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Non liquet e error in procedendo nos julgamentos de recursos repetitivos, a deturpação da sistemática e o consequente caos no sistema judicial

Se a própria Corte Superior abstém-se, espera-se que os juízos de base, por prudência e respeito à sistemática de julgamento de recursos repetitivos, evitem o caos processual e material, mantendo o sobrestamento dos feitos afetos ao tema 987 e suspendendo o curso dos processos afetos ao tema 1076.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Atualizado às 08:56

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A sistemática de julgamento de recursos repetitivos nasce sob os pálios da segurança jurídica e da uniformização da jurisprudência, além de trazer consigo uma também relevante função de desafogamento da máquina judiciária.

Se é assim, o julgamento sob tal sistemática deve ter em vista a consecução desses valores, sob pena de redundar em verdadeiro non liquet. Ou seja, recai sobre os ombros do julgador não apenas a definição da questão jurídica central a partir do recurso paradigma, como também a verificação de que os termos da decisão servirão à resolução de todas as demandas que versem sobre o mesmo tema.

Como contra-exemplos de consecução desses misteres por parte do Superior Tribunal de Justiça, destacamos dois temas: o 987, que versa sobre a possibilidade da prática de atos constritivos em face de empresa em recuperação judicial em sede de execução fiscal; e o 1076, que versa sobre o alcance da norma inserta no §8º do art. 85 do Código Civil nas causas em que o valor da causa ou o proveito econômico da demanda forem elevados.

Em junho de 2021, a Primeira Seção do STJ levou o Tema 987 a julgamento, sob a relatoria do Min. Mauro Campbell. Levando em consideração a superveniência da lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020, a Seção acatou o posicionamento do relator no sentido da perda de objeto da demanda, desafetando o recurso paradigma e determinando o cancelamento do tema. Imediatamente, expediram-se ofícios comunicando os tribunais de origem, que, em grande parte, deram e têm dado impulso aos feitos sobrestados segundo o §2º do art. 1.036 do CPC.

No entanto, a questão jurídica central e todos os valores destacados acima estão longe de ser arrematados, na medida em que foram opostos embargos de declaração com pretensão infringente pela Associação Nacional de Distribuidores de Combustíveis - ANDIC, na condição de amicus curiae, bem como, na sequência do não acolhimento dos embargos, foram interpostos embargos de divergência pela empresa recorrente, distribuídos, no âmbito da Corte Especial, à relatoria do Min. João Otávio de Noronha.

Isto significa que o julgamento acabou atingindo efeito diametralmente oposto àquele exigido pela lei processual. A um só tempo, feriu-se a segurança jurídica e o mister institucional de uniformização de jurisprudência que está na essência da atuação daquela Corte.

Estando, pois, a matéria completamente indefinida, a manutenção do sobrestamento dos feitos nos juízos de origem não é apenas um imperativo de prudência, como também da própria razão de ser da sistemática de julgamento de recursos repetitivos. Hoje, há pelo menos três aspectos pendentes de definição pelo STJ, a saber: i) a usurpação de competência da Segunda Seção para o julgamento do tema, ainda que seja para a eventual desafetação e o consequente cancelamento do tema; ii) a aplicação da nova lei no tempo, não afetando as recuperações judiciais em curso na data da entrada em vigor da referida lei 14.112/21; e iii) o formato da cooperação jurisdicional que deverá existir entre os juízos da execução fiscal e da recuperação judicial.

Trata-se, pois, de verdadeiro non liquet, com todos os frutos deletérios dessa espécie de negativa de jurisdição. E mais: a indefinição do Tema 987, juntamente com o andamento dos milhares de processos até então sobrestados, cada um seguindo seu próprio rumo, abre franco espaço para o surgimento de milhares de recursos especiais em diversos flancos decorrentes, pelo menos, dos três itens centrais que o STJ se absteve de julgar. Ou seja, na prática, troca-se um tema por milhares de recursos que poderão ensejar a criação de diversos temas de repetitivos. 

No Tema 10761, o erro é de outra natureza. Considerando a sensibilidade dos honorários advocatícios sucumbenciais, e temendo os efeitos da paralisação dos feitos em âmbito nacional, o relator, Min. Og Fernandes, absteve-se de determinar o sobrestamento processual nos juízos de base.

Isso significa que cada processo judicial sobre a mesma matéria segue o seu rumo individualmente, podendo inclusive chegar, também individualmente, ao próprio STJ em sede de Recurso Especial. Tem-se, assim, uma provável substituição de milhares de feitos de base por milhares de recursos especiais.

E o mais grave: os feitos findos (inclusive aqueles julgados em Recurso Especial), com ou sem avanço sobre o mérito, antes do julgamento do tema pelo STJ, poderão engessar sob a coisa julgada entendimento diverso daquele que será exarado oportunamente pela Corte no âmbito do repetitivo.

Nos termos dos arts. 1.036 e 1.037 do CPC, o sobrestamento dos feitos nos juízos de base é medida obrigatória, por tratar-se de medida consentânea com a própria natureza da sistemática de julgamentos repetitivos. Nesse sentido, inclusive, é o teor do Enunciado 23 da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM, atrelada ao Superior Tribunal de Justiça: "É obrigatória a determinação de suspensão dos processos pendentes, individuais e coletivos, em trâmite nos Estados ou regiões, nos termos do §1º do art. 1036 do CPC/2015, bem como nos termos do art. 1037 do mesmo Código".

A obrigatoriedade do sobrestamento não significa, contudo, que a medida tenha que ser total e irrestrita. Como preleciona José Miguel Garcia Medina:

Pode ocorrer, porém, que o recurso verse sobre questão relacionada a apenas um dos pedidos, ou, ainda, a tema de direito processual que não repercutirá, necessariamente, em todo o processo. Em tais casos, a decisão de afetação não deverá, necessariamente, determinar a suspensão de todos os processos, mas apenas daqueles atos processuais para cuja realização seja indispensável saber qual será a solução dada pelo tribunal, ao decidir sobre a questão.2

Também não significa que o sobrestamento ocorra automaticamente apenas considerando o processo em si, cabendo ao juiz ou relator, em cada processo, a verificação de identidade da matéria com a questão jurídica central do tema. Nesse sentido, Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini asseveram:

Uma vez verificada que a questão discutida no caso identifica-se com aquela que é objeto do procedimento de repetitivos, o juiz ou relator determinará a suspensão. Note-se que a suspensão não atingirá apenas os recursos especiais ou extraordinários já interpostos que versem sobre a mesma questão. Mais do que isso, será aplicável a todos os processos pendentes (i.e., ainda não decididos definitivamente), individuais ou coletivos, que versem sobre a questão.3

Ou seja, a única exceção ao sobrestamento se dá pela não identidade entre a questão jurídica central e a matéria discutida nos processos de base, e não por meio de um juízo de prudência ou conveniência exarado pelo relator no âmbito do processo paradigma.

Considerando as duas lições acima, no específico caso do Tema 1076, o reconhecimento dos honorários como questão secundária ao mérito, no máximo, poderia ensejar o sobrestamento dos feitos apenas quanto àquela matéria, possibilitando o prosseguimento quanto aos demais pedidos ou questões, inclusive para fins de cumprimento de sentença. Quanto aos recursos que versem tão somente sobre a questão jurídica central a ser definida pelo STJ no julgamento do tema, tratando-se de matéria idêntica, definitivamente não há razões plausíveis para o não sobrestamento.

Assim, o prosseguimento dos feitos implica subversão dos objetivos da técnica de julgamento, instaurando-se verdadeiro caos nos juízos de base, que recebem uma espécie de autorização ao voluntarismo, e no próprio STJ, em razão do provável "efeito rebote" do não sobrestamento, com a simples troca de feitos ordinários por recursos especiais aos milhares.

Enfim, a indefinição de temas afetos à sistemática de julgamento de recursos repetitivos, não apenas quanto à questão jurídica central, como também à obtenção de um mínimo de segurança jurídica e de uniformização jurisprudencial, empreende o absoluto oposto dos objetivos da referida sistemática. Da mesma forma, o injustificável não sobrestamento de feitos em âmbito nacional confere ao sistema judicial os mesmos efeitos negativos.

Em última análise, trata-se de exemplos de non liquet e de error in procedendo, em desrespeito à missão institucional do STJ. E, se a própria Corte Superior abstém-se, espera-se que os juízos de base, por prudência e respeito à sistemática de julgamento de recursos repetitivos, evitem o caos processual e material, mantendo o sobrestamento dos feitos afetos ao tema 987 e suspendendo o curso dos processos afetos ao tema 1076, o que se afigura possível pela existência de questão prejudicial externa, nos termos do art. 313, V, "a", do CPC.

___________

1 No momento da redação do presente artigo, em janeiro de 2022, o julgamento encontra-se suspenso em razão de pedido de vista da Min. Nancy Andrighi, após três votos no sentido da impossibilidade de utilização da apreciação equitativa quando forem elevados os valores da condenação, da causa ou do proveito econômico. Já votaram o Relator, Min. Og Fernandes, e os Ministros Mauro Campbell Marques e Jorge Mussi, que anteciparam seus votos após o pedido de vista.

2 José Miguel Garcia Medina, Código de Processo Civil Comentado. E-book. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

3 Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini, Curso Avançado de Processo Civil. v. 2. E-book. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

Alberto Felipe Lima Coimbra

Alberto Felipe Lima Coimbra

Sócio do Escritório Magro Advogados, Coordenador das equipes de contencioso cível, precatórios/creditórios e regulatório. Pós-graduando em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Graduado em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Adisson Leal

Adisson Leal

Coordenador da Filial Brasília do escritório Magro Advogados. Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Professor e Coordenador do Curso de Direito da Universidade Católica de Brasília. Foi pesquisador-visitante da Ludwig-Maximilians-Universität München. Foi Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal.

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