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Pirita sumular ou: como o STJ começou a ignorar abusos em relações de consumo e amar as instituições financeiras

Está chovendo hambúrguer? Não, cartão de crédito. A súmula 532 do STJ corre ao lado de Boitatá e Curupira.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Atualizado às 11:54

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

13 de outubro de 2021. Adoentado (covid-19? O resultado estará no site do laboratório em breve), desço a escada do pequeno prédio em que moro e recebo das mãos da minha mãe uma caixa robusta de papelão com frutas, suco, iogurte, sopa e alimentos congelados - caseiros, diga-se de passagem. Obrigado, mãe. Retiro com cuidado os mimos da caixa, ajeitando-os um a um na cozinha. Sob o saco plástico com bananas e maçãs, no fundo do caixote, antevejo uma carta, que atiça a minha curiosidade. Conta? Multa de trânsito? Não, agora vejo melhor, é o envelope típico de banco, sabe aquele invólucro oblongo em que uma diminuta tela plástica exibe o endereço do destinatário impresso na correspondência?

Palpito internamente sobre o conteúdo num sucessivo atropelo de suposições. Sentencio, então; um pouco antes de tatear o papel: deve ser um cartão de crédito (não solicitado). Bingo. Seguidamente, abro a carta. Ourocard. Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.

Retornemos para 14 de abril de 2020, antes dos acepipes, ao princípio da pandemia em solo nacional, ao início deste texto. Como assim? Para o primeiro parágrafo? Não, para a idealização desta crônica, que concebi em 2020, na data indicada acima, mas cujo desenvolvimento abandonei por premências outras da vida - ou desânimo mesmo, pois Brasil/Nada Acontece/Feijoada. Não me lembro com exatidão, porém dou como certo o seguinte: minha mãe e minha tia receberam em um curto espaço de tempo dois cartões de crédito que não foram solicitados. Imediatamente veio à minha mente a súmula 532 do Superior Tribunal de Justiça. Opa! Enseja indenização o envio de cartão creditício sem explícita e anterior solicitação do consumidor! A título de curiosidade, e para facilitar a vida de quem se dispôs a ler as minhas lamúrias, ei-la, a massa impotente: "Constitui prática comercial abusiva o envio de cartão de crédito sem prévia e expressa solicitação do consumidor, configurando-se ato ilícito indenizável e sujeito à aplicação de multa administrativa." Como sei bem que, respeito à colegialidade, a antecedentes, à segurança jurídica etc., a gente vê por aqui, achei prudente pesquisar a quantas andava (ou não andava) a jurisprudência do Tribunal da Cidadania (aqui, mando um salve para um punhado de ministros, especialmente para aqueles que, no âmbito penal, aplicam o princípio da insignificância até - vejam só a que ponto chegamos - nos casos de crimes famélicos) a respeito da questão.

E, amigos, qual não foi a minha surpresa quando notei que, embora a súmula 532 do Superior Tribunal de Justiça seja relativamente recente, aprovada em 2015, seguidos julgados têm afastado a aplicação da súmula. Convenhamos, não há muita complexidade aqui. A instituição financeira, sem solicitação prévia e expressa, envia um pedaço de plástico colorido para endividar algum incauto, digo, para fomentar a atividade econômica por meio da concessão de crédito a particulares. Se a postagem ocorre sem requerimento anterior e explícito... Tchanam. Nada acontece. Vejamos quanto tempo resta para a súmula 297 do Supremo Tribunal Federal. Tergiversando um bocadinho, com todo o respeito ao Ministério Público, especificamente à turma de Interesses Difusos e Coletivos, mas não existe apenas a PEC 5 no mundo. A propósito, um detalhado manual da matéria, escrito por membros do parquet paulista, exemplifica a violação a direitos coletivos mencionando cobranças indevidas de pequeníssima monta a um sem-número de correntistas. Ok, a teoria do desvio produtivo do consumidor é bonita longe do Judiciário, porque senão "entra muito processo do pessoal pedindo dano moral, aí já viu, né?" (em cartaz no Fórum mais perto de você). Contudo, pirão primeiro quando a farinha é muita?

Assim, dos fatos envolvendo familiares, nasceu esta crônica, pelo menos o título. Entretanto, partejei a afrontosa hoje, 13 de outubro, que de libriana não tem nada.

E o Código de Defesa do Consumidor nessa história, como fica? Não fica. Desgraçadamente, o artigo 39, III, do códex consumerista depende de Fundações, Tribunais, mais servidores, mais infraestrutura, mais blá e blá e mais blá. Disse o Poder Constituinte Originário, no artigo 5º, XXXII, da Lei Fundamental da República: "O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor". Sim, senta lá, Cláudia. Da gripezinha que vou levando aos trancos e barrancos aos meros aborrecimentos, grandes negócios; a letra da Lei, aqui em sentido amplo, é somente legislação simbólica se ninguém lutar por ela. Alô, senhores Ministros, os Santos Cristos ouviram no noticiário que vocês iriam ajudar. Valeu, Renato Russo. Fui ao banheiro para fazer xixi, e a melodia da canção no culto evangélico da redondeza me lembrou Keane. A vontade de ouvir Keane passou. Agora escutarei Legião. Depois jogarei League of Legends. Enquanto isso, tomo o meu xarope fitoterápico à base de hedera helix. É hora da Nimesulida.

Sergio Andrade Yendo

Sergio Andrade Yendo

Advogado. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Presidente da Comissão de Teoria do Estado da Ordem dos Advogados do Brasil de São Bernardo do Campo (OAB/SBC).

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