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Dano moral no direito brasileiro: o retrocesso da doutrina e, principalmente, da jurisprudência

A bem da verdade, nunca tivemos no Direito Brasileiro algo que pudéssemos classificar, genuinamente, como algo minimamente parecido ao punitive damage do direito estadunidense, mas temos como inquestionável, que nos últimos 20 (vinte) os patamares indenizatórios sofreram sensível redução.

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Atualizado às 11:23

(Imagem: Arte Migalhas)

Introdução - do aspecto preponderantemente punitivo da indenização por danos morais

É um fato incontestável, podendo se verificar da mais singela amostragem jurisprudencial por período de tempo, que a aplicação prática do Instituto do Dano Moral no Direito Brasileiro, nos últimos 20 (vinte) anos não apenas não evoluiu como, ao contrário, involuiu, melhor dizendo, retrocedeu. 

Situações excepcionalmente graves são indenizadas, na maior parte dos casos em quantias não superiores a R$ 5.000,00 (cinco mil) ou R$ 10.000,00 (dez mil reais), quando muito. A bem da verdade, nunca tivemos no Direito Brasileiro algo que pudéssemos classificar, genuinamente, como algo minimamente parecido ao punitive damage do direito estadunidense, mas temos como inquestionável, que nos últimos 20 (vinte) os patamares indenizatórios sofreram sensível1 redução. 

Apenas a título de exemplo, no ano de 2001, uma empresa do ramo de fast-food fora condenada2 a indenizar um ex-funcionário em valores da ordem de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) em razão de ser omissa em relação à agressão sofrida, pelo trabalhador, que ocupava o cargo de gerência, por um cliente do estabelecimento. Especificamente, o trabalhador em questão sofrera uma cusparada do referido cliente da loja3. 

A, supracitada, condenação trabalhista equivaleria hoje a algo como a R$ 246.689,94 (duzentos e quarenta e seis mil e seiscentos e oitenta e nove reais e noventa e quatro centavos)4. 

Outro caso emblemático deu-se no processo5 em que, em razão de violação de Direitos Autorais, músico e gravadora foram, solidariamente, condenados a indenizar, em julho de 2002, os compositores de uma canção R$ 165.000,00 (cento e sessenta e cinco mil reais)6 a título de danos morais. 

Não obstante, através de inúmeros casos que podemos coligir de uma singela amostragem jurisprudencial, verificamos que nos últimos 10 anos os parâmetros indenizatórios em ações de reparação por danos morais sofreram visível redução; redução essa que, em nosso entendimento, apenas serve de estímulo a novos e iguais atentados. 

Marco Antonio Ibrahim7, aborda, com maestria que o Dano Moral8 não necessariamente diz respeito a um direito da personalidade violado, mas, sobretudo, objetiva o aspecto punitivo em razão de Direitos do Consumidor (e outros) violados. Por outra, o autor aborda diretamente o dano moral como uma multa em razão da violação de proteções à Cidadania e à própria sociedade. Vejamos: 

Portanto, não há de se negar que o Judiciário brasileiro, na esteira prática do que já vem ocorrendo em boa parte dos países desenvolvidos, tem imposto condenações por dano morais em casos em que, na verdade, não estão em lide questões relativas aos direitos da personalidade, mas em diversas situações em que se verifica um desacato à condição de consumidor ou de mera cidadania do lesado. (...) Em lugar de indenização por dano moral, mais apropriadamente, dir-se-ia que a condenação deva infligir uma pena civil pela indignação causada. 

No mesmo sentido, Papini9 aponta que: 

"Contudo, entendemos que o maior vetor da indenização proveniente da condenação pelo dano moral é o aspecto sancionatório em si (apesar de se reconhecer, também, a existência do aspecto compensatório). Vejamos agora o motivo pelo qual o quantum a ser fixado em virtude da indenização advinda da violação da moral de alguém deve ser norteado, principalmente, pelo aspecto sancionatório. (...) Em primeiro lugar, se analisarmos etimologicamente a palavra indenizar, descobriremos que o seu significado literal é apenas um: tornar indene, o que nada mais é do que restituir alguém ao seu status quo ante, ou seja, ao estado em que se encontrava anteriormente ao evento danoso."

Não obstante, o dano moral (e a indenização dele advinda) tem como seu principal vetor o aspecto sancionador o fato é que o Poder Judiciário brasileiro (e também boa parte da nossa Doutrina Jurídica) insistem no gravíssimo risco da "Indústria da Indenização"10 como meio de, em termos práticos, negarem-se as indenizações por danos morais. 

A inexistência do enriquecimento sem causa em indenizações por danos morais. O Direito Brasileiro prevê, expressamente, a possibilidade de indenizações punitivas em valores de elevada monta 

Aqui existe uma resistência, quase pueril, da Jurisprudência e da Doutrina (salvo raríssimas e honrosas exceções) em aceitar punições a título de danos morais, que realmente atendam o aspecto punitivo (isto é, sejam concedidas em valores elevados).

Normalmente argumenta-se que a concessão do dano moral em valores elevados permitiria o enriquecimento sem causa, isto é, ganho injusto daquele beneficiado pela indenização. 

Com as devidas vênias àqueles que pensam de forma contrária, esse argumento nada mais é que um (mau construído) sofisma. Em primeiro lugar, não há que se falar em enriquecimento sem causa, vez que o motivo, o fato gerador, daquele "ganho de capital" é exatamente o ilícito sofrido. Não há como, salvo alguma distorção muito grande, considerarmos que uma indenização sofrida em razão de um dano em algum nível, possa assemelhar-se a um enriquecimento sem causa. 

Mais ainda, nosso sistema jurídico, mesmo no âmbito do Direito Privado11 permite que indenizações cíveis sejam concedidas em valores elevados sem que isso seja considerado como enriquecimento sem causa. 

O artigo 53712 do Código de Processo Civil Brasileiro, por seu turno, alterando a sistemática do Código de Processo Civil Revogado, prevê que nas hipóteses de uma multa oriunda de uma obrigação de fazer (ou não fazer) tornar-se excessivamente alta ou inexpressiva, o Magistrado poderá - apenas e tão-somente - alterar o valor da multa vencida, nunca da vincenda. O Código de Defesa do Consumidor, também, em seu artigo 4213, prevê que o consumidor cobrado em quantia indevida seja ressarcido no dobro do que pagou a maior. 

Em suma, todo o Ordenamento Jurídico Brasileiro prevê a possibilidade legal de elevação/majoração dos parâmetros indenizatórios, em ações de reparação cível por danos morais, não havendo por que, dessarte, prevalecer o argumento, ultrapassado ao nosso ver, da vedação ao enriquecimento sem causa, até mesmo porque a causa imediata deste enriquecimento é o próprio ato ilícito praticado. 

______________

1 Para não dizermos brutal.

2 Processo número 1664/2.001, 74ª Vara do Trabalho da Cidade de São Paulo. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região.

3 Mc Donald's é condenado a indenizar ex-funcionário por danos.

4 A atualização monetária pode ser feita, diretamente, através de ferramenta disponibilizada no site do IBGE. https://www.ibge.gov.br/explica/inflacao.php

5 Que tramitou pela 4ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo, sob o número (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo) 0114264-90.2001.8.26.0100.

6 Este valor, atualizado para a data em que este artigo é escrito (agosto de 2020), corresponde à importância de R$ 597.724,41 (quinhentos e noventa e sete mil e setecentos e vinte e quatro reais e quarenta e um centavos). Régua de cálculos disponível em: https://www3.bcb.gov.br/CALCIDADAO/publico/corrigirPorIndice.do?method=corrigirPorIndice

7 Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

8 IBRAIHM, Marco Antonio. Direito ao Respeito. Revista da EMERJ, v. 4, no 14. 2001.

9 PAPINI, Paulo Antonio. Dano Moral: Da Efetiva Reparação em Face do Ordenamento Jurídico Pátrio. Editora Síntese. Revista de Direito Civil e Processual Civil. no 17, Maio-Junho de 2.002.

10 Com efeito, em mais de 20 anos de Advocacia e Magistério essa é uma das maiores falácias que já vimos. Ninguém, absolutamente ninguém, torce para ser negativado indevidamente, para ser agredido, para ser vítima de um ilícito civil para locupletar-se utilizando o Poder Judiciário, mormente no Brasil (onde a morosidade e, por conseguinte, ineficácia do processo judicial são fatores que, muitas vezes, afastam o jurisdicionado do exercício do seu Direito). Eventualmente, sim, haverá pessoas que tenderão a criar situações com o fito de locupletarem-se ilicitamente. Seríamos ingênuos se desconhecêssemos esse fato. Ocorre que, para esse tipo de cenário o Direito Brasileiro já tem uma resposta tipificada no Código Penal, através do seu artigo 347, que trata do crime de Fraude Processual. Da mesma forma que simular uma ação trabalhista inexistente como forma de obter quitação definitiva, de uma relação jurídica, na Justiça do Trabalho (as famosas casadinhas) caracteriza "fraude processual", inventar fatos, sabidamente inexistentes e, pior ainda, forjar documentos para tal intento, também poderiam, ao nosso ver, ser enquadráveis nesse tipo penal. Código Penal. Art. 347. "Art. 347 - Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito: Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa. Parágrafo único - Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado, as penas aplicam-se em dobro." 

11 E não apenas no âmbito do Direito Criminal e/ou Administrativo, como sustentam alguns.

12 "Art. 537. A multa independe de requerimento da parte e poderá ser aplicada na fase de conhecimento, em tutela provisória ou na sentença, ou na fase de execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito. § 1º O juiz poderá, de ofício ou a requerimento, modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda ou excluí-la, caso verifique que: I - se tornou insuficiente ou excessiva; II - o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o descumprimento."

13 "Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável."

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CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078.htm

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/L13105.htm

CÓDIGO PENAL. http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Decreto-Lei/Del2848compilado.htm

IBGE. https://www.ibge.gov.br/explica/inflacao.php

IBRAIHM, Marco Antonio. Direito ao Respeito. Revista da EMERJ, v. 4, n14. 2001.

Mc Donald's é condenado a indenizar ex-funcionário por danos.

PAPINI, Paulo Antonio. Dano Moral: Da Efetiva Reparação em Face do Ordenamento Jurídico Pátrio. Editora Síntese. Revista de Direito Civil e Processual Civil. n17, Maio-Junho de 2.002.

Paulo Antonio Papini

VIP Paulo Antonio Papini

Advogado em São Paulo. Mestre e Doutorando pela Universidade Autónoma de Lisboa. Pós-graduado em Processo Civil. Especialista em Direito Imobiliário. Professor na ESA/UNIARARAS e ESD-Campinas.

Paulo Marcos dos Reis

Paulo Marcos dos Reis

Mestrando e doutorando em Direito. Advogado no Brasil e em Portugal. Professor Universitário (UNIFASE PETRÓPOLIS RJ) ex-Procurador Contencioso Cível Município, Especialista direito Público

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