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A bebida alcoólica em estádios de futebol no pós-pandemia

Prejuízos humanos e sociais podem ser agravados pelo eventual prolongamento da pandemia. A indústria do futebol não deveria pautar a Política Nacional de saúde e segurança pública.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Atualizado em 2 de agosto de 2021 10:33

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

partir da Copa do Mundo em 2014 no Brasil, e em 2018 na Alemanha, tivemos a volta da bebida alcoólica em alguns estádios de futebol, respectivamente, no Brasil e na Europa.

Dos 12 estados brasileiros que permitirão bebidas alcoólicas quando o público voltar a frequentar os estádios ou praças esportivas, com o fim da pandemia da covid-19, todos autorizarão a sua venda e o consumo com a abertura das portas, ou duas horas antes, à exceção de um que as autoriza trinta minutos antes do evento (SC). Um permitirá a venda até "uma hora" após a conclusão do evento (RN). Cinco estados permitem o tamanho máximo do copo de 500 ml (BA, RN, ES, PE e CE), dois o autorizam até 600ml (AL e SC), e os outros não regulamentam o tamanho do copo. E um veda a comercialização ou o consumo nas arquibancadas e cadeiras, cabendo ao "gestor do estádio" definir os locais nos quais a comercialização e o consumo de bebidas serão permitidos" (MG).

A discrepância de qualquer regra em relação ao teor alcoólico nessas leis estaduais merece atenção. Algumas permitem a venda unicamente de "cerveja" (RJ e SC) ou "cerveja e chope" (PR). Outra indica o teor alcoólico de 10 graus Gay-Lussac (CE). Baseadas em regras implementadas por solicitação da FIFA (em francês, Fédération Internationale de Football Association) na Lei da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, algumas indicam o teor de 14 graus Gay-Lussac (PI e MT). A maioria não indica a bebida nem qualquer teor alcoólico (BA, ES, MG, PE e AL). E uma chega a indicar expressamente o teor alcoólico de 43 graus Gay-Lussac; ou seja, de destilados (RN).

Dois governadores à época foram contrários à lei: Paulo Hartung (ES) e Pedro Taques (MT). E dois governadores de outros estados conseguiram vetar leis semelhantes, seguindo a orientação de inconstitucionalidade manifestada por suas Procuradorias-Gerais (SP) e em razão da necessidade de aumento do efetivo policial que a medida exigiria (RS).

Ações diretas de inconstitucionalidade impetradas contra as leis estaduais

Das 12 leis estaduais, 6 foram alvo, pela Procuradoria-Geral da República, de ações diretas de inconstitucionalidade - ADI's no STF, e três já foram julgadas, por incrível que pareça, logo no início da pandemia de importância internacional da covid-19 ou do estado de calamidade pública decretado em razão dela; e por julgamento virtual, ou seja, sem debates públicos e transmissão pela TV.

À par da falta de um regramento homogêneo da matéria, os três julgamentos já realizados pelo STF merecem um olhar mais acurado.

Vejamos apenas o principal argumento desses três julgamentos, que se valeram de uma afirmação, salvo melhor juízo, um tanto quanto polêmica.

Com efeito, o relator da ADI 6193, primeira a ser pautada, baseou-se na premissa de que a proibição de venda de cerveja alcoólica nos estádios "acaba gerando o consumo de todos os tipos de bebidas - inclusive aquelas com elevado teor alcoólico - nas imediações dos eventos esportivos".

Primeira controvérsia: a permissão da venda dentro dos estádios é garantia de controle do consumo de bebida alcoólica, inclusive de teor mais elevado, nas imediações?

E, principalmente, não há nos autos, dessa e das outras ADI's, qualquer pesquisa científica a respeito dessa premissa. Sequer algum levantamento com um mínimo de padrões técnicos científicos.

A única pesquisa que se constata nesses autos foi a levada a efeito por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco, e relativamente à questão de segurança pública, mais precisamente quanto a ocorrências de violência nos estádios naquele estado nos períodos entre 2005 e 2009, quando a venda de bebida era permitida, e entre 2009 e 2015, quando proibida; comunicada primeiramente na ADI 6193 em informações prestadas pela Assembleia Legislativa do Mato Grosso.

Ou seja, nenhuma pesquisa a embasar, por exemplo, uma tese justificável de que o consumo "nas imediações" seria maior ou igual do que "dentro" dos estádios, e apenas uma única, nem constando nos autos na sua integralidade, o que possibilitaria uma melhor análise do seu conteúdo, e sobre um assunto paralelo, qual seja, o da violência. É a cloroquina das pesquisas da bebida alcoólica nos estádios de futebol.

E relativamente à questão da violência nos estádios não foram levadas em consideração a manifestação e as ocorrências encaminhadas pela Juíza de Direito titular do Juizado Especial do Torcedor de Cuiabá, constante de outros documentos encaminhados pela Assembleia Legislativa do Mato Grosso na referida ADI 6193.

Relativamente à segurança pública, a título de exemplo, a lei estadual cearense é confessa, quanto aos perigos da bebida alcoólica, ao vetá-la nos clássicos entre Ceará x Fortaleza, e determinar o investimento de 0,5% do faturamento da comercialização em "campanhas nos estádios contra a direção embriagada e a venda do álcool a menores"; bem como com a obrigação de disponibilizar "um monitor devidamente sinalizado para acompanhar o cumprimento da lei, orientar e atender as necessidades, para cada 2.000 torcedores". Outras leis estaduais indicam a obrigação das arenas de colocar avisos em diversos setores sobre os efeitos da ingestão de bebidas alcoólicas e a proibição de venda a menores (RJ, PR, SC e CE), e até veicular em sistema sonoro durante cada evento as mensagens "se beber não dirija, se dirigir não beba" e "é proibida a venda de bebidas alcoólicas a menores de 18 anos", pelo menos duas vezes (CE) ou no mínimo quatro vezes (RJ).

Ou seja, o álcool, apesar de não ser a única causa, é pública e notoriamente flagrante potencializador para a violência e insegurança pública.

O lobby da Indústria da bebida alcoólica e da FIFA

A indústria da bebida alcoólica, agindo de forma muito semelhante à indústria do tabaco ou à indústria farmacêutica quanto a medicamentos sem eficácia contra a covid-19, não perdeu tempo e publicou, em 2017, a única acima citada pesquisa da Faculdade de Pernambuco na revista inglesa International Journal of Low, Crime and Justice. Referida publicação certamente muito contribuiu, após a verificação do número expressivo de venda de cervejas durante a Copa do Mundo de 2018, para que a bebida alcoólica voltasse em alguns estádios na UEFA (União das Associações Europeias de Futebol), somada à alegação de baixos índices de violência entre torcidas durante aquele evento; o que, importante frisar, é muito natural pelo alto grau de segurança e menor paixão aos torcedores que a competição mundial entre países oferece.

Com efeito, dá para comparar a segurança de jogos internacionais numa Copa do Mundo com os campeonatos nacionais no Brasil e no exterior?

Não há como negar, portanto, a grande influência da FIFA no retrocesso da bebida alcoólica em alguns estádios brasileiros e europeus, embora na Itália o limite máximo do teor alcoólico seja de 5 graus Gay-Lussac, e na Espanha a venda continue vetada, exceto em camarotes e áreas vips. Referido retrocesso, ao que parece, também não tem ocorrido na América do Sul, a exemplo do Uruguai, onde é vedada a entrada de torcedores que ultrapassarem 0,5 mililitros de álcool no sangue, monitorada com testes de bafômetro por amostragem.

Com todo o respeito, o objetivo de aumento na arrecadação para os clubes de futebol, que no Brasil praticamente não contribuem nem quitam débitos gigantescos para a seguridade social, não pode servir como a principal justificativa das citadas leis estaduais.

Reconhece-se que o futebol é uma diversão popular em quase todos os países, como tantas outras no esporte e na cultura; mas a FIFA não pode pautar a política de segurança e saúde pública da sociedade mundial.

Não é suficiente, para a indústria do futebol, as bebidas alcoólicas estarem entre os maiores patrocinadores esportivos do mundo, ao lado do setor automotivo e dos bancos?

Políticas mundial e nacional antiálcool

E as políticas mundial e nacional antiálcool?

Respeitosamente, elas são pouco efetivas!

Diferentemente das precauções tomadas contra os prejuízos humanos e sociais causados pelo tabaco, que possuem um tratado internacional para o seu monitoramento e combate (a Convenção Quadro para Controle do Tabaco), as multinacionais da bebida alcoólica atuam sem qualquer controle mais rigoroso.

E os prejuízos gerados pelo álcool às nações são palpáveis.

A título de exemplo, estudo da OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde) atribuiu 85 mil mortes anuais exclusivamente ao consumo de álcool nas Américas durante o período de 2013 e 2015; e a contribuição, no geral, com mais de 300 mil mortes anuais (5,5% do total).

Vale citar o exemplo emblemático do ex-jogador da seleção brasileira Sócrates, que, embora ex-atleta, faleceu prematuramente aos 57 anos devido a complicações do álcool no aparelho digestivo.

Estudo recente, publicado na conceituada revista científica The Lancet Oncology, aponta que 7 tipos e 740 mil casos de câncer no mundo estão associados diretamente ao consumo de álcool anualmente. No Brasil, 20,5 mil casos anuais. Só então organizações de saúde, como a OMS (Organização Mundial da Saúde) e o INCA (Instituto Nacional de Câncer), afirmam que o consumo de bebidas alcoólicas deve ser reduzido ao mínimo possível e até a zero.

Ante a ausência de políticas públicas mundial e nacional antiálcool efetivas, aliás propulsoras do problema das drogas no Brasil, faz-se ainda mais necessário que o Poder Judiciário brasileiro vele por problemas sociais gerados por produtos perigosos como a bebida alcoólica.

Lembrando que já há cervejas com pouco ou nenhum teor alcoólico, ocupando mais de 1% do mercado, que reproduzem fidedignamente as com álcool, e todos os dias surgem novas bebidas sem álcool de excelente qualidade.

Inadmissível, respeitosamente, a falta de responsabilidade social do STF pela atitude negacionista quanto ao problema social do alcoolismo, bem como por não garantir o fundamento federativo da República Federativa do Brasil, insculpido no artigo primeiro da Constituição Federal. Diferentemente dos Estados Unidos da América, onde os estados confederados possuem autonomia para criar leis, pois custeiam e respondem com sistemas próprios de saúde e previdência, no Brasil esses encargos dos estados federados são centralizados pelo Sistema Único de Saúde e pelo Instituto Nacional do Seguro Social.

Fica aqui uma única pergunta: quem pagará os prejuízos humanos e sociais - absenteísmo, de saúde e segurança pública, e previdenciário -, pelo fomento da bebida alcoólica nos estádios brasileiros?

Espera-se, uma vez mais respeitosamente, uma análise mais aprofundada dessa matéria nos próximos julgamentos ainda não pautados pelo STF, onde os salários e, com a devida vênia, algumas mordomias como licitação para comprar lagosta, cachaça e vinhos, são custeados pela União Federal; esquecida nas decisões das ADI's 6193, 6195 e 6250 já julgadas improcedentes.

Felizmente já há voto presencial solicitado para o julgamento das demais ADI's ainda não pautadas.

Para mais esclarecimentos sobre o assunto, indicamos o vídeo "Retrocesso da bebida alcoólica em alguns estádios no Brasil", disponibilizado no Youtube.

O que se busca com este artigo é estimular o debate sobre o tema, prestigiando a pluralidade de ideias. Os dados são na maioria das informações prestadas nas referidas ADI's, ou de conhecimento público.

Por fim, o assunto passa a ter maior relevância, merecendo especial atenção das autoridades de saúde, não bastassem os prejuízos humanos e sociais acima citados, devendo ser observado nos protocolos para a retomada de público nos estádios de futebol, face aos maiores riscos à saúde pública pelas doenças provocadas pelo coronavírus, que segundo alguns especialistas podem se tornar perenes ante a possibilidade do surgimento periódico de novas cepas, como já ocorre com a variante delta.

Silvio Tonietto

Silvio Tonietto

Diretor-geral da Associação Mundial Antitabagismo e Antialcoolismo, ONG sem fins lucrativos. Pós-graduado em Política Internacional pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, e em Gerência de Cidades pela Fundação Armando Álvares Penteado. Especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Direito.

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