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Obrigações em moeda estrangeira e o novo regime do câmbio no Brasil

A economia começou experimentar um mundo novo, o dos criptoativos que apresenta, entre as suas diversas possibilidades, a da realização de transferências monetárias e de pagamentos internacionais fora do sistema financeiro internacional, em um claro processo de desintermediação financeira.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Atualizado às 08:13

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Introdução

A lei 14.726, de 29/12/21 instituiu novo regime cambial no Brasil, cuja efetivação completa demandará o tempo necessário para que o Conselho Monetário Nacional - CMN e o Banco Central do Brasil - BCB baixem os regulamentos nela previstos. A lei também estabeleceu mudanças no regime do capital brasileiro no exterior e do capital estrangeiro no País, a par do tratamento de informações a serem prestadas a esse último Órgão. No presente texto serão examinadas apenas as alterações relacionadas ao tratamento das obrigações em moeda estrangeira, ao tratamento dado ao arrendamento mercantil e à compensação direta de créditos e

Antes de iniciarmos o estudo em questão, importa destacar que devemos ter muito cuidado em não fazermos uma análise anacrônica. Diversos princípios econômicos e monetários que hoje fazem parte do cabedal comum dos operadores do mercado começavam tão somente e se delinear na doutrina e na legislação correspondente, conforme veremos no seu devido tempo.

1. Notas históricas sobre o controle de câmbio no Brasil

Ao longo de muitos anos nos dedicamos a explorar diversos aspectos do contrato de câmbio, a começar pela nossa dissertação de mestrado defendida em 1978 na Faculdade de Direito da USP, seguida de diversos artigos publicados em revistas jurídicas, tendo acompanhado as mudanças que ocorreram relativamente a esse tema ao longo de todo esse tempo, que culminaram com a lei de que ora tratamos1.

Inicialmente devemos nos lembrar de que todos os países têm em suas próprias moedas uma das expressões de sua soberania e elas se fundam na confiança dos usuários relativamente ao cumprimento das suas três funções básicas: meio de pagamento, reserva de valor e instrumento de conta. Prejudicadas ou perdidas essas funções das moedas internas, as famílias e as empresas buscam meios alternativos para preenchê-las e uma solução está na aquisição de moedas estrangeiras ou sua utilização para o cumprimento de obrigações contratuais.

Outro aspecto, no plano da política econômica dos Estados implica no estabelecimento de regimes de controle de câmbio, tanto mais rígidos quanto mais fracas forem as moedas nacionais, imprestáveis para pagamentos internacionais de exportação, por exemplo. Uma longa tradição histórica no Brasil nos colocou reféns da necessidade de uma rígida política cambial, seja por ser tradicional incipiente a nossa moeda (que até hoje não chegou sequer perto de se tornar uma moeda livremente conversível), seja por décadas seguidas de balanças comerciais negativas, quadro que mudou apenas há um tempo relativamente curto e fundado especialmente na força internacional do nosso agronegócio. Como a pauta predominante das nossas exportações refere-se a produtos com pouco ou nenhum valor agregado, a nossa balança comercial pode revelar-se altamente negativa se o preço das commodities desabar por alguma razão, tal como aconteceu no passado.

Como se sabe, os aspectos negativos acima mencionados foram a causa construção de um mercado paralelo de câmbio, de cunho ilícito, do que resultaram normas legais/regulamentares para o seu combate. Mas a natureza artificial de tais normas, frente às necessidades econômicas efetivas que se colocavam para as famílias e empresas tornou esse mercado paralelo de câmbio uma necessidade inafastável para o cumprimento de obrigações internacionais de toda a natureza. Nos velhos tempos da pujança do comércio do dinheiro no centro velho de São Paulo as corretoras de câmbio escancaravam as suas portas tanto para as operações regulares, quanto para as ilícitas, ou seja, a compra de moeda estrangeira para o cumprimento de obrigações internacionais. Por outro lado, até mesmo era prosaica a aquisição  de dólares para que se tornassem factíveis as viagens para o exterior, tanto das famílias em suas férias, quanto dos empresários em suas viagens de negócios, pois era ínfimo o limite de mil dólares por pessoa, estabelecido pela Autoridade Monetária para esse fim. Assim sendo, o mercado paralelo de câmbio era objeto de cotações livremente publicadas nos meios de comunicação. De quando em vez a fiscalização fazia "batidas" nos estabelecimentos das corretoras, para inglês ver dado que, no fundo, aquele mercado era absolutamente imprescindível diante do referido artificialismo do mercado legal, segundo anotado por S. Korteweg e F.R. Kessing2.

É certo que, conforme os mesmos autores acima citados, dever-se-ia ter em conta que a liberdade completa na realização de pagamentos internacionais acarretaria correções econômicas naturais, com influências perturbadoras, determinadas pelas flutuações dos preços ou das taxas cambiais. Tais repercussões seriam contrárias aos objetivos econômicos internos, tornando-se politicamente inaceitáveis, uma vez que delas decorreriam impactos inflacionários e flutuações tendentes a igualar a oferta e procura de moeda local fraca e de moedas estrangeiras fortes3. Diante de sua artificialidade, as medidas então adotadas para o controle cambial não removiam as causas dos distúrbios citados, não se dando o equilíbrio efetivo da balança de pagamentos4, operando tão somente nos seus efeitos. Em decorrência, se estabelecia uma tensão permanente entre as forças do mercado e os interesses governamentais. O efeito era o de uma luta inglória na persecução das transgressões ao sistema de controle cambial, nos seus diversos aspectos jurídicos, de natureza civil, comercial, tributária, penal e administrativa, com a caracterização de excessivos custos de transação.

Ora, ao longo do tempo multiplicou-se o arsenal legislativo utilizado pelo governo para tentar equilibrar a questão cambial, tendo resultado em uma enorme quantidade de normas nos planos vertical e horizontal, com a consequente insegurança jurídica que delas resultava.

  • Clique aqui para conferir a íntegra do artigo.

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1 Vide a respeito entre outros textos, "Aspectos Jurídicos do Câmbio", 1978, dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Direito da USP; "Notas sobre o Sistema de Controle do Câmbio no Brasil", Revista de Direito Mercantil - RDM nº 78, pp. 24/45; "Câmbio Flutuante e Contas de Não Residentes", RDM 92, pp. 93/105; e "Contrato de Câmbio - Classificação Incorreta" (Parecer), RDM 123, pp. 188/213;

2 Esse artificialismo era observado há muito tempo, conforme, in Moeda, Ed. Fundo de Cultura, São Paulo, 1984, p. 259.

3 Ob. cit., passim.

4 Não é nosso objetivo presentemente a análise do desequilíbrio da balança de pagamentos, mas tal efeito fundamentalmente ocorre porque o país gastava mais com as importações do que lucrava com as exportações, também pesando negativamente os gastos de brasileiros com o turismo externo. A questão se situa no fato de que o perfil dos produtos brasileiros exportados era daqueles com pouco ou nenhum valor agregado (como falamos acima), como acontece com a exportação de minérios e de produtos agrícolas in natura, ou seja, do nosso consumíamos vinhos e queijos estrangeiros e comprávamos carros importados. Essa matriz mudou ao longo dos anos, como se sabe.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

VIP Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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