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Nós, advogados, queremos ser empresários à força?

Mudanças tão profundas no regime da atividade econômica podem ser introduzidas ex novo apenas no projeto de conversão de medida provisória em lei?

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Atualizado às 10:32

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Acha-se em curso, no Congresso Nacional, o Projeto de Lei 15/21, de conversão da Medida Provisória 1.040/21 em lei. O Projeto pretende extinguir as sociedades simples (que são aquelas que regulam as sociedades cujos membros exercem profissão intelectual de natureza científica, literária ou artística e bem assim a atividade de empresário rural, nos termos dos arts. 982 c/c o parágrafo único do art. 966, e do art. 984 do Código Civil), transformando todas as sociedades em sociedades empresárias - o que é, diga-se para logo, um disparate!1

Por que razão o parágrafo único do art. 966 exclui da conceituação de empresário o profissional que exerce profissão intelectual de natureza científica, literária ou artística?

Com sua genialidade ímpar, TULLIO ASCARELLI, ao apreciar o Código Civil italiano (na qual evidentemente se inspirou o Código Civil/2002), nos explicou o porquê2.

Segundo o Mestre, essa exclusão se dá em função de uma diversa valoração social, à qual correspondem "princípios jurídicos diferentes daqueles gerais das atividades empresariais..."3

E com efeito, todo mundo sente, intuitivamente, que a atividade de um advogado, de um médico, deve ser guiada por princípios jurídicos e éticos que não correspondem exatamente aos de um empresário.

Em primeiro lugar, a formação dos profissionais liberais exige curso superior, por vezes com exames estritos para o ingresso nas respectivas corporações (estão aí os exames da OAB para comprovação do que se diz). Ninguém nunca ouviu dizer, ao contrário, que para inscrição na Junta Comercial se exige um diploma de curso superior...

Em segundo lugar, as regras de decoro da profissão impedem, em toda a sua dimensão, a livre concorrência que é da essência da atividade empresarial. Desde que não aja deslealmente, é perfeitamente lícito ao empresário tomar a clientela de outrem mediante propaganda de seus produtos, por exemplo. O advogado, ao contrário, não pode anunciar imoderadamente os seus serviços, sob pena de cometer infração disciplinar. Nunca se viu um escritório de advocacia, aliás, fazer propaganda no rádio, na televisão e nos meios de comunicação em geral.

Em terceiro lugar, não há produção em massa na atividade dos profissionais liberais (por mais que hoje em dia esse argumento, aparentemente, não tenha a força que teve outrora).

Pois são todas estas diferentes regras jurídicas, decorrentes de uma diversa valoração social, como se disse, que justificam que uma sociedade de advogados, de médicos, de arquitetos, etc. - que reúnem seus membros para o exercício de uma atividade intelectual de natureza científica - não seja uma sociedade empresária, que sujeita, inclusive, seus sócios solidariamente responsáveis à falência (art. 81 da Lei 11.101/05), e seus administradores à perpetração de crimes falimentares, no caso de falta de escrituração contábil dos livros obrigatórios (art. 178 da mesma Lei).

No entanto, se for aprovado o Projeto de Lei de início mencionado, nós, advogados, que não podemos constituir nossas sociedades sob forma empresária (art. 16 da Lei 8.906/94), e que temos responsabilidade solidária pelos prejuízos causados aos nossos clientes, seremos - nós e nossas sociedades - considerados empresários.

Empresários - como disse no título deste artigo - à força!

Sem descer à análise de outras disposições despropositadas do aludido Projeto de Lei, é de se perguntar por que motivo não se adotou regra idêntica à do art. 984 do Código Civil, que assim dispõe atualmente:

"Art. 984. A sociedade que tenha por objeto o exercício de atividade própria de empresário rural e seja constituída, ou transformada, de acordo com um dos tipos de sociedade empresária, pode, com as formalidades do art. 968, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da sua sede, caso em que, depois de inscrita, ficará equiparada, para todos os efeitos, à sociedade empresária".

Bastaria o acréscimo de poucas palavras, poucas palavras apenas, para evitar a desfiguração completa de nosso direito societário:4

"Art. 984. A sociedade simples, observada a respectiva disciplina legal, e a que tenha por objeto o exercício de atividade própria de empresário rural e seja constituída, ou transformada, de acordo com um dos tipos de sociedade empresária, pode, com as formalidades do art. 968, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da sua sede, caso em que, depois de inscrita, ficará equiparada, para todos os efeitos, à sociedade empresária".

Dessa forma, à sociedade de profissão intelectual que desejar se tornar empresária - e, dessa forma, sujeitar-se aos respectivos ônus (escrituração de livros obrigatórios, impossibilidade de requerer a falência de devedor empresário etc.) e bônus (possibilidade de requerer recuperação judicial ou extrajudicial, por exemplo), basta requerer inscrição na Junta Comercial.

Sem violação da liberdade de iniciativa e, antes dela, da própria liberdade individual, aparentemente tão cara ao legislador de nossos tempos.

Em todo caso, a pergunta que fica é: mudanças tão profundas no regime da atividade econômica podem ser introduzidas ex novo apenas no projeto de conversão de medida provisória em lei?5

__________

1 O PLC 15/21 revoga o art. 982 do Código Civil, dá nova redação ao seu art. 983 e submete todas as sociedades a registro em juntas comerciais. Além disso, proíbe a constituição de novas sociedades simples (art. 40) e cria um regime transitório e fatal para as já existentes - que, dentro do prazo fixado na lei ou já quando realizada a primeira modificação do contrato social, terão que migrar para as juntas comerciais (art. 41). Ainda quando se possa discutir se essas regras gerais se aplicam também às sociedades de advogados, sob o argumento de que estas constituem tipo societário autônomo e que, por isso, não deixaram de se sujeitar às regras previstas no Estatuto da Advocacia, fato é que, não do ponto de vista de tipo societário, mas de natureza, a regra geral será de que todas sociedades são empresárias. E isso tem repercussões também em outras profissões intelectuais e reflexos tributários relevantes (p. ex., discussões sobre desenquadramento em regimes favorecidos de ISS).

2 Cf. Corso di Diritto Commerciale, Capítulo VII, Editora Giuffrè: Milão, 3ª ed., 1962; tradução do signatário na RDM 132/203-215, Malheiros Editores, out/dez 2003.

3 RDM cit., p. 206.

4 A sugestão é do eminente Prof. MARCELO VIEIRA VON ADAMEK.

5 A MP 1.040/21 não trata dessas mudanças. E o Supremo Tribunal Federal já assentou que "uma vez estabelecido o tema relevante e urgente, toda e qualquer emenda parlamentar em projeto de conversão de medida provisória em lei se limita e circunscreve ao tema definido como urgente e relevante" (STF, ADI 5.127-DF, Rel. p/ ac. Min EDSON FACHIN, m.v., j. 15.10.2015).

Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França

Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França

Professor Associado de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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