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Relativização do formalismo nos processos estruturais

Os processos estruturais sãos ações ajuizadas em razão de litígios estruturais que visam, além da resolução dos conflitos de nível individual, a reorganização estrutural da instituição pública e/ou privada causadora da(s) violação(ões).

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Atualizado às 08:17

(Imagem: Arte Migalhas)

LITÍGIOS E PROCESSOS ESTRUTURAIS

De acordo com Edilson Vitorelli litígios estruturais são:

"litígios coletivos decorrentes do modo como uma estrutura burocrática, usualmente, de natureza pública opera. O funcionamento da estrutura é que causa, permite ou perpetua a violação que dá origem ao litígio coletivo".

Em complementação Sérgio Cruz Arenhart define que:

"as questões típicas de litígios estruturais envolvem valores amplos da sociedade, no sentido não apenas de que há vários interesses concorrentes em jogo, mas também de que a esfera jurídica de vários terceiros pode ser afetada pela decisão judicial".

Um exemplo que pode ser adotado, para elucidar melhor o que são os litígios estruturais, é a tragédia ocorrida em Mariana, Minas Gerais, no ano de 2015.

Tal desastre aconteceu em razão do mau monitoramento e fiscalização das barragens.

Por causa disso, diversas famílias brasileiras perderam seus bens, casas e, inclusive, pessoas amadas.

Além disso, graças a essa fatalidade, o rio Doce, cuja bacia hidrográfica abrange inúmeros municípios dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, foi tomado pelos rejeitos vazados do rompimento

Essa calamidade exibe claramente quais são as características dos litígios estruturais.

No mencionado exemplo, inúmeras pessoas foram afetadas pela tragédia; tanto diretamente (pessoas que perderam seus bens, casas e familiares), como indiretamente (aquelas que receberam em suas casas águas com os rejeitos vazados das barragens e as que obtinham o sustento financeiro através do rio Doce). Gerando, assim, litígios de ordem individual.

Ademais, ainda inserido nesse contexto se tem também outros conflitos, como os ambientais, burocráticos, estruturais, sociais, humanitários, dentre outros.

Nesse sentido, é importante destacar ensinamento de Edilson Vitorelli:

"O litígio decorrente do desastre ambiental de Mariana, ocorrido em 5 de novembro de 2015, é o exemplo prototípico de um litígio coletivo irradiado. Nesses casos, a conflituosidade é elevada, uma vez que as pessoas sofrem lesões significativas o bastante para querer terem suas vozes ouvidas, mas essas lesões são distintas em modo e intensidade, o que potencializa as diferenças em suas pretensões. A sociedade está em conflito não apenas com o causador do dano, mas também consigo mesma".

Em outras palavras, os litígios estruturais são complexos conflitos policêntricos, com diversos interesses correlacionados (algumas vezes, inclusive, conflitantes entre si mesmos), que são resultados de violações a direitos e valores públicos relevantes da sociedade por instituições públicas e/ou privadas.

Por sua vez, o processo estrutural é o meio jurisdicional empregado cujo objetivo é reformular a estrutura burocrática da instituição pública e/ou privada causadora do litígio estrutural.

Vale-se ressaltar que o processo estrutural não visa a imposição coercitiva de um resultado final (como por exemplo, a reversão e compensação do desastre ambiental ocorrido em Mariana - até, porque, isso seria, em parte, impossível), mas, sim, a implementação de um plano, divido em fases (com possíveis avaliações e reavaliações), que visa a alteração do comportamento burocrático da instituição geradora do litígio, bem como a verificação dos impactos do litígio nos atores envolvidos.

Tal entendimento é corroborado por Edilson Vitorelli:

"um processo estrutural é aquele que busca resolver, por intermédio da atuação da jurisdição, um litígio estrutural, pela reformulação de uma estrutura burocrática que é a causadora ou, de alguma forma, a responsável pela existência da violação que origina o litígio. Essa reestruturação se dará por intermédio da elaboração de um plano aprovado pelo juiz e sua posterior implementação, geralmente ao longo de um considerável período de tempo. Ela implicará a avaliação e reavaliação dos impactos diretos e indiretos do comportamento institucional, os recursos necessários e suas fontes, os efeitos colaterais da mudança promovida pelo processo sobre os demais atores sociais que interagem com a instituição, dentre outras providências".

FORMALISMO NOS PROCESSOS ESTRUTURAIS

A partir dos pontos acima expostos, é possível se inferir que o procedimento utilizado nos processos de natureza estrutural é diverso ao modelo tradicional brasileiro empregado nas resoluções de disputas, haja vista o litígio estrutural ser mais complexo do que aquele imaginado pelo legislador.

O "processo ordinário brasileiro" é caracterizado pela: (I) linearidade e bipolaridade de conflitos (interesse "A" versus interesse "B"); (II) solução de uma lide ocorrida no passado (caráter retrospectivo); (III) delimitação do conflito; (IV) pacificação da lide pelo juiz, entre outras. Como apontam Leonardo Silva Nunes, Samuel Paiva Cota e Ana Maria Damasceno de Carvalho Faria:

"Observa-se que, no direito brasileiro, a forma de tratamento dos conflitos, sejam individuais, sejam coletivos, acaba por se ater a uma tradição jurídica individualista, concebida para o trato linear dos conflitos, em que estes são marcados pela bipolaridade, pelo caráter retrospectivo das soluções, pela posição passiva e de mero acertamento de direitos do magistrado, pela definição do conflito com a prolação da sentença condenatória, entre outros"

Já, no que concerne aos processos estruturais, pressupõe-se uma certa maleabilidade na causa de pedir, nos pedidos e na fundamentação jurídica, haja vista que, no momento da propositura da ação, a parte autora (entenda-se aqui como o legitimado extraordinário) não possui a percepção completa do conflito e de seus possíveis reflexos (até porque o conflito ainda está se desenvolvendo no momento).

Além disso, considerando que o litígio estrutural é de natureza complexa, com inúmeros interesses envolvidos, a simples imposição coercitiva de uma decisão final pelo juiz (como ocorre tradicionalmente no processo brasileiro), não resolveria o conflito. Isto porque, com tal medida o objetivo final do processo, que, de acordo com os ensinamentos de Cândido Rangel Dinamarco e José Roberto dos Santos Bedaque, seria a pacificação da lide, não seria atingido.

O mencionado desastre de Mariana é um ótimo exemplo para aclarar mais as diferenças.

Tendo em vista que as ramificações do rompimento da barragem não se tratavam de eventos passados, mas, sim, de atuais, a causa de pedir, assim, seria flexível, pois, caso contrário, o conflito não seria abrangido por completo.

É possível se deduzir também que o processo de Mariana seria de natureza complexa, haja vista a presença de diversos interesses, os quais (em alguns casos) são inclusive conflitantes entre si mesmos, como por exemplo: se a unidade da Samarco daquela região deveria ou não ser fechada permanentemente.

Assim sendo, a resolução dessa lide não seria simplesmente através de uma sentença que determinasse, exemplificativamente, o pagamento de indenização de "A" para "B".

Não, para a adequada conclusão desse caso, seria necessária a participação de todos (ou quase todos) os envolvidos na tragédia de forma igual e paritária, e, para isso acontecer, o processo deveria ser estruturado em fases voltadas à elaboração de planos que restituições ou minimizassem os danos causados e que reorganizassem a estrutura institucional da Samarco/Vale (a fim de impedir a ocorrência de outros desastres como esse).

Tais fases são caracterizadas pela predominância de audiências públicas e negociações entre todos os atores, cujo foco é a criação de planos, os quais podem ser reavaliados futuramente, que visam o alcance do objetivo final do processo.

Deste modo, o modelo processual positivado no Código de Processo Civil não seria a melhor via para o deslinde de processos de natureza estrutural, uma vez que toda a complexidade envolta dos litígios estruturais não seria abarcada da devida forma.

Neste sentido, cabe destacar posicionamento de Leonardo Silva Nunes, Samuel Paiva Cota e Ana Maria Damasceno de Carvalho Faria:

"Os litígios estruturais muito se diferem daqueles submetidos ao tradicional processo civil bipolarizado (ou dual), para o qual foi desenhada toda a legislação processual civil. Suas características, pressupostos e fundamentos formam um modelo processual que impacta diretamente na aplicação de diversos institutos do Direito Processual Civil, exigindo deles uma remodelagem, com o intuito de torná-los adequados a essa nova tipologia de litígios."

Salienta-se que o que é defendido aqui é uma relativização do formalismo do modelo processual ordinário para os casos de processos estruturais (ou, até uma estruturação processual própria). Mas, não a inobservância total do formalismo. Isto porque, o formalismo em si (não a versão extremista) visa o desenvolvimento válido e legal do processo, com a devida observância aos princípios do contraditório, ampla defesa, harmonização de valores, entre outros.

CONCLUSÃO

Reconhecendo que os litígios estruturais são conflitos de natureza complexa, marcados pela presença de diversos interesses envolvidos, haja vista a ocorrência de violação(ões) a direito(s) e valor(es) público(s) relevantes, depreende-se que os processos que cuidam dessas lides assumirão as mesmas características.

Tem-se, portanto, os processos estruturais.

Os processos estruturais sãos ações ajuizadas em razão de litígios estruturais que visam, além da resolução dos conflitos de nível individual, a reorganização estrutural da instituição pública e/ou privada causadora da(s) violação(ões).

Em razão disso, os processos estruturais são caracterizados pela divisão em fase, que são destinadas a: (I) avaliarem o conflito gerador, com suas ramificações; (II) elaborarem planos de reestruturação funcional da instituição destinados a corrigir a(s) violação(ões) e impedir igual(is) evento(s) futuro(s); (III) implementação do plano; (IV) avaliação dos resultados; (V) reelaboração de novo plano a partir dos resultados; (VI) execução do novo plano, etc.

Tais fases são permeadas pela participação dos inúmeros atores envolvidos, bem como por diversas audiências públicas e negociações entre todos eles.

Diante disso, constata-se que o modelo processualista tradicional não é o mais adequado para esses tipos de conflitos, uma vez que, conforme já exposto, o "processo ordinário brasileiro" é caracterizado pela linearidade e bipolaridade de conflitos, pacificação da lide pelo juiz, solução de conflito ocorrido no passado, entre outras particularidades.

O litígio estrutural não seria totalmente abarcado, caso fosse observado esse modelo para o caso concreto.

Assim sendo, para que o objetivo final do processo estrutural seja alcançado, defende-se uma relativização do formalismo do modelo processualista ordinário, ou, até mesmo uma estruturação própria.

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ARENHART, Sérgio Cruz, Decisões estruturais no direito processual civil brasileiro. Revista de Processo. São Paulo: RT, v. 225, 2013, p. 389-410.

______. Processos estruturais no direito brasileiro: reflexões a partir do caso da ACP do carvão. Revista de Processo Comparado, [S.l.], v. 1, n. 2, p. 211-229, jul./dez. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 13 set. 2020.

ÀVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016.

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Instrumentalidade e garantismos: visões opostas do fenômeno processual? In: Garantismo processual: garantias constitucionais aplicadas ao processo. 1. Ed. - Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2016.

COTA, Samuel Paiva; FARIA, Ana Maria Damasceno de Carvalho; NUNES, Leonardo Silva. Dos litígios aos processos estruturais: Pressupostos e fundamentos. In: Novas tendências, diálogos entre direito material e processo: estudos ao professor Humberto Theodoro Júnior. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2018, p. 365-383.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: volume II. Ed. 8ª, rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2019.

OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do formalismo no processo civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 126-147.

OSNA, Gustavo. Nem "tudo", nem "nada" - Decisões estruturais e efeitos jurisdicionais complexos. In: Processos Estruturais. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 177-202.

VITORELLI, Edilson. Levando os conceitos a sério: processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas diferenças. Revista de Processo. São Paulo: RT, v. 284, 2018, p. 333-369.

______. Litígios Estruturais: Decisão e implementado de mudanças socialmente relevantes pela via processual. In: Processos Estruturais. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 369-422.

 

Gabriella Viezzer Molina

Gabriella Viezzer Molina

Advogada atuante no Direito Administrativo, especialista em causas envolvendo servidores públicos estaduais. Pós-graduanda em Processo Civil pela Fundação Getúlio Vargas. Advogada do escritório Advocacia Sandoval Filho.

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