaces como Mercado Livre a venda de jogos eletrônicos vinculados a contas de usuários³. A mecânica é a seguinte: os usuários fazem o cadastro e adquirem a licença de uso do jogo eletrônico, vinculando o software à conta criada. Essas contas em que os jogos estão contidos então são comercializadas em marketplaces, como Mercado Livre, por um valor muito inferior àquele praticado pela venda nos marketplaces dos consoles. O terceiro interessado adquire essa conta, e com ela o jogo eletrônico, de modo que, após inserir os dados cadastrais (senha e login) fornecidos pelo vendedor, passa a usufruir do software.

Diga-se que qualquer compartilhamento realizado pelo usuário que descumpra as normas contratuais assumidas com as plataformas permite que a as empresas suspendam temporária ou definitivamente a conta do usuário, rompendo unilateralmente o contrato firmado.

Essa nova governança de ativos intangíveis, como já mencionada, é, além de criativa, muito importante para se evitar a contrafação das obras aplicadas na área de jogos eletrônicos, representando uma interessante ferramenta de controle e proteção dos criadores nesse segmento.

Do ponto de vista jurídico, essa nova dinâmica é interessante, pois permite uma abordagem diferenciada quanto à responsabilidade civil frente ao compartilhamento desautorizado dos softwares aplicados pelos usuários.

Em um cenário de vendas desautorizadas dos jogos eletrônicos quando contidos em mídias físicas (como no caso da venda por comércios ilegais), a responsabilidade civil decorre da violação direta da lei, mais precisamente da titularidade dos direitos intelectuais sobre a obra original. Dessa forma, aquele que, por exemplo, disponibiliza, usa, comercializa ou reproduz uma obra cujos direitos de propriedade intelectual pertencem a um terceiro, sem sua prévia autorização, incorre em ato de contrafação, conforme estabelece o artigo 5º, VII, da lei 9.610/98 (lei de Direitos Autorais), conduta esta passível de punição cível e penal.

Já em um cenário de compartilhamento desautorizado dos jogos eletrônicos quando contidos no meio digital (vendas por meio do marketplace dos consoles), a responsabilidade civil decorre da desobediência das cláusulas obrigacionais assumidas, conforme estabelece o artigo 389, da lei 10.406/02 (Código Civil), dispondo que "não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado".

É preciso deixar claro que a proteção dos direitos autorais relativas aos jogos eletrônicos (softwares) não deixa de existir quando do compartilhamento eletrônico, de modo que o titular do direito objeto da violação (compartilhamento ou venda desautorizada por terceiros) ainda possui as medidas protetivas garantidas ao detentor dos direitos patrimoniais de autor. A nova abordagem jurídica que constitui este ato infrator, como um descumprimento de obrigações contratuais, apenas reveste o direito dos titulares das obras, municiando os mesmos com novas e mais eficazes medidas protetivas consideradas as particularidade do segmento de jogos eletrônicos.

Pela vertente jurídica, portanto, a hipótese de comercialização de jogos eletrônicos por meio digital permite um controle e responsabilização dos usuários infratores de maneira muito mais eficaz e individualizada. Comprovado o descumprimento da obrigação assumida, aplicam-se as sanções derivadas do contrato, como a suspensão da conta, bem como da própria lei, como a eventual reparação de danos concretizados.

O empenho das empresas do segmento de jogos eletrônicos nos próximos anos deve concentrar-se nesta nova forma de governança digital de seus ativos imateriais. Verificado o descumprimento contratual, é absolutamente razoável que as sanções previstas no próprio contrato sejam aplicadas, como a suspensão ou encerramento da conta, reservando-se a responsabilização civil para os casos em que se entenda que o fluxo de compartilhamento desautorizado de jogos eletrônicos seja recorrente e em grandes quantidades por algum dos usuários.

O fator preponderante e que milita em favor das empresas de jogos eletrônicos é que o controle interno imposto pela comercialização digital dos softwares, somado à eficácia da ferramenta sob o aspecto jurídico derivada dos contratos firmados com os usuários, possibilita uma nova dinâmica no combate à disseminação de obras intelectuais não autorizadas. As ferramentas foram inteligentemente criadas e disponibilizam alternativas eficazes, bastando para as empresas, portanto, saber como gerenciar essas novas demandas.

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1. Disponível aqui., acessado em 13/5/21

2. Vide, por exemplo, o "Contrato de Licença de Produto de Software" da Sony para sua plataforma Playstation, que assim dispõe em sua cláusula 1: "O Software é licenciado, e não vendido, a você. ASIE LLC concede a você uma licença limitada e não exclusiva para uso pessoal do Software no seu sistema PlayStation". Referido contrato pode ser acessado no site no link de "termos de serviço e contrato de usuário".

3. Como exemplo o anúncio no link , em que vende-se a cópia digital do aclamado jogo Last of Us: Part II, por um preço inferior ao comercializado nas plataformas da Playstation store. Link acessado em 13/5/21.

Rafael Pinho

Rafael Pinho

Graduação em Direito pela UFRJ. Advogado do escritório Kasznar Leonardos | Propriedade Intelectual.

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