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Filtro de relevância, a tábua de salvação do STJ

O artigo aborda ponto a ponto o texto da PEC 10/17 recentemente aprovada pelo Senado Federal e que estabeleceu o filtro de relevância para admissão dos recursos especiais no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Atualizado às 08:07

(Imagem: Arte Migalhas)

O Superior Tribunal de Justiça - STJ tem, entre outras, a competência para processar e julgar os Recursos Especiais nas causas decididas em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal1.

Essa competência constitucional restringe-se às situações em que tratados ou leis federais são tidos por violados, bem como àquelas em que se der a lei federal, interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal. Convém dizer ainda, que a matéria trazida ao Tribunal deve ser eminentemente de direito, ou seja, ao STJ, em recurso especial, compete apenas a análise de teses jurídicas, sem reexames de provas, por exemplo.

O STJ recebe, portanto, recursos oriundos de 27 Tribunais de Justiça e mais 5 Tribunais Regionais Federais e no ano de 2021 já recebeu 352.141 processos, dos quais 270.719 (76,88%) são recursais.2 Para conter a avalanche de processos, muitas estratégias foram postas em prática e a mais nova delas é o chamado filtro de relevância.

No dia 3 de novembro de 2021, o Senado Federal aprovou a criação do filtro de relevância para admissão dos recursos especiais. A proposta de emenda constitucional altera o artigo 105 da Constituição Federal para estabelecer que o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional a serem discutidas, cabendo ao STJ, o exame da admissão do recurso.

O texto destaca ainda, 6 situações nas quais haverá relevância presumida, quais sejam: ações penais, ações de improbidade administrativa, ações cujo valor de causa ultrapasse quinhentos salários mínimos, ações que possam gerar inelegibilidade, hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do STJ e, ainda, outras hipóteses previstas em lei.

A proposta estabelece um marco de vigência, determinando que a relevância somente será exigida nos recursos especiais interpostos após a entrada em vigor da sobredita emenda constitucional. Por fim, autoriza que, oportunamente, o valor da causa seja atualizado para os fins de atendimento do piso de quinhentos salários mínimos.

Deve-se considerar, inicialmente, que um dos principais motivos que levaram à aprovação da PEC pelo Senado foi a incomensurável quantidade de processos que tramitam pelo STJ, deixando transparecer que a necessidade do estabelecimento do filtro de relevância estaria mais relacionada com a incapacidade do STJ de analisar os recursos, que com a importância das questões jurídicas colocadas perante a Corte.

  Entretanto, a despeito de tais motivos, convém analisar o texto aprovado, a fim de tecer considerações sobre o seus desdobramentos e perspectivas de eficácia. Será que o filtro de relevância realmente se consolidará como um "tábua de salvação" para que o STJ diminua a quantidade de processos e efetivamente consiga ter tempo para cumprir a sua missão constitucional de analisar teses jurídicas?

A primeira percepção é que a Emenda Constitucional, tal qual aprovada, é totalmente ampla e apresenta quase nenhuma possibilidade de limitar o acesso à Corte Superior. Atente-se que o Tribunal somente poderá não o conhecer do recurso "irrelevante" pela manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento.

Ora, o Regimento Interno do STJ3 atribuiu ao Presidente do Tribunal a competência para fazer a admissibilidade dos recursos, esse expediente é que efetivamente tem diminuído de forma substancial a quantidade de processos na Corte, mesmo com a posterior interposição de agravos internos, o juízo de admissibilidade da presidência já põe por terra quase metade dos agravos em recurso especial.

Questiona-se então, por que não atribuir à presidência do tribunal a competência para analisar a relevância dos recursos? Este procedimento desburocratizaria a tramitação do recurso e, ainda assim, não obstaria que eventuais erros no juízo de admissibilidade presidencial fossem corrigidos pelas Turmas por meio dos recursos internos.

Outro ponto que parece minar a efetividade do texto aprovado pelo Senado é a relevância presumida das ações penais. Basicamente, esta determinação anula a aplicação do filtro de relevância nos processos da terceira Seção do Tribunal. Será que de fato quaisquer crimes devem ascender a análise do Superior Tribunal de Justiça?

Note-se que em versões anteriores o texto falava que a relevância seria presumida quando do julgamento da causa pudesse resultar "pena de reclusão em regime inicial fechado". O texto substitutivo escancarou as possibilidades, abrangendo assim toda e qualquer ação penal.

A mesma métrica de análise se aplica às ações de improbidade administrativa e às ações que possam gerar inelegibilidade. Aqui também, temos um mundo de processos, cujos réus (geralmente recorrentes e agravantes) são quase que exclusivamente políticos e autoridades. A pretensa "tábua de salvação do STJ" é também um passaporte especial para que os políticos possam acessar o tribunal por meio do Recurso Especial.

No inciso III, do parágrafo 2º, entra em destaque as ações cujo valor de causa ultrapasse 500 salários mínimos, outro critério potestativo que foi arbitrado sem maiores justificativas no relatório que referenciou a EC. Inicialmente o valor era 150 salários, depois mudou para 200 e, por fim, foi aprovado em 500 salários mínimos.

O valor é realmente vultoso e até poderia limitar a quantidade de processos no tribunal, se não fosse por duas outras razões: 1) a marca de 500 salários é apenas uma presunção de relevância e não implica dizer que causas de menor valor não possam ser erigidas ao STJ; 2) o próprio texto concedeu a oportunidade de a parte atualizar o valor da causa para os fins de que trata o art. 105, § 2º, III, da Constituição.

Que sentido há em autorizar a modificação do valor da causa para fins de atendimento do piso de elegibilidade presumida do recurso? Em relação ao teto, a técnica seria mais que coerente, como acontece nos juizados especiais, por exemplo. Nesse caso, o autor renuncia parte do seu direito para poder ter acesso à velocidade da Justiça Especial, mas o que a EC fez foi sugerir que o recorrente pudesse aumentar o valor da causa para ascender ao patamar de 500 salários mínimos.

A última causa presumida de relevância contempla todas as hipóteses em que o acórdão recorrido contraria a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça. Simplesmente, a EC deu passe livre para os recursos especiais interpostos com base na alínea "c" do artigo 105 da CF/88. A divergência jurisprudencial é responsável por grande parte dos processos do tribunal, sobretudo porque, infelizmente, "jurisprudência dominante do STJ" ainda é um conceito jurídico indeterminado.

Definitivamente, o filtro de relevância possui muitos furos, mesmo sem considerar as outras hipóteses que certamente serão acrescidas pela legislação infraconstitucional, conforme expressa previsão da própria EC.

Por tudo que foi exposto, pode-se dizer que o filtro de relevância apresenta sinais de inefetividade, sobretudo pela amplitude de situações em que a relevância é pretensamente presumida. Certamente o STJ dará conta de rescrever tais requisitos à luz da sua própria interpretação, com vista a transformar o natimorto filtro de relevância em uma real tábua de salvação.

______________

1 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988

2 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Estatísticas. www.stj.jus.br, 2021. Disponível em: . Acesso em: 04, nov/2021

3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Regimento Interno do STJ de 2021. Brasília: STJ, 2021. Disponível em: . Acesso em: 04, nov/2021

Alisson Santos de Almeida

Alisson Santos de Almeida

Bacharel em direito, Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho e Mestrando em Direito, Regulação e Políticas Públicas pela Universidade Brasília - UnB. Ex-advogado do Município de Camaçari.

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