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A responsabilidade financeira sancionatória exercida pelo Tribunal de Contas

Princípios por onde ingressam a moral, com todo seu conteúdo valorativo nas palavras de Habermas , o que, a partir daí, pode-se desenvolver uma metodologia de solução de conflitos e tensões que nos leve a soluções moralmente legítimas na apuração da responsabilidade financeira sancionatória.

terça-feira, 22 de junho de 2021

Atualizado às 08:08

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em 2000 a Lei de Responsabilidade Fiscal inaugurou uma nova ordem de responsabilidade, a responsabilidade financeira, onde foram criadas normas cogentes de  cumprimento, como conduta imperativa na elaboração e execução das leis orçamentárias. À época, essa foi a inovação que criou uma nova fase na história republicana brasileira, rompendo com um  passado patrimonialista e eleitoreiro, sendo também  agregada a coerção penal, com o advento da lei 10.028/00 - que previu a tipificação de crimes em razão do não cumprimento de dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal - o que, por um tempo, significou a intranqüilidade para parte do cotidiano dos agentes públicos. 

Além da inserção de um capítulo inteiro no Código de Processo Penal, que dispos sobre crimes contra finanças públicas, cujos tipos penais possuem o dolo como elemento subjetivo, representado pela vontade consciente de praticar as condutas descritas, a lei 10.028/00 ainda previu em seu artigo art. 5º sobre as infrações administrativas, contra as leis de finanças públicas, as quais são julgadas e processadas junto ao Tribunal de Contas, cujas penalidades vão desde a aplicação de multa de trinta por cento dos vencimentos anuais do agente que lhe der causa, sendo o pagamento da multa de sua responsabilidade pessoal, até a apuração de improbidade administrativa com a remessa da apuração ao Ministério Público. Prevê o artigo como infrações administrativas: 

I - deixar de divulgar ou de enviar ao Poder Legislativo e ao Tribunal de Contas o relatório de gestão fiscal, nos prazos e condições estabelecidos em lei;

II - propor lei de diretrizes orçamentárias anual que não contenha as metas fiscais na forma da lei;

III - deixar de expedir ato determinando limitação de empenho e movimentação financeira, nos casos e condições estabelecidos em lei;

IV - deixar de ordenar ou de promover, na forma e nos prazos da lei, a execução de medida para a redução do montante da despesa total com pessoal que houver excedido a repartição por Poder do limite máximo.

Apesar de não se ter notícia de subsunção de agentes no âmbito criminal, a punibilidade frente às demais infrações, aos dispositivos da LRF são significativas1 e instauraram no Brasil a necessidade de um novo tipo de abordagem sobre a gestão fiscal, devendo o administrador ter o conhecimento metodológico de forma sistemática, com o auxílio dos demais órgãos da Administração Pública, a fim de alcançar os melhores resultados. De acordo com Pedro Demo2 é  fundamental investir em disciplina e em organização como métodos de conhecimento, mormente por conta de nossos vezos culturais. A ciência é, sobretudo, procedimento metódico, implicando em um processo progressivo, cumulativo, sempre avaliado e controlado, não sendo crível mais se alegar desconhecimento, diante dos anos já passados de experiência com a aplicação da LRF.

A verdade é que o Brasil, conforme Salto e Barros, no período de 2009 a 2014 estava em  recuperação com a construção de um arcabouço institucional de contas públicas e regras decorrentes da aplicação da LRF, que foram turvadas infelizmente com a denominada de "contabilidade criativa" no período, contribuindo para a deterioração do esforço fiscal para pagar os juros da dívida e das expectativas dos agentes econômicos em torno da posição e evolução da política fiscal do país.3

O  paradigma legislativo instaurado pela LRF necessitava de adentrar e interferir no imaginário do agente público, acostumado à irresponsabilidade fiscal associada à impunidade jurídica de seus atos. Com certeza, a norma como simplesmente diretiva, sem uma consequência sancionatória mais severa, não produziria os resultados almejados, daí o surgimento da denominação punitiva materializada na responsabilidade financeira sancionatória, a qual, não é novidade em outros ordenamentos jurídicos, a exemplo do artigo 65 da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas português. 

Sendo assim,  diante das infrações administrativas previstas no art. 5º da lei 10.028/00 e das disposições de previsão de aplicação de multa, prevista nos artigos 57 e 58 da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, é de se concluir a existência, em nosso ordenamento jurídico, que o direito da responsabilidade financeira constitui-se igualmente um ramo autônomo do direito sancionador4, cuja matriz constitucional  é conferida ao Tribunal de Contas  lastreada no artigo 71 inciso VIII  que prevê  aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário. O que não impede, e não restringe, por óbvio a aplicação de sanções administrativas também pelo Poder Judiciário, inexistindo assim, nas palavras de Fábio Medina Osório "razão lógica para definir sanção administrativa a partir do critério subjetivo de um órgão sancionador"5. 

Desta feita, identificada a conduta violadora da responsabilidade financeira, a ela se aplicam todos os princípios constitucionais corolários do direito administrativo sancionador - que podem sofrer importantes mudanças em sua aplicação conforme um ou outra categoria dos atos sancionados6- como o devido processo legal, proporcionalidade, tipicidade, legalidade e principalmente razoabilidade, que nas palavras de Medina Osório "preside toda a formação do Direito Administrativo Sancionador", dada sua fundamental relevância7. 

Princípios por onde ingressam a moral, com todo seu conteúdo valorativo nas palavras de  Habermas8, o que, a partir daí, pode-se desenvolver uma metodologia de solução de conflitos e tensões que nos leve a soluções moralmente legítimas na apuração da responsabilidade financeira sancionatória.

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2 DEMO, Pedro Pesquisa e Construção de Conhecimento: metodologia científica no caminho de Habermas Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996, p.94.

3 SALTO, Felipe Scudeler Salto; LEAL DE BARROS, Gabriel. - Dívida pública no Brasil: diagnóstico e perspectivas, p. 367.

4 Tal como afirmado que ocorre no direito português  por Cury. Antonio. Responsabilidade Financeira e Tribunal de Contas. Coimbra, 2011, p. 88.

5 Medina Osório. Fábio. Direito Administrativo Sancionador do Estado. 6a. ed. rev e atual. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.p. 93

6 Medina Osório. Fábio. Direito Administrativo Sancionador do Estado. 6a. ed. rev e atual. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.p. 172

7 Ob.cit. p.193.

8 HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

Vanessa Cerqueira Reis de Carvalho

Vanessa Cerqueira Reis de Carvalho

Sócia do escritório Medina Osório Advogados. Doutoranda em Direito Financeiro e Econômico Global pela Universidade de Lisboa. Procuradora do Estado do Rio de Janeiro.

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