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Otimizar a Justiça V

Expectativas e realidade da judicialização no CPC/2015.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Atualizado às 10:10

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O novo Código de Processo Civil completa 5 anos de existência. Trouxe ao sistema jurídico brasileiro, fundado na Civil Law, elementos próprios da Common Law. Se foi bem-sucedido nisso, ainda é cedo para dizer.

O objetivo, segundo seus idealizadores, foi o de melhorar a prestação jurisdicional, encurtar o tempo de duração dos processos e desafogar a Justiça. Penso que também é cedo para dizer se foi alcançado.

Sei, porém, que o foco para o aprimoramento da Justiça em exercício no Brasil não deveria ser a lei, mas sua organicidade. Desde a triste guinada republicana, paira sobre o país a incompreensível crença de que problemas são resolvidos com leis.

Criminalidade elevadíssima? Leis.

Fomento de negócios? Leis.

Desenvolvimento social? Leis.

Prestação jurisdicional melhor? Leis.

E assim por diante.

Essa crença mais prejudica do que ajuda. O Brasil é um dos países do mundo que mais tem leis e que mais se mostra ineficiente em diferentes campos.

Famosa é a sentença do antigo historiador e político romano Tácito: "Quanto mais corrupto o Estado, maior o número de leis". De fato, talvez porque dono de problemas endêmicos e recorrentes, o Brasil tem na criação de leis a vã esperança de correção, para não dizer redenção.

Veja-se o caso das leis administrativas. Quem as lê pensa que o país é um ambiente seguro e livre do uso inadequado, desonesto, dos recursos públicos. Penso que qualquer comentário a mais é desnecessário. Todos os brasileiros conhecem a realidade e dela se envergonham - ou ao menos deveriam.

Essas leis em nada inibem o agente político e o servidor público desonestos de praticarem iniquidades e crimes, mas atrapalham os honestos, presos em um círculo de regras que engessam a atuação dinâmica, veraz e eficaz.

Ao citar tudo isso, aqui, neste ensaio, não desejo de modo algum desprestigiar o Código de Processo Civil muito menos a reta intenção dos legisladores. De modo geral, aplaudo-os até com entusiasmo. Gosto do Código e não duvido que a intenção tenha sido realmente muito boa e que tenha produzido frutos saudáveis.

O que ouso criticar minimamente é a expectativa de que um problema orgânico, estrutural, histórico, pudesse ser verdadeiramente resolvido por meio de um diploma legal, ainda que bom.

Gastou-se muita energia com a transformação da ordem instrumental civil e pouca, talvez quase nenhuma, com o necessário e urgente redesenho da Justiça.

Sinto-me incapaz de tecer comentários muito aprofundados sobre a técnica legislativa empregada e o conteúdo do Código. Pretendo em breve fazer algo assim, mas apenas naquilo que toca ao Direito do Seguro e ao Direito dos Transportes, naquilo que vivencio profissionalmente, a fim de emprestar legitimidade aos comentários.

No mais, existem aos montes excelentes comentários dos maiores processualistas do Brasil, mais do que hábeis e qualificados para orientar os que desejam aprofundamento sobre o Código, sua gênese e sua aplicação efetiva.

Neste momento interessa-me apenas abordar este aspecto: a necessidade de mudança urgente de foco e o repensar orgânico, apesar da existência e da vigência do novo sistema processual civil.

Combinado?

Então vamos adiante.

Minhas modestas impressões são especialmente amparadas no magistério do processualista Antonio Claudio da Costa Machado1, a quem rendo as mais sinceras homenagens.

Inegavelmente, o Novo Código de Processo Civil trouxe avanços e flexibilizou alguns aspectos bem interessantes da marcha processual. Não bastantes, porém, para confirmar sua propagada justificação: resolver os problemas da Justiça.

Ajudará, é verdade, mas não resolverá.

Isso porque o problema é, repita-se, fundamentalmente estrutural e, mesmo, de ordem cultural. Nem um nem outro se mudam por leis, mas por atos políticos e educacionais. A pergunta incômoda a se fazer é: existe por parte dos agentes políticos do Brasil um sincero desejo de mudar positivamente a Justiça?

Pergunta complexa, espinhosa, cuja resposta não é fácil nem pode ser simplista.

Para pensar na resposta, um dado bem interessante, para não dizer preocupante: o maior devedor do Brasil é o Estado! Sim, mais de 60% dos litígios judiciais em curso tem o Estado (algum dos seus entes federativos, especialmente a União) como réu.

Diante disso, indaga-se novamente: há mesmo interesse de mudanças efetivas?

A Justiça no país carece de recursos orçamentários, materiais, humanos.

Uma comparação muito simples que merece detida atenção. Segundo Costa Machado, na Alemanha há 23 juízes para cada cem mil habitantes. Na França, 20. Já no Brasil, são apenas 9.

O leitor amigo poderá me acusar de injustiça, dado que Alemanha e França pertencem ao grupo dos sete países mais ricos do mundo, com realidades absolutamente distintas das do Brasil.

Perfeito, compreendo a acusação e trago um país com realidade próxima: a Argentina. Lá, 16 juízes para cada cem mil jurisdicionados, ou seja, 7 a mais do que no Brasil.

Quando se leva em conta o principal estado do país, o que abriga o maior tribunal do mundo, o Tribunal de Justiça de São Paulo, a situação se mostra ainda pior e até dramática: apenas 6 juízes para cada cem mil.

Isso põe nas costas dos magistrados um peso monolítico e uma sobrecarga de trabalho insana. E nem se diga que juízes são bem assessorados, pois a quantidade de servidores públicos é pequena diante da crescente demanda.

Faz algum tempo que todos os meses dezenas de servidores deixam a Justiça paulista sem que o Estado as reponha. A situação só não está ainda pior porque a informatização, de algum modo, ainda que bastante precária, amenizou um pouco o cenário sombrio.

Há muita carência e isso tem que ser repetido ao modo de uma oração jaculatória. A Justiça precisa - e para ontem - de muitos mais juízes e servidores. Pelo menos o dobro do número atual.

Quase todos que a enfileiram trabalham muito, e bem, mas a quantidade de serviço é quase invencível. Não será superada por meio de boa-vontade, esforços elogiáveis, informatização, muito menos mudanças nas leis.

Aliás, nas leis reside um dos pontos de estrangulamento da Justiça.

Eis o caso da própria Constituição Federal. Tão extensa que até o Colégio Dom Pedro II é tratado por ela. Que Constituição em todo o mundo dispõe sobre um colégio?

Há no texto constitucional brasileiro mais de 130 direitos fundamentais. No alemão, são apenas 34. Essa assimetria é inversamente proporcional, já que a Alemanha se destaca por ser um dos países com melhor cidadania do mundo e o Brasil, um dos mais complicados, para não dizer algo especialmente grave. O número de direitos fundamentais não garante a cidadania, mas alavanca e muito as hipóteses de recursos extraordinários, já que praticamente tudo, em tese, é passível de apreciação pela Suprema Corte.

Vou além.

Todas as leis realmente importantes são federais, e com isso permitem grande leque para recursos especiais, a sobrecarregar o Superior Tribunal de Justiça. Estima-se que cerca de 150 mil novos recursos chegam à Corte todos os anos, o que torna impraticável a boa jurisdição.

Pode-se afirmar, não sem razão, que a garantia fundamental de acesso à Justiça é algo muito bom, porque não só evita a tentação da autotutela como é prova de civilização. Todavia, o número de cem milhões de processos2, um para cada dois cidadãos, é assombroso. E autoriza pensar que algo de muito ruim ocorre no país.

A situação é tão dramática que o Senado Federal recorre até às estatísticas para tentar avançar em medidas de combate à judicialização.3

Parte dos problemas reside, como antes mencionado, na postura lamentável do próprio Estado, devedor contumaz e réu de cátedra. Os órgãos e tribunais administrativos são pródigos em não reconhecer os direitos das pessoas, forçando a busca dos órgãos e tribunais judiciais.

Motivos culturais e educacionais também são postos na conta da desolação. No Brasil não há a cultura do acordo, o espírito de renúncia, o zelo pela conciliação, o gosto pela mediação e o desejo de cumprir deveres e honrar compromissos. Isso tudo gera o que gosto de chamar de subcultura do demandismo, o elemento subjetivo principal da judicialização de tudo.

Trata-se, acima de tudo, de uma crise de confiança, como mais de três décadas atrás ouvi de viva voz de um famoso jurista. A crise de confiança gera o demandismo e consequentemente o travamento da Justiça.

A arte da conciliação não é ensinada nas faculdades de Direito e as palavras "dever", "obrigação", "cessão" se mostram sombras raras em um deserto escaldante e sem oásis.

Dou um exemplo bem prático. Mais da metade das ações judiciais de segurados contra seguradores poderia ser perfeitamente evitada se o advogado do segurado buscasse previamente a conciliação com o segurador. Estatísticas revelam que a recusa de pagamento de indenização de seguro sequer foi formalizada plenamente quando do ajuizamento da ação de cobrança.

Ao ser um grande devedor e se comportar muito mal, o Estado transmite um recado péssimo aos brasileiros, o de que vale a pena não pagar dívidas e não se comportar bem, segundo as ordens moral e legal.

O congestionamento da Justiça brasileira, portanto, tem muitas diferentes origens e causas; certamente não é a mudança do sistema instrumental que vai resolvê-lo.

O famoso filósofo espanhol, José Ortega y Gasset, falava muito de perspectivas e circunstâncias. E quando delas falava, também tratava das expectativas frustradas. O caso do novo CPC é bem ilustrativo: as expectativas não se realizaram.

A culpa, porém, não é do CPC que, é possível sentir nestes primeiros cinco anos, tem mais pontos positivos do que negativos ou duvidosos. O diploma em si mesmo é bom. O erro foi nele por expectativas indevidas.

Afinal, é Bíblico: "Dai a Deus o que é de Deus e a Cesar, o que é de Cesar". Definitivamente, não se resolve com lei o que tem que ser resolvido com política, economia e educação. Que se renda ao CPC o tributo devido e não se ponha na sua conta aquilo que ele não nasceu para resolver.

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1 Vide curso "online" sobre o novo CPC.
2 Na Austrália se tem um processo judicial para cada 5 mil habitantes. No Brasil, para cada dois (fonte: curso online do professor Costa Machado, já citado).
3 Senado recorre a estatísticas para tentar avançar em medidas de combate à judicialização.

Paulo Henrique Cremoneze

Paulo Henrique Cremoneze

Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.

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