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Estímulos persecutórios excessivos: uma reflexão sobre a lei de improbidade administrativa

Erro não é improbidade.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Atualizado às 09:34

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Introdução

Existe uma demanda histórica por justiça no Brasil, fruto em larga medida da percepção, compartilhada no seio da sociedade, de uma atávica impunidade de ricos e poderosos. É frequente a afirmação de que, no país, o cárcere é apenas para pobres e para as classes menos abastadas, havendo uma casta privilegiada que estaria acima da lei, ou fora do alcance dela. A corrupção é tida como endêmica no Estado brasileiro. A literatura é vasta sobre o assunto1, assim como são diversas as razões, de cunho histórico, cultural e institucional, que explicam (ou, ao menos, tentam explicar) o enraizamento de tais práticas antirrepublicanas na burocracia estatal2.

É nesse contexto que, na última década, sucessivas leis foram aprovadas, a pretexto de combater a corrupção e os crimes do colarinho branco, como é o caso da LC 135/10 (Lei de Ficha Limpa), da lei 12.683/12 (que reformulou a Lei de Lavagem de Dinheiro), da lei 12.846/13 (Lei Anticorrupção), da lei 12.850/13 (Lei das Organizações Criminosas) e da lei 13.964/19 (o desfigurado Pacote Anticrime).

Os referidos atos normativos compõem um verdadeiro microssistema de combate à corrupção, inaugurado há cerca de 28 anos, com a aprovação da pioneira Lei de Improbidade Administrativa.

Com efeito, em 14 de agosto de 1991, o então Presidente da República, Fernando Collor de Mello, encaminhou ao Congresso Nacional a Mensagem 4063, submetendo à aprovação parlamentar projeto de lei que dispunha sobre "o procedimento para a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de cargo, emprego ou função da administração pública direta, indireta ou funcional", depois convertido na lei 8.429, de 2 de junho de 1992, também conhecida como Lei de Improbidade Administrativa (LIA).

Ali, na Exposição de Motivos EM.GM/SAA/0388, já destacava o ministro da Justiça Jarbas Passarinho que o referido anteprojeto tinha o declarado objetivo de combater "a prática desenfreada e impune da corrupção, no trato com os dinheiros públicos"4.

Ocorre que, transcorridos mais de vinte e oito anos da entrada em vigor da LIA, não há qualquer evidência de que o referido marco regulatório tenha contribuído para reduzir a desonestidade no bojo da Administração Pública.

Leis mais recentes, como a lei 12.850/13, ajudaram a revelar, mediante o emprego de institutos como a colaboração premiada, esquemas bilionários de corrupção no âmbito de empresas estatais, naquela que ficou conhecida como a "Operação Lava Jato". Não há, contudo, qualquer episódio ou caso paradigmático, no campo do combate à corrupção, que tenha sido reprimido eficientemente pela LIA.

Ao contrário, a lei 8.429/92 tem funcionado como um entrave à atuação administrativa do Estado. Instituiu uma matriz de responsabilidade caótica para o gestor público, ao ponto em que, no mais das vezes, não tem ele como saber, de antemão, aquilo que lhe é permitido, ou não, fazer. Na prática, pune severamente o erro administrativo; e não a desonestidade, a corrupção ou a devassidão no trato da coisa pública.

Efeito disso é que poucas pessoas honestas, com sucesso profissional e patrimônio construído a duras penas, estão dispostas a seguir a vida pública. É sintomático que personalidades reconhecidas, com um histórico profissional vitorioso, como é o caso do ministro Joaquim Barbosa5, do apresentador Luciano Huck6 e do ex-atleta olímpico e técnico de volleyball Bernardinho7, tenham cogitado a possibilidade de disputar eleições para cargos no Poder Executivo, mas depois desistiram.

Errar, entretanto, é da natureza humana. Só erra quem se propõe a acertar. Do bom gestor espera-se que tente, inove, tome decisões e cometa erros, até que consiga acertar8. O erro, evidentemente, não pode ser confundido com a improbidade9. Não se pode ignorar, como bem leciona Fernando Leal, que "o administrador público... nem sempre decide sob condições de certeza a respeito dos efeitos que as suas escolhas produzirão na realidade ou é capaz de reunir as informações necessárias para privilegiar uma decisão ótima sem incorrer em custos muito altos ou mesmo proibitivos"10.

Mais do que isso, o gestor toma dezenas de decisões diariamente. Obviamente, vai errar em algum momento. É o que dele se espera. Inovar pressupõe a assunção de riscos. Exige tentativas e experimentalismo. Punir o erro administrativo só serve para construir uma cultura burocrática, que estimula o não fazer. É conhecida nas repartições públicas a figura do servidor público que só sabe dizer "não". A verdade é que o "não", em um ambiente de tanta insegurança jurídica, de tanta incerteza, constitui instrumento de autopreservação. Entre dizer um "sim" e assumir riscos na sua esfera pessoal, ou dizer um "não" e dormir tranquilo, todos tendem a dizer o "não". Aí a origem do fenômeno que ficou conhecido como "apagão das canetas".

Neste ensaio, sugere-se que muito da "criminalização" da atividade administrativa do Estado, no Brasil, deriva de um conjunto excessivo de estímulos (de direito material e de direito processual) à persecução dos agentes públicos, constantes da lei 8.429/92. A tese aqui defendida é a de que a LIA, no desenho atualmente em vigor, incentiva a penalização do meras irregularidades e equívocos, mesmo que inexista no atuar do gestor contornos de desonestidade ou de corrupção.

Gustavo da Rocha Schmidt

Gustavo da Rocha Schmidt

Professor da FGV Direito Rio e Presidente do CBMA - Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem.

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