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Boa-fé e sigilo médico: simulação consciente de doença no âmbito trabalhista

Ato ímprobo do empregado pode se subsumir à análise jurisdicional trabalhista, haja vista a indiscutível quebra de confiança na relação empregatícia.

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Atualizado às 09:24

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O artigo 482 da Consolidação das Leis Trabalhistas - CLT delimita um rol taxativo com treze razões ensejadoras à justa causa, dentre elas, o ato de improbidade, ordinariamente entendido como desonestidade. Tal espécie de demissão, advinda da simulação de doença para faltar ao labor, seria uma falta grave do empregado ou suposta falha na prestação do serviço médico suficiente à anulação do ato demissional, no que consiste o sigilo profissional e o dever informacional médico?

Atestados médicos graciosos ou falsificados são uma triste realidade no cotidiano trabalhista. Além desses, há outro tipo não incomum, próprio àqueles que fingem a doença para terem abonadas suas faltas ao trabalho, classificado pelo Cadastro Internacional de Doenças - CID com o código 10 Z76.5. Tal situação tem por inegável a má-fé daquele que falta com a verdade, devendo, em uma primeira análise, ser responsabilizado. Inobstante, as circunstâncias ora delimitadas reclamam reflexão mais detida, haja vista que o malfadado documento é fruto da discutível inobservância das obrigações do médico na oportunidade do atendimento ao paciente/empregado.

São vários os deveres e obrigações do profissional da saúde para com seu paciente além daqueles comuns à atividade técnica, a exemplo do sigilo profissional e, principalmente, o dever informacional. Esse último, pormenorizando, trata-se da explicação detalhada e completa das medidas ou posicionamentos adotados pelo médico, visando à compreensão total do assistido para possibilitar decisões livres de vícios no consentimento. É certo que o empregado improbo, no ato da entrega à empresa do atestado de comparecimento ao hospital, com o mencionado CID, pode não fazer ideia do seu conteúdo ou dos desdobramentos que aquilo lhe trará, caso flagrado - e isso é uma falha grave, conforme preceitua o artigo 6º, Inciso III, e o artigo 66, ambos do Código de Defesa do Consumidor - CDC, bem como o artigo 34 do Código de Ética Médica - CEM, diplomas legais esses aqui invocados e utilizados subsidiariamente em razão da natureza da matéria abordada.

As informações inseridas no atestado devem ser paralelas à realidade do quadro de saúde do atendido. Se há simulação consciente, sua consignação no documento em questão é imperativa, uma vez que integrará o seu prontuário. O sigilo profissional é afeto a terceiros, mas não ao próprio assistido, via de regra. Portanto, há a obrigação de alertar o empregado fraudador quanto à conclusão médica no sentido de não se ter diagnosticado qualquer doença naquela oportunidade, tratando-se, tão somente, de mero fingimento. Seria, portanto, nulo o ato demissional motivado pelo atestado viciado no seu consentimento informado?

É próprio, portanto, refletir sobre a inobservância médica quanto às suas obrigações e a matéria de fundo atinente à má-fé do empregado. É certo que a falha na prestação do serviço médico evidenciou a improbidade obreira, alicerçando a demissão motivada. Contudo, deter-se a esse fato como razão obstativa à ruptura laboral é frágil. A empresa não pode ser responsabilizada pelas medidas adotadas pelo profissional de saúde, porquanto se trata de matéria eminentemente cível, além de reservada aos próprios médicos, podendo uma eventual invasão dessa competência, caracterizar exercício irregular da medicina, que, por sua vez, é tipo penal. Noutro aspecto, o ato ímprobo do empregado pode se subsumir à análise jurisdicional trabalhista, haja vista a indiscutível quebra de confiança na relação empregatícia. Em convergência, a jurisprudência caminha nesse sentido. O sexto regional trabalhista manteve sentença que julgou improcedente a reversão da justa causa outrora aplicada, conforme se evidencia do processo número 0000484-46.2019.5.06.0005, julgado na segunda metade de 2020.

A simulação de doença para faltar ao trabalho é ato odioso sob amplo prisma. Além da desnecessidade em ocupar um médico que deveria atender a quem realmente necessita de cuidados, onera de forma injusta o empregador e sobrecarrega outros empregados que precisarão substitui-lo nas suas respectivas atividades, frise-se, em um cenário nacional de preocupante desemprego. A despeito da discutível falha médica, a verdade deve prevalecer em detrimento daquele que despreza a importância da saúde, do emprego e dos seus colegas de trabalho.

Ítalo Roberto de Deus Negreiros

Ítalo Roberto de Deus Negreiros

Advogado trabalhista do escritório Martorelli Advogados. Especialista em Direito Médico e da Saúde

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