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Ler a Constituição é tão simples

Todo mundo passou a discutir a Constituição da República e a interpretação 'correta', como se isso fosse acessível a quem não estuda arduamente o tema. É o novo modismo brasileiro em que qualquer um 'cancela' um ministro do Supremo na mesa do botequim.

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Atualizado às 12:08

(Imagem: Arte Migalhas)

Sim, a ciência toma cerveja, e não vive enclausurada numa torre de marfim, como pensam ingênuos e românticos. Podem-se misturar conceitos à vontade que ela resiste. O que é da ciência não se esvai, e o que é da estultice não se qualifica. O filósofo Rubem Alves já ensinava, 'a mesma água quente amolece a cenoura e endurece o ovo'.

Qualquer um nesta atualidade cloroquínica, seja político, bombeiro, general ou vizinho etc. 'conhece' Direito Constitucional. Agora é assim. Todos discutem a Constituição com certezas fulminantes. A coisa é risível, vá lá, mas está assim. E garantem que a Constituição é uma porcaria, tem que ser trocada e que os juízes do Supremo são um bando de idiotas. Falar é tão fácil...

A literatura sobre metodologia, epistemologia e interpretação jurídicas, aplicada à Constituição e às leis é aflitiva para qualquer diplomado em Direito, de tão complexa que é. Certamente por isso, até uma grande maioria de profissionais afirma não ter habitualidade com estes temas. Peter Häberle1, emérito da Universidade de Bayreuth, Alemanha, ensina que as Constituições são textos que existem efetivamente sob a marca da 'abertura, extensão e indeterminação', o que 'assegura a ampliação de sua vigência'. Vê-se que o que não há em constituições são leituras literais.

Mas nada disso interessa, por exemplo, ao caminhoneiro ou ao cantor sertanejo ativistas que sentenciam altivamente que o Supremo está 'rasgando' a Constituição. Um verbo mecanicista, para uma visão ignorante, com uma causa obtusa, visando a um fim retrógrado, se não fosse infantil: um patético golpe de Estado.

Gomes Canotilho2, professor emérito da Universidade de Coimbra, Portugal, na obra brasileira mais importante de Direito Constitucional atual, com 2500 páginas e mais de 100 autores renomados, afirma que 'A Constituição brasileira de 1988 é um dos últimos e grandes fôlegos de modernidade política e constitucional.' Transcreva este parágrafo para um néscio espumando certezas e ele não terá dúvidas: - Canotilho e todos esse aí são imbecis. E segue o mantra bêbado: o país precisa de uma nova Constituição.

Um dos pais mundiais da metodologia jurídica, Karl Larenz abre seu famoso tratado3 ensinando ser necessário conhecer os últimos 150 anos da teoria e da metodologia do Direito para se compreender os problemas da metodologia jurídica, por isso justifica abordar previamente as diversas escolas, que podem ser sintetizadas em: Savigny, com o sistema. Puchta, com a pirâmide de conceitos. Jhering, com o método histórico natural. E Windscheid, com o positivismo legal racionalista e a razão do legislador. Realmente são estudos difíceis.

A sedimentação teórica para a formação principiológica da interpretação jurídica se torna árdua e necessariamente comparativa em dois vieses: por um lado, entre as referidas correntes pretéritas e ao mesmo tempo evolutiva; por outro, no sentido de se buscar um resultado social que atenda, por exemplo, à disrupção de uma presente pós-modernidade desconcertante.

Mas se Larenz é científico e didático ao demonstrar a necessidade de estudos com tais imbricações, nada disso, de novo e sempre, uma vez revelado a um achólogo de internet, que opina sobre interpretação constitucional, intimida-o, acanha-o ou se lhe gera dúvida. O profissional da 'achologia' é destemido, sua crença é fiel à teimosia, e precisamente por isso ele se torna invencível. A ignorância convencida de conhecimento continua sendo um prato saboroso de orgias e prazeres para pensadores.

Para estudiosos sobra a insegurança, com a busca de conceitos cientificamente menos errados, que sejam. Conceitos díspares, próximos, com áreas confusas, sempre causando dificuldades. Por exemplo, a diferença entre regras, em seu natural formato do 'tudo ou nada', em Dworkin4, e princípios, como 'mandados de otimização', em Alexy5. As assimetrias internas entre as formas de conflitos regra x regra, e princípio x princípio, respectivamente atendendo-se aos conceitos de antinomia e não convergência. Para juristas, só esforço, já para os opinadores de internet tudo é direto e simples, afinal eles afirmam: 'eu sei ler, ué!' Para eles, a Constituição não precisa ser interpretada, basta ser lida, simples assim. De forma tão intelectualizada como uma mandíbula esmaga um pedaço de bife. Não há como discutir com um mamífero.

Outro dia um orgulhoso rapaz afirmou, ao estilo sentença da Supremo Corte dos EUA, que 'matemática é lógica' e por isso ele tinha todo o direito de ler a Constituição com a mesma objetividade da matemática. Bingo! Mesmo depois de informado, o moço não conseguiu compreender que, por coincidência, a Lógica e a Matemática são as duas ciências que não lidam com fatos, como ensina Larenz, p. 47. Colocar tudo no mesmo saco às vezes é só ignorância; às vezes, tentativa malandra de vencer um debate schopenhauerianamente, sem ter razão.

Mas por que a interpretação da Constituição passou a 'incomodar' tanto? Por que tanta gente atualmente se arvora a dizer que sabe interpretar a Constituição? Contrarie o que esses aí querem ouvir ou saber, em atenção à sua ideologia, mesmo que advindo de um tribunal supremo ou de um estudioso esforçado, e eles imediatamente acharão que tudo isso é tolice; estudiosos e livros são bobagens; o Direito é uma ciência popular; e eles têm direito de achar o que quiserem, afinal eles são 'livres'.

Por seu turno, estudiosos continuam quebrando a cabeça para contextualizar conceitos de interpretação de normas, como os juristas e os livros ensinam. Repare-se, meramente a título de exemplo, um extenso rol de estudos da área em apenas 5 renomados autores.

Em Larenz, op. cit., a) a interpretação estrita versus o desenvolvimento do Direito complementador da lei, coisas diferentes, p. 455; b) proposições jurídicas incompletas como ordenações de vigência, sejam aleatórias, restritivas ou remissivas, p. 457; c) concurso de normas e concurso de regulação, p. 441; d) conexão do significado da lei, p. 461; e)  critérios, e não métodos, gramatical, lógico, sistemático e histórico, de interpretação; f) diferença entre asserções e imperativos, quando se estudam as proposições jurídicas, p. 457; g) o  início de toda interpretação necessariamente pelo critério literal, conjugado com seu  também necessário abandono aposterístico (da literalidade)na evolução da mesma interpretação, p. 450.

Em Perelman6, h) o engano do texto claro, p. 622; i) as noções confusas p. 671; j) a diferença entre validade formal e efetividade, p. 614; k) o conceito de antinomia, em que duas normas precisas cabem simultaneamente a um caso e só uma pode ser aplicada, p. 639; l) a diferença entre lacuna, que o juiz pode preencher, e vazio, que não pode, p. 647; m) as noções com conteúdo variável, p. 659.

Em Canotilho7, n) a mediação do conteúdo semântico como primeiro elemento do processo de interpretação-concretização constitucional, p. 217; o) elementos linguísticos das normas constitucionais polissêmicos ou plurissignificativos, p. 218; p) enunciados linguísticos vagos e indeterminados, p. 218; q) conceitos constitucionais de valor, ou com abertura de valoração, ou ainda de prognose e antecipação de consequências futuras dificilmente dedutíveis da simples mediação do conteúdo semântico, p. 219; r) as palavras e expressões do texto constitucional - e de qualquer texto normativo- que não têm significado autônomo, p. 220; s) a necessária articulação dos processos de análise dos dados linguísticos (programa normativo) e análise dos dados reais (setor ou domínio normativo), p. 222; t) o trabalho metódico de concretização que exige postura metodológica a se partir do texto da norma, bem como a norma de decisão não sendo uma grandeza autônoma nem uma decisão voluntarista do sujeito da concretização, p. 224.

Em Alexy8, u) a advertência de que todos os escritos atuais de metodologia não abrem mão das valorações - situação que atormenta os leigos que acreditam que isso fica ao sabor de cada um-, citando Larenz no sentido de que a aplicação da lei não se esgota no modelo subsuncional, mas exige valorações do aplicador, com apoio em Müller, Esser, Kriele e Engisch, p. 21; v) a possibilidade de se objetivizar as valorações pelas 3 vias possíveis, valores da coletividade, sistema interno do ordenamento jurídico e ordem objetiva de valores, p. 24.

Genericamente na contramão, o filósofo do Direito, Ronald Dworkin9, propondo a leitura moral da Constituição, um método que agradaria leigos e apressados, contrários a uma ciência teorética. Mas Dworkin também torna complexa sua 'leitura', quando insere a moralidade política e busca saber quem pode interpretar legitimamente a Constituição, admitindo expressamente que sua teoria não serve para todos os casos da constituição, p. 11.

Dá para perceber que os problemas científicos da interpretação e do Direito Constitucional, bem como da hermenêutica, da epistemologia, da ciência do Direito às vezes parecem inesgotáveis, ante certa situação aporética que se encontra com a figura do caso concreto, às mais das vezes oriundo de pessoas naturais.

Se as ciências exatas explicam, as humanas compreendem e, para ambas exigem-se tipos aproximados de maturidades humildes, porque sabidamente errantes. Exatamente, a ciência se faz com erros, jamais com verdades absolutas, certezas, absolutividades, autoritarismos e outras propriedades típicas do pensamento vaidoso. Não é à toa que seniores como o zoólogo Richard Dawkins10 ensinam 'A ciência progride corrigindo os seus erros, não faz segredo do que ainda não compreende'; o filósofo Gaston Bachelard11 em sua tese de doutorado, em 1928 já dizia 'O problema do erro nos parece mais importante que o problema da verdade; ou melhor, só encontramos uma solução possível para o problema da verdade quando afastamos erros cada vez mais refinados', e o astrônomo Carl Sagan12 no mesmo sentido 'A ciência prospera com seus erros, eliminando-os um a um'.

Com a polarização ideológico-autoritária atual, na sociedade brasileira - reparando-se que nos Estados Unidos há idênticos bolsões de resistência ao conhecimento-; com persistente analfabetismo científico de uma atualidade que chega a questionar vacinas; e com o Direito Constitucional, a Constituição e o Supremo Tribunal Federal tendo virado 'moda' e estando presentes nas mesas de botequins, todo mundo achando que sabe efetivamente tudo, a vida ganhou, verdadeiramente, nova pujança. Desconcertante, ou errática, mas ganhou.

Quase o que se imagina possa acontecer em Cuba no dia seguinte à queda de sua ditadura; ou que houve na Berlim no pós-muro; ou o que ocorreu na Rússia no dia em que a 2ª Guerra acabou e o estoque de vodca do país acabou junto.

O Brasil vive um inusitado desporre da democracia em que parece que muitos querem abrir mãos de seus belos direitos conquistados. Não se festeja nada, apenas se questiona, bem antropofagicamente, o próprio direito que já tem e vive: a democracia em si. Nessa toada, muitos, por aí, acordaram um dia e resolveram que têm conhecimento sobre tudo, de Direito Constitucional à Medicina.

A síntese conclusiva advertencial de Canotilho, Comentários citados, p. 57, invocando o ilustre historiador americano Tony Judt é no sentido de que 'o pior que poderá acontecer é a crítica à constituição poder transformar-se pouco a pouco em banalidade do bem', em que se abandonariam construções científicas de toda uma evolução do Direito Constitucional para se chegar a 'métodos de achamento político', como a 'ponta de passagem para a outra margem'.

A crise nem é grave, chega a ser patética e surreal.

_______

1 HÄBERLE, Peter. Direitos fundamentais no Estado prestacional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021, p. 41.

2 CANOTILHO, J. J. Gomes [et all]. Comentários à constituição do Brasil. 2 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p.52

3 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 8 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2019, p. XXII.

4 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3 ed., 6ª tiragem. São Paulo: WMF Martins Fontes. 2020, p. 39.

5 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002, p.  86.

6 PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

7 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6 ed. Coimbra: Almedina, 1993.

8 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021

9 DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019.

10 DAWKINS, Richard. Desvendando o arco-íris: ciência, ilusão e encantamento. São Paulo: Companhia das letras, 2000, p. 54.

11 BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

12 SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios. São Paulo: Cia das letras, 1996, p. 36.

Jean Menezes de Aguiar

VIP Jean Menezes de Aguiar

Advogado. Professor da Pós-Graduação da FGV e do IPOG. Parecerista da Coordenação de Publicações Impressas da FGV e da RDA - Revista de Direito Administrativo, FGV.

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