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O cabimento de multa judicial (astreinte) contra a parte que descumpre ordem de exibição de documento ou coisa

Se for provável que o documento ou coisa foi destruído, extraviado, ou que se encontra inacessível às partes, não faz sentido recorrer à busca e apreensão, e nem mesmo à imposição de multa.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Atualizado às 13:43

(Imagem: Arte Migalhas)

Ainda quando vigente o CPC/73, a consequência para a parte que descumprisse ordem de exibição incidental de documento ou coisa era a presunção de veracidade dos fatos que, por meio do bem, a contraparte pretendia provar, nos termos do art. 359 do CPC/73.1 Na exibição autônoma, por sua vez, não se admitia a presunção de veracidade na hipótese de descumprimento (julgamento do Tema 47/STJ2), sendo cabível tão somente a medida de busca e apreensão.3

Em ambos os casos - na exibição autônoma e na incidental -, inexistia expressa autorização legal para a aplicação de medidas coercitivas contra a parte que descumprisse ordem exibitória. É por essa e outras razões, especificamente em relação às astreintes, que a jurisprudência consolidou-se no sentido de que "na ação de exibição de documentos, não cabe a aplicação de multa cominatória" (Súmula 372 do STJ), cujo entendimento foi reafirmado no julgamento repetitivo do Tema 705 do STJ,  em que se entendeu pelo "descabimento de multa cominatória na exibição, incidental ou autônoma, de documento relativo a direito disponível".

Assim, em síntese, contra a parte no âmbito da exibição, autorizava-se apenas a apreensão de documentos, como meio executivo sub-rogatório, e a aplicação da sanção de presunção de veracidade dos fatos, como técnica de resolução da questão relativa à não exibição do documento ou coisa (restringindo-se esta última à hipótese de exibição incidental).

No entanto, com alguma frequência, essas providências mostravam-se incabíveis ou ineficazes. A presunção de veracidade dos fatos, por exemplo, é incabível nos casos em que (i) for inadmissível a confissão como meio de prova (art. 392 do CPC); (ii) o único meio de prova admissível for o instrumento público (art. 406 do CPC); ou (iii) por outro modo o documento ou a coisa foi exibida (v.g. outra pessoa o anexou aos autos); entre outros.4

Da mesma forma, a presunção pode revelar-se ineficaz quando o requerente da exibição sabe que o documento existe, mas desconhece o seu conteúdo, motivo pelo qual não lhe é possível sequer indicar com precisão o que busca provar.5 É esse o caso, por exemplo, das ações para exibição de extratos bancários6 ou para a exibição dos dados de um ofensor virtual7, em que a presunção não servirá, respectivamente, nem para indicar o valor depositado, tampouco para identificar o ofensor.

A busca e apreensão de documentos ou coisas, por outro lado, pode ser de pouca valia, considerando que, não raras vezes, o requerido - entre apresentar um documento de suma relevância para o deslinde do feito a seu desfavor ou assumir o risco de ter contra si a presunção de veracidade dos fatos probandos, que não necessariamente lhe acarretará a derrota no processo -, acaba por escolher a segunda alternativa8. Em outras palavras, de forma não cooperativa, tende o requerido a se desfazer do documento ou simplesmente ocultá-lo.

Nesse contexto, parte da doutrina já defendia o cabimento da multa judicial no âmbito da exibição de documentos. Algumas decisões9 do STJ chegaram, inclusive, a afastar a incidência da Súmula 372 e do Tema 705 do STJ.

O Código de Processo Civil de 2015, a nosso ver, resolveu esse antigo problema, ao admitir a cominação de multa contra a parte que descumpre a ordem de exibição.

Nada obstante, a questão afigurava-se ainda controversa na doutrina e na jurisprudência, até que, recentemente, em 26.05.2021, no julgamento do Recurso Especial Repetitivo 1.777.553/SP, a Segunda Seção do STJ pacificou a matéria, com a aprovação da seguinte tese:

"Desde que prováveis a existência da relação jurídica entre as partes e de documento ou coisa que se pretende seja exibido, apurada em contraditório prévio, poderá o juiz, após tentativa de busca e apreensão ou outra medida coercitiva, determinar sua exibição sob pena de multa com base no art. 400, parágrafo único, do CPC/2015" (Tema 1000/STJ).

Salvo com relação à exigência genérica de "prévia tentativa de busca e apreensão ou outras medidas coercitivas", é elogiável a tese firmada, no sentido de autorizar a cominação das astreintes contra a parte que descumpre ordem exibitória.

O procedimento da exibição incidental de documento ou coisa promovido contra a parte ex adversa e contra o terceiro é previsto nos arts. 396 a 404 do CPC. Aqueles que defendiam a manutenção da Súmula 372 do STJ e o Tema 705 do STJ sustentavam que o legislador teria previsto expressamente a multa judicial tão somente contra o terceiro, nos termos do art. 403 do CPC; e que, contra a parte, nada teria estabelecido o art. 400 do CPC, incorrendo assim em um "silêncio eloquente".

De fato, o art. 400 não previu expressamente a aplicação de multa contra a parte que descumpre a ordem exibitória, mas é preciso atentar para o inédito parágrafo único do referido dispositivo legal, o qual dispõe que "sendo necessário, o juiz pode adotar medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para que o documento seja exibido". A multa pela não exibição do documento está claramente enquadrada no conceito de medida coercitiva10, uma vez que se constitui sobre a vontade do demandado, destinada a convencê-lo a adimplir a ordem judicial.11 Portanto, deve ser também cabível contra a parte.

Ademais, pela leitura do art. 403 do CPC, nota-se que a previsão de multa contra terceiro na exibição de documento tem caráter meramente exemplificativo. Quisesse o legislador vedar a imposição das astreintes contra a parte, deveria tê-lo feito de forma expressa.

Reforça ainda o cabimento da astreinte contra a parte a norma geral disposta no art. 139, IV, do CPC12, que, em redação quase idêntica à do parágrafo único do art. 400, estabelece que "incumbe ao juiz determinar todas medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária". Ali restou consagrado o chamado "princípio da atipicidade dos meios executivos", segundo o qual o magistrado dispõe de amplos poderes na efetivação da tutela executiva, incluída a aplicação da multa como medida de execução indireta.

A verdade é que a previsão do parágrafo único do art. 400, a rigor, sequer seria necessária, diante do teor inequívoco da cláusula geral executiva disposta no art. 139, IV, que privilegia ainda os princípios do acesso à justiça e da efetividade.13

Além dos relevantes fundamentos já apontados, consignou-se no acórdão do Recurso Especial Repetitivo 1.777.5553/SP que a ameaça de multa à parte que se recusa a cumprir ordem exibitória não configura violação ao art. 379 do CPC, que trata do direito de não produzir prova contra si mesmo. Isso porque a adequada produção probatória é de interesse do processo, e não do interesse exclusivo das partes, de modo que há um verdadeiro "dever" de colaboração para com a produção de provas, e não apenas um "ônus" probatório imputado às partes. Segundo a Corte Especial, o direito de não produzir prova contra si mesmo se restringe à não autoincriminação em matéria penal e refere-se ao direito enunciado no art. 5º, LXIII, da CF/881415, "prevalecendo no âmbito do direito privado garantia da ampla defesa conjugada com o dever de cooperação das partes com a instrução probatória".

Outro relevante fundamento trazido no acórdão do Repetitivo diz respeito à necessidade da cominação de astreinte, contra a parte descumpridora da exibição, para a busca da verdade e a obtenção de uma sentença justa. É que pode ocorrer de a presunção de veracidade, prevista no caput do art. 400, resolver o litígio, mas dar origem a decisões irrazoáveis e dissociadas da realidade subjacente à demanda.16 O parágrafo único do art. 400 do CPC concebe mais uma ferramenta à disposição do julgador, permitindo-lhe lançar mão de medidas aptas a produzir as provas essenciais à apuração da verdade dos fatos. Nesse sentido, é de se lembrar que o modelo cooperativo de processo instituído pelo CPC/2015 impõe às partes, como decorrência do dever de boa-fé, o de colaborar para a completa elucidação dos fatos.

Como antes salientado, não aderimos à parte da tese firmada no Repetitivo que exige a "tentativa de busca e apreensão ou outras medidas coercitivas" previamente à cominação de multa contra a parte executada. O art. 400, parágrafo único, do CPC estabelece diversas medidas executivas que podem ser adotadas pelo julgador em caso de não exibição do documento, sem estipular uma ordem de preferência entre elas. Entendemos que não há razão para, de forma geral e apriorística, condicionar a imposição de multa à anterior determinação de medida sub-rogatória, quando as peculiaridades do caso demonstrarem, de antemão, ser esta inócua ou despicienda.

De acordo com a tese vinculante, a fixação da multa periódica depende da demonstração, pelo requerente, da probabilidade da existência da relação jurídica entre as partes e do documento ou coisa que se pretende seja exibido. De fato, trata-se de requisitos imprescindíveis, porquanto a parte destinatária da ordem deve ter a possibilidade de se desincumbir da obrigação correspondente - sob pena de a multa ter caráter meramente punitivo, e não coercitivo, como bem pontuou a Min. Nancy Andrighi em seu voto-vista, no julgamento do Repetitivo. Ainda segundo a Ministra, caso o requerente não colacione elementos suficientes comprobatórios da existência da relação jurídica e do documento ou coisa, poderá o juiz valer-se da tentativa de busca e apreensão a fim de dirimir a dúvida e, então, se provável a versão do requerente, determinar a exibição sob pena de multa.

Veja-se que o próprio raciocínio esposado no voto da Min. Nancy permite a ilação de que, sendo suficientes os elementos trazidos pelo requerente para demonstrar a probabilidade da existência da relação jurídica e do documento, não há necessidade de se tentar a busca e apreensão, podendo ser diretamente cominada multa coercitiva.

Por outro lado, se for provável que o documento ou coisa foi destruído, extraviado, ou que se encontra inacessível às partes, não faz sentido recorrer à busca e apreensão, e nem mesmo à imposição de multa. Nessa situação, desde que os elementos trazidos pela parte interessada sejam suficientes para possibilitar conjecturas, deverá incidir a presunção de veracidade dos fatos.15

Parece-nos, diferentemente do que entendeu a Segunda Seção do STJ, que não há de se estabelecer uma ordem de preferência ou subsidiariedade entre as medidas cabíveis, incumbindo ao juiz, mediante requerimento ou de ofício, a adoção daquela que se mostre mais pertinente e eficaz diante de cada caso concreto.

Conclui-se que o diploma processual vigente optou, deliberadamente, por permitir que o juiz se utilize também da multa judicial para coagir a parte contrária que se recusa a exibir documento ou coisa. À exceção da exigência de prévia "tentativa de busca e apreensão do documento ou outras medidas coercitivas" à cominação da astreinte contra a parte que se recusa a exibir, com a qual não se concorda, caminhou bem o STJ na interpretação fixada no Tema 1.000.

________

1 "Na exibição incidental, tinha lugar a presunção de veracidade dos fatos, embora a jurisprudência do STJ já viesse admitindo, quando se mostrasse insuficiente a presunção de veracidade dos fatos, a utilização de medidas de busca e apreensão do documento ou coisa" (AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 524-525).

2 Tema 47/STJ: "A presunção de veracidade contida no art. 359 do Código de Processo Civil não se aplica às ações cautelares de exibição de documentos".

3 Conforme destaca o Min. Paulo de Tarso Sanseverino, no julgamento do REsp n. 1.777.5553/SP, de sua relatoria, em algumas hipóteses, a depender do caso concreto, a cominação de multa na exibição autônoma de documentos requerida contra a parte também era possível: REsp 1560976/RJ, Rel. Min. Luiz Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 30.05.19, DJe 01.07.19; REsp 1359976/PB, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, j. em 25.11.14, DJe 02.12.14; e EDcl no AREsp 511.172/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, 3ª Turma, j. em 08.09.15, DJe 11.09.15.

4 DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Sarno Paula; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual civil. Vol. II. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 238.

5 CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015, p. 244.

STJ, REsp 1.758.786/TO, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, j. em 02.04.19, DJe 04.04.19.

7 STJ, REsp 1560976/RJ, Rel. Min. Luiz Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 30.05.19, DJe 01.07.19.

8 Cargas y deberes probatorios de las partes en el nuevo CPC. in: CAVANI, Renzo (coord.) e PAULA RAMOS, Vitor (coord.). Prueba y proceso judicial. Lima: Instituto Pacífico, 2016, p. 372/373.

9 Conforme anteriormente citado: REsp 1560976/RJ, Rel. Min. Luiz Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 30.05.19, DJe 01.07.19; REsp 1359976/PB, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, j. em 25.11.14, DJe 02.12.14; e EDcl no AREsp 511.172/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, 3ª Turma, j. em 08.09.15, DJe 11.09.15.

10 Sobre o tema, dispõe o Enunciado n. 54 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: "Fica superado o enunciado 372 da súmula do STJ ("Na ação de exibição de documentos, não cabe a aplicação de multa cominatória") após a entrada em vigor do CPC, pela expressa possibilidade de fixação de multa de natureza coercitiva na ação de exibição de documento".

11 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção - art. 497, parágrafo único, CPC/15. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p.239.

12 "Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (...) IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária".

13 Essa visão, à qual aderimos, foi exposta na segunda manifestação do IBDP, na condição de amicus curiae, anexada aos autos do Recurso Especial 1.777.5553/SP (cf. fls. 544 e 545 dos autos eletrônicos).

14 Art. 5º, LXIII, da CF/88: LXIII - "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado".

15 Sobre o tema, o Enunciado 51 do Fórum Permanente de Processualistas Civis estabelece o seguinte: "(art. 378; art. 379) A compatibilização do disposto nestes dispositivos com o art. 5º, LXIII, da CF/1988, assegura à parte, exclusivamente, o direito de não produzir prova contra si em razão de reflexos no ambiente penal".

16 Quanto a essa hipótese, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator do repetitivo 1.777.5553, cita o seguinte caso concreto também julgado sob sua relatoria: "Além dos fundamentos teóricos acima alinhavados, trago à reflexão o caso subjacente ao REsp 1.758.786/TO, de minha relatoria, que bem revela o já mencionado problema da dissociação entre a verdade judicial e a verdade real. Trata-se de uma ação revisional de contrato bancário em que o juízo, com base na presunção de veracidade decorrente da revelia, declarou quitados "todos os débitos existentes em conta corrente", atendendo assim ao pedido da parte autora. A sentença assim proferida deu origem posteriormente a um cumprimento de sentença de valor astronômico, da ordem de 53 milhões de reais, incompatível com a realidade dos fatos, o que ensejou inúmeras impugnações, culminando com a rescisão da sentença, de modo que o litígio, iniciado na metade da década de 90, ainda se encontra pendente nos tribunais. Esse caso emblemático evidencia que negar efetividade ao procedimento da exibição, que era o meio de prova adequado para aquele caso, pode levar o sistema processual a conviver com decisões injustas e, até mesmo, teratológicas, dissociadas da realidade, com a ora aludida, dando ensejo a inúmeras impugnações que retardam sobremaneira a resolução definitiva do litígio".

17 A Min. Nancy Andrighi destaca, em seu voto-vista, que a presunção de veracidade deve ser subsidiária: o julgador deve se preocupar em adotar uma medida executiva suficiente a viabilizar a exibição do documento ou coisa; "somente se for inviável obtê-los, é que deverá se concentrar na possibilidade ou não de se presumir como verdadeiro o fato que com aquele documento ou coisa se pretendia provar".

Fernanda Medina Pantoja

Fernanda Medina Pantoja

Doutora e mestre em Direito Processual pela UERJ. Professora da PUC/RJ. Sócia de Tavares Advogados. Membro da Processualistas.

Felipe Varela Mello

Felipe Varela Mello

Mestrando em Direito Processual na UERJ. Graduado na PUC-Rio. Advogado.

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