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Alta do dólar indica que vale rediscutir a tributação do setor tabagista em 2022

A extrafiscalidade tributária é medida de controle positivo para que o Estado estabeleça a redução de alíquotas direcionadas ao setor tabagista, visando o combate do crime organizado de contrabando de cigarros.

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Atualizado às 18:44

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Os cigarros contrabandeados já são vendidos em ruas, bares e mercados brasileiros, sob um comércio cada vez mais despudorado. As empresas produtoras desses itens, que são regulares e grandes pagadoras de impostos no Paraguai1, não declaram saída de exportação ao Brasil, em razão de proibição pelo ordenamento interno. Ou seja: todo cigarro paraguaio encontrado e território brasileiro é fruto de contrabando praticado pelo crime organizado.

Além de transgredirem normas tributárias, penais e sanitárias brasileiras, o cigarro contrabandeado retira da economia brasileira um valor estimado de 12 bilhões de reais, além de cerca de 180 mil empregos formais.

O problema não é fácil e resolver. Infelizmente, é fato notório que fiscalização brasileira - tanto a tributária quanto a policial - é incapaz de impedir, ou até mesmo minimizar substancialmente a prática desse crime e vários fatores concorrem para que se ateste essa vulnerabilidade.

Primeiro, a desproporção existente entre a extensão da região de fronteira brasileira com o efetivo de policiais federais incumbidos desse controle. São 15.179 km de fronteira estabelecidos com 10 países diferentes, por 11 Estados-Membros2 e cerca de 4.400 policiais Federais existentes nos Estados fronteiriços. Desse número, considerando os intervalos de trabalho e os que efetivamente realizam o controle nas delegacias fronteiriças, podemos considerar que, se um décimo desse total ficasse, in loco, a cargo dessa função de modo permanente, teríamos uma estimada proporção de 440 policiais federais para guarda de uma fronteira com milhares de quilômetros.

Segundo, que as autoridades policiais também se preocupam com a ocorrência de diversos outros tipos penais de fronteira além do tráfico de cigarro3, tais como contrabando em geral; descaminho; narcotráfico, tráfico de armas, pessoas, animais, e de recursos naturais. E terceiro, que a região de fronteira, em sua maioria, é composta por vegetação e rios, fato que dificulta o trabalho policial consideravelmente, isso sem contar as mutações, expansões e variedades de rotas4 manejadas pelo crime organizado.

Além de todos esses embaraços fiscalizatórios, salta aos olhos o potencial de lucratividade dessa atividade, pois, além de menor custo de produção, a inexistência de tributação de produtos ilegais faz com que a margem de lucro, de largada, escape de tributações que hoje variam entre 70 e 90%, a depender do ICMS exigido em cada Estado-Membro da Federação.

Na impossibilidade de conter substancialmente o contrabando de cigarros no Brasil através da atividade policial, é preciso tatear outros mecanismos internos aptos a introduzir políticas públicas, que hoje somente prima por desestimular a o consumo desses produtos, tendo em vista a sua incontroversa periculosidade à saúde. Essa é a medida almejada há décadas, pois num mundo ideal é necessário que os indivíduos não atentem contra a própria saúde.

Mas navegando em terreno mais realista, no qual ainda se vê um consumo excessivo de cigarros no Brasil onde cerca de 14% das pessoas são fumantes, duas medidas se fazem necessárias para que esse lamentável consumo não seja direcionado aos cigarros contrabandeados, que hoje abocanham absurdos 50% do mercado, com tendência de crescimento.

A primeira é que os cigarros comercializados regularmente em território nacional sejam mais atrativos ao mercado, diferenciados dos demais em qualidade e variedade, além de se mostrarem menos danosos à saúde, se é que realmente isso é possível.

Mas essa tarefa não é das mais fáceis, principalmente diante da questionável posição do STF, que vem assumindo viés pró Agências Reguladoras, deixando assentada a ideia de que a função normativa das agências reguladoras não se confunde com a função regulamentadora da administração (art. 84, IV, da CF/88).

A exemplo disso, em 2018 foi julgado o mérito da ADIn 4.874, na qual se discutiu a possibilidade de adição de substâncias ao tabaco, tornando o cigarro comercializado no Brasil mais atrativo ao mercado. Na ocasião, foi afirmada a competência normativa da ANVISA para proibir certas atividades econômicas, além de intervir na própria esfera particular dos indivíduos que desejavam consumir cigarros com determinados sabores.

Questionou-se o caráter genérico e abstrato da RDC 14/12, que proíbe a importação e a comercialização de produtos fumígenos derivados do tabaco que contenham "qualquer substância ou composto, que não seja tabaco ou água, utilizado no processamento das folhas de tabaco e do tabaco reconstituído, na fabricação e no acondicionamento de um produto fumígeno derivado do tabaco, incluindo açúcares, adoçantes, edulcorantes, aromatizantes, flavorizantes e ameliorantes".

As discussões do referido julgado muito disseram sobre a amplitude do poder regulamentar das Agências Reguladoras, mas pouco sobre o caso concreto, que na verdade deveria revelar a presença ou ausência de nocividade à saúde no bojo das intenções comerciais pretendidas pelas empresas. Ao nosso sentir, há uma açodada tendência pós-moderna de transferir às Agências Reguladoras uma competência autônoma (reserva de regulação), num cenário onde tais órgãos ainda não atingiram maturidade funcional o suficiente para assumir funções típicas do Poder Legislativo.

Em segundo lugar, e aqui é o foco do presente ensaio, o panorama tributário, que há muito tempo vem sendo questionado, deve ser definitivamente repensado com o propósito de combater o crime organizado de tráfico de cigarros no Brasil.

A extravagância das alíquotas que hoje incidem sobre a tributação do setor tabagista se deve ao critério da essencialidade e extrafiscalidade, tendo as legislações tributárias adotado uma bem-intencionada, mas desatualizada percepção de que o consumo de produtos não essenciais e que são deletérios à saúde pública deve, portanto, ser desestimulado por elevadas alíquotas.

Também há justificativa sob o viés econômico, pois também devem ser levados em conta os custos hospitalares e medicamentosos para o Estado com o tratamento de doenças oriundas do consumo intenso e prolongado do cigarro, além de eventuais pensões por morte decorrente desse mal.

No entanto, por se tratar de um produto viciante, cujos custos aos consumidores são facilmente suportáveis se comparados ao estado de dependência à que se sujeitaram, é possível concluir que, apesar das sempre bem-vindas campanhas contra o fumo, o vício ainda fala mais alto.

Ainda que não seja aplicável o princípio do não confisco aos tributos extrafiscais, o que não previram as normas tributárias que impõem pesados tributos às empresas tabagistas é que tal custo fosse repercutir no preço dos cigarros legalmente comercializados, de modo suficiente a estimular uma concorrência desleal atravessada impunemente pelo crime organizado.

E, como salientado, na impossibilidade de conter o avanço do contrabando de cigarros através de políticas criminais, outras políticas se fazem necessárias, bem como a redução da tributação do setor tabagista. O raciocínio é muito simples: com a diminuição de encargos tributários, o mercado poderá, em tese, oferecer ao consumidor um produto que, além de legalizado e seguro, está condições de competir com os preços propostos pelo mercado criminoso.

Nessa esteira, há que se trocar uma extrafiscalidade que não deu certo quanto a intenção de se reduzir o consumo do tabaco, por uma outra extrafiscalidade incumbida de combater o crescente mercado ileal de contrabando de cigarros, fomentado por um crime cada vez mais organizado.

Há conceituadas vozes, como as dos distintos advogados Luciano de Souza Godoy e Juliano Rebelo Marques, que há tempos propõem a redução da tributação do setor tabagista como mecanismo de combate ao crime organizado. Destaque-se também a iniciativa do governo Federal e criar grupo de trabalho através da portaria 263/19 o objetivo de avaliar a conveniência e oportunidade da redução da tributação de cigarros fabricados no Brasil.

O resultado produziu pareceres diversos. A Receita Federal alegou que "mesmo que se venha a reduzir a tributação, com redução do preço mínimo do cigarro, ainda assim os contrabandistas têm uma margem de manobra muito grande para reduzir mais ainda os seus preços. Isso sem considerar que o atravessador, que vende o cigarro ao contrabandista, pode reduzir o valor do maço o que faria que essa margem de lucro fique ainda maior". Com essa premissa, sugere a solução de aumento e criação de novas penas.

Trata-se de posicionamento equivocado, pois só de impor ao mercado ilegal a necessidade de sua reestruturação já teríamos um fator positivo, pois a avaliação dos riscos e benefícios é inerente qualquer atividade criminosa, principalmente entre os membros de médio e baixo escalão existentes na estrutura de um grupo criminoso, que ganham menos e efetivamente são os responsáveis por fazer girar o mercado ilegal.

Nesse sentido, a contribuição da própria polícia Federal assim muito bem ponderou: "o retrocesso nessa ação de desestímulo (preços e tributação altos) embora possa parecer à primeira análise contrária à política de combate ao tabagismo, deflagrará uma onda de desdobramentos positivos que desestruturará o contrabando de cigarros, trazendo resultados positivos e concretos em vários segmentos públicos e sociais que hoje se consomem no invencível trabalho de 'enxugar gelo', e que em pouco tempo estarão soterrados pelos crescentes números acima expostos, que certificam a ineficácia do que atualmente se vem fazendo (na fiscalização de fronteiras, nos trabalhos de polícia judiciária, nas ações de conscientização, educação, nas políticas de desestímulo, na gestão do prejuízo em saúde e previdência, e tudo o mais relacionado  ao contrabando de cigarros)".

Ademais, o que era uma forte suposição, hoje é uma realidade: a alta súbita do dólar em 2020 e 2021 nos revela um forte indício de que o impacto tributário nesse setor mercadológico exerce, sim, influência sobre os índices de consumo de cigarros contrabandeados.

Sendo os cigarros paraguaios comercializados em dólar, o custo das aquisições ilegais quase dobrou para os criminosos que atuam no Brasil. O resultado dessa alta foi a redução do consumo desses produtos ilegais, mas decorrente de um nivelamento de preços "por cima".

O que se pretende com a redução de impostos é que se estabeleça o mesmo nivelamento, não de forma acidental, com os custos dos cigarros contrabandeados alcançando os custos do cigarro legalmente comercializado, mas sim um nivelamento "por baixo", onde políticas tributárias brasileiras estejam no controle da situação, estabelecendo uma extrafiscalidade em contexto atual, reduzindo as alíquotas direcionadas ao setor tabagista para que as empresas legais tenham a oportunidade de concorrer com o mercado ilegal.

Não por ser uma benesse às indústrias que, comprovadamente, promovem a circulação de bens nocivos à saúde das pessoas, mas por ser uma medida necessária para a tentativa de solucionar um problema grave do qual o próprio Estado, em âmbito policial, assume ser insuficiente e ineficaz.

Ademais, não se vislumbra que a redução das alíquotas possa gerar perda de arrecadação aos entes tributantes. Ao contrário disso, com a diminuição do espaço abocanhado pelo mercado do tráfico, é natural que a produção nacional aumente, e com isso mantenha linear ou superior5 a receita tributária, dessa vez propiciada pelo crescimento do volume de operações.

Por fim, é triste concluir que a saúde pública perdeu uma batalha para o vício, no entanto ainda resta uma alternativa lúcida para que a paz social não perca a mesma batalha para o crime organizado.

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1 Apesar das diretrizes do PPIF - Programa de Proteção Integrada de Fronteiras, não parece haver um diálogo Franco entre as autoridades fazendárias paraguaias e as autoridades policiais brasileiras, justamente pela alta arrecadação que tem o governo do Paraguai com as indústrias locais. Imagina-se que, por exemplo, uma contribuição importante para a tentativa de se localizar as origens criminosas seria o compartilhamento de movimentações de entradas de insumos, as notas de saída das produtoras, distribuidoras e estabelecimentos comerciais.

2 Segundo o art. 20, § 2º, da CF/88, a faixa de fronteira possui largura de cento e cinquenta quilômetros ao longo do limite terrestre, o que corresponde a cerca de 13,8% do território nacional.

3 A prática do crime de tráfico de cigarros geralmente atrai a consumação de outros tipos penais, tais como roubo, furto, receptação, homicídios, lavagem de dinheiro, corrupção de agentes públicos, ameaças a agentes públicos, lavagem de dinheiro e evasão de divisas.

4 Além do Paraná e do Mato Grosso do Sul, estados fronteiriços com o Paraguai, o cigarro ilegal também tem sua entrada pelas regiões Norte e Nordeste, conforme recentes apreensões pela PRF.

5 No Brasil, a evasão fiscal causada pelo contrabando de cigarros atingiu R$ 12,2 bilhões e ultrapassou, em 2019, os impostos arrecadados pelo governo (R$ 11,8 bilhões).

José Maciel Sousa Chaves

José Maciel Sousa Chaves

Advogado, Juiz do Tribunal Administrativo Tributário de MS, especialista em Direito Constitucional Tributário (PUC-SP), Direito e Processo Penal (EBRADI) e mestrando em Direito (IDP/DF).

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