Condenação de ofício e a violação ao princípio do contraditório
A velha discussão sobre a condenação criminal sem requerimento ministerial sob novo viés: o da impossibilidade de se exercer o contraditório diante de pedido de absolvição do titular da ação penal.
terça-feira, 16 de novembro de 2021
Atualizado às 11:26
O momento histórico da promulgação de uma nova lei pode nos ajudar a refletir sobre a construção ideológica que fundamentou - ou, no mínimo, permeou - sua formulação.
Na ditadura fascista italiana, por exemplo, foi promulgado o Código Processual Penal de 1930, cujo sistema inquisitório adotado empobrecia as garantias do acusado como forma de alargar o controle estatal sobre a população.
No Brasil, foi durante a ditadura da Era Vargas - fortemente influenciada pelo fascismo europeu - que se promulgou nosso Código de Processo Penal de 1941, vigente até hoje. Inspirado no código italiano, nossa legislação processual, não por coincidência, concentrou enorme poder nas mãos do julgador1.
Reflexo disso é seu artigo 385, que admite a condenação do acusado mesmo diante do pedido de absolvição do Ministério Público.
Com a chegada da Constituição da República de 1988, e seu alinhamento ao sistema acusatório como base para nosso ordenamento processual penal, passou-se a discutir se tal dispositivo legal estaria recepcionado pela nova constituição.
Apesar de a doutrina majoritária advertir sobre a incompatibilidade da condenação de ofício com o sistema acusatório, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal sedimentou entendimento contrário, rechaçando a tese de revogação tácita do artigo 385 do Código de Processo Penal pela Constituição Federal de 19882.
Mais recentemente, as alterações legislativas promovidas pelo Pacote Anticrime permitiram um avanço importante no debate.
O novo artigo 3º-A do CPP passou a prever expressamente a estrutura acusatória para o processo penal, vedando a iniciativa do juiz. O que antes estava implícito no texto constitucional, e decorria de uma compreensão sistemática dos seus princípios, valores e regras, agora passa a ter previsão taxativa na legislação federal.
Para além disso, entendemos que a consequência lógica - e jurídica - do pedido absolutório ministerial também deve decorrer de outra ótica: o da impossibilidade de se exercer a ampla defesa e o contraditório de forma plena diante de pedido de absolvição.
No processo penal, o réu se defende das acusações que lhe são imputadas - no caso da ação penal pública, pelo Ministério Público -, tanto é assim que, logicamente, o réu sempre fala depois da acusação.
O titular da ação penal pública, por sua vez, deve proceder um juízo de ponderação acerca do conjunto probatório em dois momentos: i) quando do oferecimento da denúncia, o órgão acusador verifica a existência de indícios mínimos que possibilitem a abertura do processual penal; e ii) quando se manifesta em alegações finais, verifica se as suas hipóteses iniciais se confirmaram ou se foram infirmadas pelas provas produzidas durante a instrução processual.
No primeiro momento, ao oferecer a denúncia, o Ministério Público vislumbra provas de materialidade de crime e indícios mínimos de autoria. É contra tal construção ministerial que o réu deve se defender em sua resposta à acusação.
No segundo momento, na hipótese em que o Ministério Público requer a absolvição do réu nas alegações finais, pode-se dizer que, produzidas todas as provas possíveis, não se confirmou a materialidade e a autoria. Podemos dizer que ele retira sua acusação, transmutando o caráter de sua pretensão de acusatória para absolutória.
Ou seja: quando o Ministério Público se manifesta pela absolvição, o réu não tem do que se defender. As teses da acusação se mostraram infundadas para a própria acusação. Não é incomum, inclusive, encontrar no judiciário brasileiro alegações finais defensivas que se limitam a copiar as alegações finais ministeriais quando há pedido de absolvição.
Se, diante de tal pedido, a magistrada ou o magistrado condena o réu, restará configurado o cerceamento de defesa por ausência de sua manifestação sobre as hipóteses acusatórias e os elementos probatórios pelos quais fora condenado.
A lógica é a mesma que leva à rejeição da denúncia inepta (que, por ser incompreensível, acaba impedindo a formulação da resposta à acusação pela defesa): se o órgão ministerial retira seu pedido, e não se manifesta sobre as razões e provas pelas quais o réu deve ser condenado, como se pode esperar que a defesa, em suas alegações finais, faça o devido contraponto?
Não se questiona aqui, é evidente, a liberdade de convencimento da magistrada ou do magistrado. Ela ou ele pode - e deve - decidir de acordo com sua livre convicção, mas sempre dentro dos limites impostos pelo próprio titular da ação penal.
Assim como não se pode iniciar a ação penal sem o oferecimento de denúncia pelo órgão ministerial, tampouco se pode proceder a condenação de ofício.
É assim que se desenha o sistema acusatório e se fazem cumprir as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Interpretação divergente seria admitir que a construção ideológica que fundamentou a possibilidade da condenação de ofício, em 1941, permanece vigente até hoje, em descompasso com o momento histórico inaugurado pela Constituição de 1988.
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1 CABRERA (2016) menciona que a exposição de motivos do CPP brasileiro possui "discursividade idêntica à declarada pelo legislador italiano de 1930, qual seja: dar 'maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinquem'".
2 Em precedente isolado, porém unânime, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Ação Penal originária nº 960, entendeu a impossibilidade de condenação do réu diante do pedido de absolvição do órgão ministerial.
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CABRERA, Michelle Gironda. A mentalidade inquisitória no processo penal brasileiro (Parte II). Canal Ciências Jurídicas, publicado em 2016. Disponível aqui.
DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. 1º Ofício da Defensoria Pública-Geral da União. Pedido de habeas corpus 192.298, apresentado perante o Supremo Tribunal Federal.
FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. Da impossibilidade do juiz condenar quando há o pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público. IBCCRIM, publicado em 01 de julho de 2005. Disponível aqui.
SILVA FILHO, Nívio de Freitas. Procuradoria Geral da República do Ministério Público Federal. Parecer apresentado nos autos do Recurso Especial 1.612.551/RJ, do Superior Tribunal de Justiça. Relatoria do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Brasília, 04 de novembro de 2016.
Vitória de Macedo Buzzi
Advogada Criminalista. Sócia do escritório De Macedo Buzzi e Souza Advocacia e Consultoria. Secretária-adjunta da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB e membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura no Ministério de Direitos Humanos. Mestranda em Direito na UnB e integrante da clínica de direitos humanos Cravinas - Prática em Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos.



