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A mídia e o Direito Penal no Brasil

O Brasil expôs, ao longo de sua história, uma dificuldade enorme no enfrentamento da macrocriminalidade.

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Atualizado às 16:42

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O sistema penal nacional se dirige à proteção do status quo econômico, político e social, encontrando-se no contexto da modernidade tardia e, simultaneamente, da incorporação dos paradigmas neoliberais de concentração e manutenção do capital, fatores que fazem com que o direito penal seja apontado como desigual e ilegítimo.

Portanto, referido sistema jurídico-penal converte-se em instrumento de conservação de uma política de atraso, especialmente no contexto de espetacularização da criminalidade, dividindo as pessoas entre "cidadãos de bem" e "bandidos", eleitos, a partir desses paradigmas, pelos legisladores.

A partir disso, a "criminalidade" se torna o principal fator de determinação do risco social, por meio do qual os agentes públicos confirmam e buscam saciar a sede de punição da sociedade civil permanentemente ameaçada por seus "inimigos", perpetuando-se no poder por meio da manutenção do populismo penal.

A mídia acaba se tornando instrumento indispensável na construção da sociedade punitiva brasileira, justamente por corroborar a oposição entre semântico-normativa entre "cidadãos de bem" e "bandidos", confirmando, portanto, os pressupostos neoliberais que subjazem ao sistema jurídico-penal.

A partir dessa divisão, o Poder Judiciário passou a ser contaminado pelo mediatismo da criminalidade, convertendo seus rituais e liturgias em meras confirmações das expectativas normativas da sociedade punitiva, confirmadas por meio dos julgamentos transmitidos simultaneamente.

Essa situação foi capaz de produzir uma nova espécie de vingança privada, executada a partir dos dados coletados pela internet e comparados às expectativas semântico-normativas dos "cidadãos de bem", em detrimento das próprias figuras jurídico-penais.

Imperioso estudarmos o populismo penal midiático, contribuindo não apenas para o desvelamento dos fatores sociológicos subjacentes aos jogos de poder político no Brasil, assim como para desvendar os objetivos que se encontram por detrás da formulação midiática dos pressupostos semântico-normativos relacionados à criminalidade.

O sistema penal nacional, por se voltar a regular um país de modernidade periférica, bem como em decorrência das influências ocidentais relacionadas ao liberal-individualismo, volta-se, enfaticamente, a entender como desviantes os comportamentos que desfavorecem o status quo econômico, político e social.

Nesse aspecto, "[...] a seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais" (Zaffaroni, 1991, p. 15).

São, sim, predicados "[...] estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais", especialmente, entretanto, aqueles observados nos países de modernidade tardia, bem como naqueles que incorporaram os paradigmas neoliberais de concentração e manutenção do capital (Zaffaroni, 1991, p. 15).

Em que pese o fato da legitimidade desse sistema penas excludente ser constantemente desafiada pelos teóricos e operadores do direito, há um fator de especial relevância para a manutenção do quadro de desigualdade corroborada pelas figuras jurídico-criminais e processuais.

Esse espetacular concentrado pertence ao capitalismo burocrático, "[...] embora possa ser importado como técnica do poder estatal sobre economias mistas mais atrasadas, ou em certos momentos de crise do capitalismo avançado" (Debord, 1997, p. 36), especialmente se instrumentalizado de modo a permitir a conservação do atraso.

No contexto de espetacularização da criminalidade, voltada à manutenção do status quo, é que se estabelece a "lógica" das reportagens escritas ou televisionadas, em um formato semiliterário de se demonstrar as agruras dos "cidadãos de bem" nas garras dos "vis e demoníacos" criminosos.

Demonstra-se algo como a lógica das regras de um jogo de polícia e ladrão, no qual "[...] a polícia tem que pegar os ladrões, colocá-los na prisão e mantê-los. É um trabalho duro e perigoso. Se os caras maus tiverem uma chance, vão escapar. Este era o jogo de nossa infância" (Christie, 1998, p. 28).

Esse é, também, "[...] o jogo da mídia, uma realidade de acordo com o script. O criminoso é detido, fica preso enquanto aguarda o julgamento, e depois vai direto para a penitenciária cumprir a sentença". Para isso, "[...] o terreno já está preparado. A mídia prepara-o dia e noite. Os políticos cerram fileiras com a mídia" (Christie, 1998, p. 181).

A massificação da perspectiva do risco, aumentada pela sublimação do eterno duelo semântico-normativo entre os "cidadãos de bem" e os "criminosos", converte-se na sociedade punitiva, na qual o status quo é capaz de se perpetuar. Essa perpetuação, entretanto, depende da manutenção perene do populismo penal.

Nesse sentido, o populismo se relaciona a fórmulas políticas "[...] cuja fonte principal de inspiração e termo constante de referência é o povo, considerado como agregado social homogêneo e como exclusivo depositário de valores positivos, específicos e permanentes" (Incisa, 2004, págs. 980-986).

Ocorre que "[...] o conceito de povo não é racionalizado no Populismo, mas antes intuído ou apoditicamente postulado", pois, em relação ao populismo, referido conceito é "[...] tomado como mito a nível lírico e emotivo", a excluir a luta de classes, considerando-o como uma massa homogênea (Incisa, 2004, págs. 980-986).

A partir desse postulado (homogeneidade das massas populares), o Populismo não equivale aos movimentos de classe ou interclassistas, pois, nesse contexto, "[...] a divisão é entre o povo e o 'não-povo". O 'não-povo' é o tudo que é extrínseco a um povo histórica, territorial e qualitativamente determinado" (Incisa, 2004, págs. 980-986).

No populismo penal brasileiro, especificamente, o "povo" equivale ao "cidadão de bem" e dos predicados eleitos para sua conceituação, enquanto que o "não-povo" é, justamente, o conjunto abstrato e amorfo daqueles eleitos, jurídica, social, política e economicamente como "bandidos".

Nesse contexto, o estado de fascínio coletivo provocado pela televisão transforma a violência em um "[...] espetáculo contínuo, praticamente ininterrupto. Esta noção de espetáculo é interessante no sentido de pensarmos os programas de televisão, como produtos que ocupam o tempo de quem os consomem" (Teixeira, 2004, p. 32).

A mídia escrita e televisionada é um instrumento poderoso e, por muitos anos, essencial à formatação da sociedade punitiva brasileira, tendo em vista que justamente a programação noticiosa é que foi capaz de formatar os dois lados opostos na presente "luta semântico-normativa" entre "cidadãos de bem" e "bandidos".

Na contemporaneidade, as ordálios, linchamentos e fogueiras passam do mundo fenomênico ao virtual, contexto no qual os apontados como "bandidos" podem enfrentar punições muito mais graves do que aqueles que lhes seriam impostas por intermédio da condenação jurídico-penal.

No Brasil, "[...] o messianismo e o populismo deixaram de ser exclusivos nos espaços de luta eleitoral. O uso do discurso moralista já vai além da tentativa de conquista de votos ou da intenção de macular a imagens de adversários em propagandas e debates" (Salgado, 2018, págs. 202-203).

Não se pode descurar, ademais, que através da lei 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade) o legislador brasileiro tentou minimizar a exposição indevida junto à mídia, conforme artigo 13, inciso I: [...] Art. 13.  Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a: I - exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública [...]".

A inovação legislativa do ano de 2019 torna possível que tal lei auxilie na proteção à dignidade da pessoa humana, evitando sua exposição midiática, contudo, ainda assim é imperioso combater o populismo penal em sua essência, conforme mencionado alhures.

Embora a estratégia do populismo confie no desencantamento e na desilusão quanto à maioria dos partidos políticos pelos eleitores, que passam a confiar somente nos líderes políticos fundamentalistas, caracterizados pelo "[...] baixo apreço por controles, por checks and balances sobre sua atuação" (Salgado, 2018, p. 203), verificamos que o populismo penal midiático, neste ponto, criou um novo e aprimorado tipo de vingança privada, coletivizada em razão da facilitação do acesso às informações, capaz de conservar no poder os agentes públicos que agem no sentido dessas expectativas semântico normativas.

O Brasil expôs, ao longo de sua história, uma dificuldade enorme no enfrentamento da macrocriminalidade, aliada à perspectiva de respeito aos direitos mínimos constitucionais dos investigados, padecendo de um viés geral de efetividade dessas garantias, ainda que a Constituição Federal os assegure de maneira perpétua.

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Érika Silvana Saquetti Martins

Érika Silvana Saquetti Martins

Mestre em Direito UNINTER. Mestranda Políticas Públicas UFPR. Espec Dto e Proc Trabalho, Dto. Público e Notarial e Registral Anhanguera. Professora Pós Graduação latu sensu Direito Uninter. Advogada.

Robson Martins

Robson Martins

Doutorando em Direito. Mestre em Direito. Especialista em Direito Notarial e Registral e Direito Civil. Professor da Pós latu sensu da Uninter e ITE. Docente da ESMPU. Procurador da República.

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