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A atividade interpretativa e o elemento histórico: o texto jurídico como um palimpsesto

O elemento histórico é de fundamental importância na atividade interpretativa, razão pela qual o texto jurídico, para além de objeto da atividade interpretativa, deve ser visto como um palimpsesto.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Atualizado em 2 de dezembro de 2021 14:34

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Todas as leis são, como regra, formuladas em termos gerais. Consolidam princípios, fixam regras, estabelecendo normas em linguagem clara e precisa, sem, contudo, descer a minúcias. Nesse contexto, cabe ao operador do direito a tarefa de estabelecer a relação entre o texto abstrato e o caso concreto, mais especificamente entre o signo (texto jurídico) e o fato social, tarefa essa realizada por meio da interpretação.

Interpretar, como assevera Carlos Maximiliano1, consiste em "determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito". Na atividade interpretativa, grande valor deve ser dado ao elemento histórico. Como assevera Maximiliano, o texto "que hoje vigora abrolhou de germes existentes no passado; o Direito não se inventa; é um produto lento da evolução, adaptado ao meio; com acompanhar o desenvolvimento desta, descobrir a origem e as transformações históricas de um instituto, obtém-se alguma luz para o compreender bem. Só as pessoas estranhas à ciência jurídica acreditam na possibilidade de se fazerem leis inteiramente novas, creem ser um Código obra pessoal de A ou B. O autor aparente da norma positiva apenas assimila, aproveita e consolida o que encontra no país e, em pequena parte, entre povos do mesmo grau de civilização. Consiste o Direito atual em reproduções, ora integrais, ora ligeiramente modificadas, de preceitos preexistentes"2.

Nesse contexto, o texto jurídico, para além de objeto da atividade interpretativa, deve ser visto como um palimpsesto. A palavra "palimpsesto", do grego antigo "pa??µ??st??"3, designa, em sua essência, algo que foi apagado e reescrito. Nos tempos remotos, devido ao elevado custo de um pergaminho, disseminou-se a prática de raspar a primeira inscrição e escrever outra em seu lugar. Como resultado, era possível ver a nova inscrição e também resquícios do velho texto, isto é, tanto o presente quanto o passado4. Palimpsesto, assim, é um pergaminho que foi raspado para ser novamente utilizado5. No sentido figurado, o termo palimpsesto passou a designar todas as obras derivadas de uma anterior, seja por imitação ou transformação6.

Com o texto jurídico, ocorre fenômeno similar. Quase sempre é possível afirmar que o texto jurídico é um palimpsesto7. O texto jurídico jamais surge de forma espontânea, do zero, a partir do nada. Novas leis são elaboradas a partir da reescrita e aprimoramento de textos antigos, ainda que provoquem grandes rupturas. Da mesma forma, o texto doutrinário é escrito a partir da análise das normas positivadas. Por fim, também a jurisprudência é consolidada a partir da análise e superação de precedentes anteriores.

Nesse sentido, como explica François Ost, o texto jurídico quase sempre deriva de outro texto jurídico anterior. A hipertextualidade é a forma normal de geração dos textos jurídicos8. Destaca o autor que "em quase todos os casos, o texto jurídico derivará de um texto precedente, pela via de transformação, de imitação ou de individualização". No processo de positivação da norma, da Constituição Federal até os atos normativos de menor hierarquia, uma norma jurídica deriva da outra (pirâmide de Kelsen). Além disso, mesmo nas mudanças legislativas, o texto antigo é a referência a partir da qual é escrito o novo texto, com várias regras novas, mas outras antigas, simplesmente mantidas. Ademais, mesmo a jurisprudência é construída por um processo de aplicação e transformação, com a modificação e superação de precedentes.

Em arremate, François Ost sintetiza que "de fato, tudo se passa como se a geração espontânea não existisse em direito; nada de página em branco, somente o palimpsesto; nada de ab-rogação radical, somente o apagamento progressivo; nada de transformação brutal, somente o enxerto, a hibridação, a sedimentação."9

Pode-se afirmar, portanto, que o texto jurídico, para além de objeto da atividade interpretativa, deve ser visto como um palimpsesto. Essa constatação é fundamental para destacar a importância do passado no Direito e a especial importância de sua história. O texto jurídico jamais surge de forma espontânea, do zero, a partir do nada, razão pela qual o elemento histórico é de fundamental importância na atividade interpretativa.

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1 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito / Carlos Maximiliano; apresentação Alyson Mascaro. (Fora de série) - 22. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2020.

2 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito / Carlos Maximiliano; apresentação Alyson Mascaro. (Fora de série) - 22. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2020.

ESCOBAR, A'ngel (ed.). El palimpsesto grecolatino como feno'meno librario y textual. Zaragoza: Institucio'n Fernando el Cato'lico, 2006. Pág. 12/13.

4 GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Traduc¸a~o de Luciene Guimara~es e Maria Anto^nia Ramos Coutinho. UFMG: Faculdade de Letras, 2005. Pág. 06.

5 SIDOU, J. M. Othon (org.). Dicionário Jurídico : Academia Brasileira de Letras Jurídicas. 11. Ed. Rio de Janeiro : Forense, 2016. Pág. 442; REZENDE, Antônio Martinez de; BIANCHET, Sandra Braga. Dicionário do latim essencial. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. Pág. 266.

6 GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Traduc¸a~o de Luciene Guimara~es e Maria Anto^nia Ramos Coutinho. UFMG: Faculdade de Letras, 2005. Pág. 06.

OST, François. O tempo do direito. Tradução: Élcio Fernandes. Revisão técnica: Carlos Aurélio Mota de Souza. Bauru: Editora Edusc, 2005. Pág. 97/98.

8 OST, François. O tempo do direito. Tradução: Élcio Fernandes. Revisão técnica: Carlos Aurélio Mota de Souza. Bauru: Editora Edusc, 2005. Pág. 97/98.

OST, François. O tempo do direito. Tradução: Élcio Fernandes. Revisão técnica: Carlos Aurélio Mota de Souza. Bauru: Editora Edusc, 2005. Pág. 97/98.

Murilo Alan Volpi

Murilo Alan Volpi

Promotor Substituto no Estado do Paraná (MP/PR). Doutorando e Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Especialista em Direito Tributário pela USP (FDRP/USP). Já foi Advogado, Analista Jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP/SP) e Delegado de Polícia no Estado de Minas Gerais (PC/MG).

Matheus Tauan Volpi

Matheus Tauan Volpi

Delegado de Polícia no Estado de Minas Gerais (PC/MG). Doutorando em Direito Tributário pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Especialista em Direito Tributário pela USP. Professor de Direito Penal e Processo Penal na UNIP-São José do Rio Preto/SP. Já foi Advogado e Analista Jurídico do Ministério Público (MP/SP).

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