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A lei do impeachment à luz da Constituição de 1988: superabilidade da fase cameral em caso de inação

Com base em seu papel constitucional atual, a inação da Câmara na análise de denúncia por crime de responsabilidade deve levar a que o processo de impeachment se desenvolva diretamente no Senado.

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Atualizado às 13:50

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A lei 1070/50, chamada Lei do impeachment, embora editada sob a égide da CF/46, ainda hoje é utilizada, no que cabível, para reger o processo de impedimento dos principais mandatários do país. Desde então, em especial, após a CF/88, não foi promulgado novo diploma sobre o tema.

Mas, é óbvio, a lei 1070/50 deve ser interpretada e conformada à vigente Carta, nunca o contrário.

O papel da Câmara no caso de impeachment presidencial sofreu significativa alteração constitucional entre as Cartas de 1946 e 1988 (isso, claro, não vem passando despercebido pelo Supremo Tribunal Federal).

Para a CF de 1946, a Câmara tinha papel efetivamente jurisdicional: competia-lhe declarar, por maioria absoluta, a procedência ou improcedência da acusação.  Sendo declarada a "procedência", a jurisdição seguia com o Senado, para processo e julgamento final e definitivo. Por isso, a lei 1079/50 dizia que a Câmara funcionava como "Tribunal de Pronúncia" e o Senado como "Tribunal de Julgamento" (artigo 80, caput, 1ª parte). 

A jurisdição, portanto, era dúplice; o processo, bifásico.

Com a Constituição de 88 o quadro mudou. Em especial, mudou o papel da Câmara.

Em Direito, Teoria Geral do Processo, o instituto "processo" tem conteúdo técnico e se refere precisamente ao instrumento da jurisdição. Para a CF/88 o processo, de competência exclusiva do Senado, passa a ser também de sua exclusiva jurisdição. O processo não é mais bifásico, embora, no caso do impeachment presidencial, seja prevista e existência de um expediente cameral prévio. A Câmara deixou de ter função jurisdicional.

Ou seja, no caso de impeachment presidencial, malgrado agora sem caráter jurisdicional, a Câmara ainda mantém uma função, já que lhe é atribuída uma etapa procedimental preliminar. Trata-se de função pré-processual, meramente autorizativa, por isso mesmo sem força condicionante absoluta. Uma função claramente menor - menos relevante - que a de outrora: hoje, meramente formal, um filtro técnico-político para fins de autorização da acusação (e não sobre o mérito do caso - procedência ou improcedência da acusação - como antes).  E, por isso mesmo, superável, em caso de omissão.

Se a análise da Câmara for positiva - autorizativa -, não é ela quem lavra a peça de denúncia para postular que se inicie o processo. A Casa popular apenas encaminha a denúncia-crime que lhe fora apresentada pelo requerente legitimado. Ou seja, o papel da Câmara não é, tampouco, o de órgão de acusação, de "autor", no processo por crime de responsabilidade, como eventualmente vem sendo confundido.

E este é o ponto essencial: a inação da Câmara, dado seu atual papel - embora relevante e exclusivo, deixou de ser essencial - não pode impedir a jurisdição. Sua função, hoje, é acessória, lateral à essência jurisdicional.

Se, antes, a Câmara fazia parte da tarefa jurisdicional, atualmente, não mais. Se, antes, a jurisdição, porque insuperável e insubstituível, poderia ficar (de)pendente de sua dicção, hoje, não mais: a garantia constitucional ao acesso jurisdicional não pode ficar submetida a etapas pré-jurisdicionais.

A exclusiva prerrogativa constitucional de se posicionar pela autorização ou não do processo de impeachment não se confunde com prerrogativa de, por omissão, impedir que a jurisdição se desenvolva.

Numa palavra: se antes da CR/88 a inação da Câmara era insuprível em seu atuar jurisdicional quanto à análise de procedência ou improcedência de uma denúncia por crime de responsabilidade do Presidente da República, hoje é superável, sem que haja qualquer trauma, contaminação ou prejuízo ao processo propriamente dito. E é precisamente essa superabilidade que capacita a manutenção da lógica e da higidez do sistema constitucional, em atenção a seus valores, princípios e normas materiais.

Essência, higidez sistêmica...

Não à toa todos os demais impedimentos de autoridades previstos no mesmo dispositivo constitucional já se desenvolvem diretamente no Senado, inclusive os de ministros do Supremo (o Presidente da República, por isso mesmo, recentemente encaminhou ao Senado uma denúncia por suposto crime de responsabilidade de ministro do STF).

No Direito ocidental moderno, eventual inércia na fase pré-processual, jamais pode ser fato impeditivo a que se desenvolva validamente a jurisdição. Notadamente a que trata de interesses coletivos, em especial, de toda uma Nação. Isso não se confunde com o eventual poder, em casos específicos, conferido à vítima de crime, pessoa privada, quanto a autorizar ou não a persecução judicial do autor (as chamadas ações penais públicas condicionadas). Ao ente público não é dado se omitir; por isso sua inação não pode ter o mesmo efeito - a mesma presunção volitiva - da omissão da vítima privada. Sob essa ótica, dado o interesse público, a omissão do particular, do lesado privado, pode desautorizar a jurisdição; mas a do agente público, o contrário. Não por outro motivo a jurisdição penal pode se desenvolver independentemente de eventuais omissões verificadas em inquéritos ou procedimentos administrativos preparatórios. Aliás, a jurisdição pode se dar independentemente até mesmo da instauração ou existência desses expedientes prévios.  E a jurisdição por crime de responsabilidade, embora especial, não perde seu caráter penal; até por isso, seu diploma de subsídios gerais é o Código de Processo Penal.

Em suma: a inação da Câmara dos Deputados, por período irrazoável, não pode impedir o exercício da jurisdição pelo Senado da República. Havendo omissão da Câmara baixa, os requerentes do pedido de impeachment podem submetê-lo ao Senado - em cujo processo, vale lembrar, já na Casa Alta, existe uma fase preliminar de admissibilidade, esta, sim, de natureza jurisdicional.  

Visto internamente, mesmo sob a ótica pré-processual, o tempo de inação para a prática de qualquer ato não pode suplantar o mérito administrativo do próprio ato, tampouco o conteúdo material do ato em si. A inação injustificada quanto à admissibilidade do pedido pelo Presidente da Câmara dos Deputados - ele próprio submetido à finitude do mandato - passa a ser da própria Câmara, na medida que seu Regimento Interno traz mecanismos em que o corpo de deputados sempre tem como cobrar ação da cabeça omissa.

O prazo razoável para manifestação da Câmara seria de 30 dias (fase pré-processual prevista no Código de Processo Penal, que é subsidiário à Lei do impeachment - art. 38); podendo ser admitido, em parcimoniosa interpretação, via integração analógica, o prazo de 180 dias (prazo que a CF/88 prevê para ultimação do próprio processo de impedimento no âmbito do Senado).

Suplantado o prazo razoável - e esse prazo o STF não deveria se escusar em declarar qual é -, para que não se impeça o acesso à jurisdição senatorial, é de se ter como cumprida e superada a fase autorizativa pré-jurisdicional. A partir de então, deve-se assegurar ao autor da denúncia, o requerente do pedido de impeachment, encaminhá-la à Presidência do Senado para que ali se inicie sua tramitação.

Afinal, não é rabo que abana o cachorro...

Paulo Calmon Nogueira da Gama

VIP Paulo Calmon Nogueira da Gama

Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, Desembargador do TJMG.

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