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Mulher gosta de política: os danos da violência política ao longo de anos (milênios)

Mulheres gostam de política no Brasil e em todos os lugares. Não fosse assim, não representariam 45,72% das filiadas aos partidos, nem atuariam intensamente na política informal.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Atualizado às 14:31

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

"- Eu sei. Você não gosta de estar aqui.
- Eu gosto.
- Não gosta. Esse lugar não é para você. Olha como não tem muitas mulheres".

Os humanos são fruto da essência e da existência, nela incluída a educação, que nos prepara para uma vida com sentido. Somos forjados por palavras, ações íntimas e compartilhadas, sob a força de vetores psíquicos, sociais e econômicos (id, ego, superego).

Na milenar exclusão dos espaços públicos institucionais, a mulher foi caricaturizada como não amante da política ou incapaz de exercê-la com domínio da razão, ideias corroboradas pelas normas legais ao longo dos tempos. A desconstrução desses estereótipos de gênero e o direito ao pertencimento a todos os espaços avançam na tentativa de se estabelecerem como discursos hegemônicos desde meados do século XX. Entretanto, a entrada nos ambientes de poder não tem sido fácil e difere de ritmo a depender do país.

Ideias ousadas e inovações nos institutos políticos passaram a marcar as reformas democráticas e legais de inúmeros países. No Brasil, sobretudo desde a implementação das cotas de gênero pós-Constituição de 1988, muito se tem refletido e teorizado sobre a participação da mulher na política. O discurso, para alguns, parece inclusive trivial ou repetitivo, mas é preciso ainda termos muita compreensão empática a respeito desse problema público. A realidade, porém, é que já se vão mais de 25 anos que se defende o direito elementar de a mulher estar na política formal - ao mesmo tempo em que se tem a consciência teórica de que as cotas devem ser medidas temporárias -, mas a mera previsão normativa não tem sido suficiente para efetivar o Ordenamento Jurídico brasileiro, nem implementar os direitos por ele consagrados. Diante de tão grave constatação, é preciso entender os comportamentos sociais e institucionais que viabilizam ou impedem o respeito normativo.

O percurso verificado após a previsão legislativa das cotas não teve como resultado a sua efetiva implementação e, muito menos, o alcance dos resultados pretendidos. Na realidade, condutas de muitos agentes institucionais e não institucionais impediram sua realização. Assim, o caminho que se terminou por trilhar foi: previsão de cotas; seguida por um contínuo desrespeito a elas, sobretudo com a apresentação de candidaturas fraudulentas; pressão da sociedade civil e das mulheres para que fosse atribuída força normativa à regra; e reconhecimento de sanção por seu descumprimento, com forte atuação judicial, caracterizada, por exemplo, pelo reconhecimento de que fraude no registro pode levar à cassação de mandatos e pela determinação de maior acesso ao Fundo Especial de Financiamento de Campanha.  

São diversos entraves no caminho rumo aos cargos político-eletivos, mas não se pode esquecer do papel desempenhado pela Justiça Eleitoral no sentido de fomentar o debate dessa questão, seja através da atuação jurisdicional ou administrativa.

Ocorre que, mesmo com esses esforços, o Brasil segue com alarmantes índices de sub-representação. Na prática, verifica-se que a mulher ainda não consegue ocupar o lugar que lhe é de direito ou, quando o conquista, enfrenta inúmeras dificuldades, o que, em certa medida, explica a persistência, no imaginário social, da ideia de que elas não gostam de política ou de que, se gostassem, teriam maior proveito das cotas ou sequer precisariam delas.

Essa intuição falha, entretanto, releva a existência de um fenômeno estrutural nocivo à democracia, o qual deveria ter sido considerado, pelo menos, desde o momento em que foram instituídas as políticas públicas afirmativas: a violência política de gênero, em suas diversas manifestações, igualmente afasta a mulher dos espaços de pode.

Assim, praticar políticas afirmativas sem a concomitância do combate à violência política de gênero pode levar à sensação de que as cotas são inefetivas, diante do fato de que, por exemplo, apesar de as mulheres terem cota de 30% de candidatura, ocupam apenas 15% do Parlamento1. A sub-representação feminina, entretanto, é um dos reflexos de uma espécie de violência que somente foi normativamente reconhecida no Brasil há poucos meses, com a promulgação da lei 14.192/21.

As dificuldades de ocupação dos espaços públicos são refletidas, por exemplo, pela verificação de que, a despeito do crescimento da mobilização em torno de candidaturas femininas, tanto por parte das instituições quanto da sociedade civil, em 2020, apenas 33,6% das candidaturas foram de mulheres, percentual que está apenas um pouco acima da cota estabelecida por lei2. Em relação aos resultados, o cenário se torna ainda mais dramático, na medida em que foram eleitas apenas 651 prefeitas (12,1%) - sendo que, das 26 capitais, apenas uma mulher foi eleita3 -, e 9.196 vereadoras (16%), sendo que 900 municípios não tiveram nenhuma vereadora eleita (17%)4.

No nível intrapartidário, as barreiras para a efetiva participação das mulheres foi demonstrada em pesquisa publicada por Wagner Luiz Zaclikevis e Ana Claudia Santano5, a qual apontou que, nos órgãos definitivos de 33 partidos analisados, a representatividade feminina era de apenas 27,5%. Em relação às funções executivas, como presidência, secretarias e tesourarias, com respectivas suplências, adjunções/auxiliares, a representação era de apenas 18%, enquanto, em relação à presidência especificamente, apenas em 4 partidos (12,12%)  o cargo era ocupado por mulheres.

Como reconheceu Martha Nussbaum, "as mulheres e outras pessoas desfavorecidas, frequentemente, exibem preferências adaptativas, formadas sob condições injustas de vida."6 Ou seja, elas tendem a "adaptar suas preferências àquilo que acham que podem alcançar e aquilo que sua sociedade diz ser uma conquista adequada para elas." No caso da violência política de gênero, mais do que ser uma forma de a sociedade dizer o que é adequado, é um modo de expulsar as mulheres dos espaços públicos e de impor o que, supostamente, não pode ser realizado por elas. Temos inúmeros exemplos dessa prática nociva.

Ainda que se admita que a vivência da política demanda um certo preparo para exposições e embates, é fato que há algo distinto quando as agressões são direcionadas e intensificadas apenas em razão do gênero, funcionando com uma força claramente contrária ao esforço pretendido pelas cotas, gerando um certo "medo da participação" e um cálculo prévio sentimental e racional dos custos emocional, social e político da busca pela inserção na política formal. Esse cálculo tem padrões diferentes a depender do gênero de quem o faz.

A violência política contra as mulheres faz com que muito do empenho para construir caminhos na política seja posto abaixo num movimento contrário, como um tapa em um castelo de cartas demoradamente arquitetado. Não à toa a Comissão dos Direitos da Mulher (CMULHER) da Câmara dos Deputados aprovou emendas ao Orçamento da União para 2022, por meio das quais destinou, dentre outros recursos, 700 milhões de reais para políticas de igualdade e enfrentamento à violência contra a mulher e 50 milhões de reais para a área de política para mulheres.7

Para evitar que o país continue na vergonhosa posição de 140º lugar no ranking mundial da União Interparlamentar (UIP) que avalia a participação política de mulheres em 192 países8, será necessário que todas a instituições envolvidas e a sociedade civil realizem esforços para garantir a efetividade da lei e de todas as demais normas que venham a combater a violência política de gênero.

É preciso recuperar o tempo perdido, considerando que os direitos civis e sociais das mulheres deixam de receber o devido debate quando lhes é impedido o acesso aos espaços de decisão. Também se faz necessário revermos o próprio conceito de mérito numa sociedade tão desigual como a nossa. É discurso fácil e superficial que se as mulheres quisessem, apresentariam candidaturas, seriam eleitas por outras mulheres e, assim, não haveria esse fosso de desigualdades na política.

Como aponta Michael Sandel, a visão de liberdade individual criou a falsa ideia de que "nosso destino está em nossas mãos". Contudo, "essa visão de liberdade nos afasta das obrigações de um projeto democrático compartilhado9". Os diversos entraves que as mulheres encontram na trajetória do exercício pleno de sua liberdade individual minam o discurso meritocrático formal.

A frase de Aristóteles de que o homem é um animal político, se bem interpretada numa sociedade que dignifica a mulher, há de ser entendida como o ser humano é um animal político. A manifestação da ideia de que mulher não gosta ou não está apta à política reverbera como violência política de gênero, sem embasamento, sobretudo quando consideradas as preferências adaptativas a que Martha Nussbaum faz referência.

Mulheres gostam de política no Brasil e em todos os lugares. Não fosse assim, não representariam 45,72% das filiadas10 aos partidos, nem atuariam intensamente na política informal. É preciso que essa força vital se enraíze nas instituições e nos demais espaços formais de poder. Só assim a política terá vigor real e compatível com o dinamismo da sociedade. A democracia não exige "igualdade perfeita", mas "exige que cidadãos de diferentes níveis sociais e estilos de vida se encontrem em espaços compartilhados e lugares públicos. Por que é assim que aprendemos a negociar e acatar nossas diferenças"11.

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1- BRASIL. Câmara dos Deputados. Especialistas lamentam baixa representatividade feminina na política. Política e Administração Pública. Disponível aqui. Acesso em: 23 nov. 2021.

2- SANTANO, Ana Claudia; MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. O sistema político brasileiro desde a perspectiva da inclusa~o: conquistas e desafios. [s.l.]. Transparência Eleitoral Brasil/National Democratic Institute, 2021, p. 15. Disponível aqui. Acesso em: 23 nov. 2021.

3- CNN BRASIL. Apenas uma mulher se elegeu como prefeita de uma capital; número é igual a 2016. Disponível aqui. Acesso em: 23 nov. 2021.

4- G1. Eleições 2020 - Mais de 900 cidades do país não terão nenhuma mulher na Câmara Municipal. Disponível aqui. Acesso em: 23 nov. 2021.

5- ZACLIKEVIS, Wagner Luiz; SANTANO, Ana Claudia. Os desafios da representatividade de mulheres no intramuros partidário: The challenges of women's representativity on the walls withinthe political party. Revista Instituto Política por. de. para Mulheres, v. 1, n. 1, p. 33-56, 2020, p. 49-50.

6- NUSSBAUM, Martha. Fronteiras da Justiça: Deficiência, Nacionalidade, Pertencimento à espécie. Tradução Susana de Castro. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 88.

7- BRASIL. Câmara dos Deputados. Comissão aprova emendas ao orçamento em favor dos Direitos da Mulher. Secretaria da Mulher Disponível aqui. Acesso em: 23 nov. 2021.

8- BRASIL. Câmara dos Deputados. Câmara dos Deputados lança Observatório Nacional da Mulher na Política; acompanhe. Disponível aqui. Acesso em: 23 nov. 2021.

9- SANDEL, Michael. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? Tradução: Bhuvi Libânio. 1º Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020, E-book.

10- BRASIL. TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Estatísticas do eleitorado - Eleitores filiados por sexo e faixa etária. Disponível aqui. Acesso em: 23 nov. 2021.

11- SANDEL, Michael. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? Tradução: Bhuvi Libânio. 1º Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020, E-book.

Raquel Cavalcanti Ramos Machado

VIP Raquel Cavalcanti Ramos Machado

Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil.

Desirée Cavalcante Ferreira

Desirée Cavalcante Ferreira

Mestra e doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Integrante do Observatório de Violência Política Contra a Mulher, da Comissão Especial do Pacto Global do Conselho Federal da OAB e da Comissão Especial Brasil/ONU de Integração Jurídica e Diplomacia Cidadã para Implementação dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas da OAB/CE.

Jéssica Teles de Almeida

Jéssica Teles de Almeida

Mestra e Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Professora de Direito Eleitoral da UESPI. Coordenadora do Curso de Direito da FIED/UNINTA. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE,do Grupo de Pesquisa Diálogo ACI, na linha de pesquisa Direito Eleitoral Internacional. Coordenadora do Grupo Anajás: Democracia, Poder Público e Direitos Humanos, da UESPI. Pesquisadora e Membro Fundadora do Grupo Ágora (UFC).

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