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A decisão inconstitucional do STF de criminalizar o contribuinte por dívida de ICMS

O não pagamento do ICMS acompanhado de fraude, sonegação, dissimulação ou omissão dolosa de obrigações acessórias é crime.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Atualizado às 07:31

(Imagem: Arte Migalhas)

Em recente julgamento 1, o Supremo Tribunal Federal acendeu o alerta na comunidade jurídica para o debate sobre teoria moderna do tipo penal. O Tribunal aprovou, neste julgado, a seguinte tese "O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º, II, da lei 8.137/1990".

Em mais um julgamento de leading case, no qual o órgão máximo do judiciário define o posicionamento de todos os demais intérpretes da lei, o STF referendou decisão da 3ª Turma do STJ, assentando o entendimento de que o não recolhimento do ICMS em operações próprias, ainda que devidamente declarado o imposto nos lançamentos contábeis, constitui crime nos termos da lei.

O STF, indo além do STJ, acabou por modificar aquele entendimento, passando a criminalizar o que convencionou chamar de "devedor contumaz". No entanto, a despeito da nomenclatura dada ao infrator desta nova tipificação penal, não se definiu no acórdão paradigma quais seriam as balizas legais para definir se o contribuinte é, ou não, devedor contumaz.

Não obstante o limbo jurídico que passou a existir com a inexatidão de qual seria a correta concepção de "devedor contumaz" para fins penais, esta é apenas uma das (muitas) críticas feitas à recente decisão do pretório excelso.

Outro ponto que merece destaque, é a transmutação da regra constitucional do in dubio pro réu, onde, nesta novel decisão do pretório excelso, caberão aos inadimplentes fiscais provarem nos autos que não agem de forma "contumaz" no não recolhimento dos tributos devidos. A despeito disso, terão estes que provar ainda a ausência da vontade (dolo específico) em lesar o Fisco. É verdadeira guinada nos princípios constitucionais mais caros à Carta Magna de 1988.

Como primeiro argumento do voto do Ministro relator, Luís Roberto Barroso, seguido pela maioria de seus pares, cita-se o entendimento de que os crimes tributários possuem grande relevância para a sociedade brasileira, na medida em que o "o calote fiscal impossibilita o país de acudir as demandas da sociedade 2".

Para o eminente ministro a arrecadação fiscal seria especial de tal modo que mereceria o emprego da coerção penal estatal para a consecução de seus fins, ainda que isso significasse a restrição de direitos fundamentais individuais.

O segundo argumento defendido no voto condutor do julgamento foi o de que o ICMS não compõe o patrimônio da empresa, sendo ela mera depositária do valor, a qual terá a obrigação futura de entregá-lo ao Fisco (STF, 2019).

Um olhar mais acurado perceberá que o argumento suscitado pelo eminente relator é, a priori, o mesmo fundamento legal da decisão do RE 574.706 pelo STF que determinou a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins. Neste ponto, sem dúvida, reside uma das maiores, senão a maior, crítica à decisão combalida. O pretório excelso fez verdadeira mistura de institutos jurídicos, com relevâncias temáticas totalmente divergentes a depender do ramo do Direito analisado.

Outra fundamentação suscitada pelo Ministro Luís Roberto Barroso foi a ausência de ônus financeiro para o contribuinte, pois, nas palavras dele, quem arcaria com o numerário referente ao ICMS - ainda que próprio - seria o consumidor (adquirente do produto, bem ou serviço), uma vez que o custo do tributo estaria incluso no preço do bem ou serviço vendido. Desta feita, segundo a decisão, não haveria motivo plausível para o não recolhimento do imposto lançado, uma vez que o custo deste já havia sido "repassado" pelo cliente final à empresa.

O último argumento-forte da decisão ora sob análise diz respeito à congruência entre o tipo penal do art. 2º, II da lei 8.137/90 e o do art. 168 (apropriação indébita) do Código Penal. Conforme o voto condutor, parcela considerável da doutrina, e porque não dizer jurisprudência, já teria equiparado o crime da lei Especial com o Crime previsto no Código Penal.

É facilmente perceptível, após análise dos argumentos utilizados pelo eminente ministro no voto vencedor do julgamento, que o STF fez verdadeiro malabarismo jurídico para justificar a tipificação penal daquele que, a despeito de informar o débito de ICMS próprio ao fisco, não quita o pagamento no tempo e prazo corretos. É visível ainda a ocorrência do ativismo judicial, tão presente no sistema judiciário brasileiro atualmente ante a inércia legislativa estatal em prover soluções adequadas às demandas sociais, dentre elas a adequada solução fiscal para a alta inadimplência dos contribuintes.

O ICMS (imposto sobre circulação de mercadorias e serviços) é um imposto estadual, não-cumulativo, incidente sobre operações comerciais que tem como fato gerador a circulação de mercadorias e prestação de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação. (Constituição Federal, art. 155, II).

Um ponto diferencial do ICMS em relação a outros tributos é que ele deve ser destacado no documento fiscal (nota/cupom fiscal), separado, portanto, fiscal e contabilmente do valor do bem e/ou serviço comercializado. Isto é feito para fins de controle e creditamento do imposto quando tal hipótese é aceita pela legislação pertinente. E é exatamente neste ponto que começam as confusões conceituais feitas pelo pretório excelso no julgado em comento.

A análise sistemática da norma criminal com os conceitos tributários ora apresentados sobre o tema permitem concluir que o tipo penal, e a consequente tipicidade da conduta, dizem respeito tão somente às hipóteses de responsabilidade tributária por tributos de terceiros, afinal, nesta situação o sujeito passivo da obrigação tributária tem uma responsabilização legal de "fazer as vezes de cobrador de impostos" pelo fisco.

Sob o enfoque o Direito Tributário, não há qualquer possibilidade de assentamento das razões de decidir de o julgado guerreado subsistirem no atual sistema legal brasileiro. As definições legais analisadas, bem como os conceitos trazidos à baila demonstram que, mais uma vez, o pretório excelso agiu ao arredio da melhor hermenêutica jurídica, elastecendo - e muito - conceitos legais já definidos em lei para sustentar um posicionamento insustentável.

O exame da tese fixada pelo STF sob o prisma do Direito Penal e Processual Penal é, sem sombra de dúvidas, o que mais urge a necessidade de ser realizado. O ativismo judicial presente no caso em comento, com a ocorrência inclusive da tipificação penal da "apropriação indébita tributária" feita de via transversa, merece especial atenção da nossa sociedade porque pavimenta caminho para possíveis novas atuações de igual conteúdo e forma daquela Corte, passando ela a exercer papel que não lhe é constitucionalmente assegurado.

Pode (deve) o Direito Penal, e consequentemente toda a coerção promovida pelo aparelho estatal, alcançar a inadimplência fiscal para considerar crime a apropriação indébita de recursos públicos no caso de débito tributário declarado e não pago?

Ambiciona-se inferir ao final que o Direito Penal não é meio adequado para a implementação de políticas sociais ou mesmo econômicas, sob pena de ferir o próprio fundamento epistemológico da ciência penal.

Como visto, sob o enfoque estritamente tributário, razão não assiste aos Ministros da Eg. Corte Suprema. Isso porque o sujeito passivo da obrigação tributária não cobra imposto. Esta é atribuição constitucionalmente assegurada apenas ao Estado. O que ocorre, nestes casos em que o sujeito passivo da obrigação é pessoa diferente do contribuinte, é uma operacionalização racional feita pelo Fisco para facilitar a cobrança do imposto.

Conclui-se, por oportuno, que, sob pena de afronta ao embasamento epistemológico da ciência penal, que o Direito Penal não é o meio legal e adequado para a mera implementação de políticas sociais e econômicas, em especial na utilização para coerção estatal da mera inadimplência fiscal.

Se no que tange ao Direito Tributário não há tese que satisfatoriamente sustente a condenação criminal do mero devedor de impostos próprios, na seara do Direito Penal é que não se pode admitir a decisão firmada pelo pretório excelso. O Direito Penal, é a ultima ratio do sistema jurídico a ser utilizado para manter a paz social, devendo, justamente por isso, ser utilizado apenas nos casos estritamente necessários, sob pena do cometimento de abusos de direito. Não há, em nosso ordenamento jurídico, justificativa legal que embase constitucionalmente a Tese firmada pelo STF.

A Corte Suprema se excedeu à sua atribuição originária, passando do papel de julgadora ao de órgão legislador, na medida em que, sob o pretexto de dar entendimento do texto legal em conformidade com princípios Constitucionais foi além de sua função e definiu como típica uma conduta anteriormente não prevista. Não é de hoje que doutrinadores e renomados juristas tecem críticas ao que se convencionou chamar de ativismo judicial. Há eminente perigo nessa forma de atuação do Supremo Tribunal Federal, que passa a determinar as vontades da lei, ainda que não lhe caibam esta tarefa.

É de clareza solar perceber que a questão referente ao inadimplemento, ainda que recorrente, do responsável tributário - nos casos de impostos indiretos - diz respeito tão somente à ilícito tributário-fiscal, atribuível tão somente à pessoa jurídica, portanto, não constituindo crime para o administrador da empresa, devendo a reprimenda estatal por tais fatos repousarem tão somente na esfera cível-fiscal quando for o caso.

A discussão da presente matéria se releva de suma importância para o amadurecimento da recente democracia brasileira que vê, em situações como essa, chacoalhar as bases que a sustentam, vez que parece não haver limites ao poder de julgar do pretório excelso. Deve haver coro para a urgente revisão do julgado, pelo STF, de forma a conformar o caso ao ordenamento jurídico brasileiro, pois, como dizia Montesquieu "a injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos".

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1 RHC 163.334/SC

2 PLENO - Não recolhimento intencional de ICMS - com audiodescrição, 2019. Vídeo (1h21min20seg). Publicado pelo canal STF. Disponível aqui. Acesso em: 3 jan. 2020.

Paloma Gurgel de Oliveira Cerqueira Bandeira

Paloma Gurgel de Oliveira Cerqueira Bandeira

Advogada criminalista. Atuante na defesa de custodiados em presídios federais. Doutora pela Universidade Nacional de Mar Del Plata. Pós-doutora pelas Universidades de Salamanca (Espanha) e Messina (Itália).

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