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Da teoria do duty to mitigate e a sua repercussão nos tribunais

A teoria do Duty Mitigate, também conhecida como The Duty To Mitigate The Loss, vem sendo adotada cada vez mais pelos nossos tribunais, em todo o país, seja em relação as causas envolvendo particulares ou perante o Estado.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Atualizado às 09:58

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Antes de iniciarmos a abordagem sobre a temática, se faz necessário esclarecer que o atual Código Civil, que completou 20 anos recentemente, à época de sua publicação se baseou em três princípios fundantes: da socialidade, eticidade e da operabilidade.

O princípio da sociedade assegura isonomia entre homens e mulheres nas relações perante o código, assim sendo, como exemplo, podemos citar que atualmente não temos mais o pátrio poder, exclusivo da figura paterna, e sim o poder familiar exercidos pelo casal em conjunto.

Por sua vez, o princípio da operabilidade abre a perspectiva de um código civil mais operacional, de fácil manuseio, sendo que de fato o Código Civil brasileiro apresenta uma boa estruturação, de simples compreensão pelo operador do Direito e a sociedade.

Por fim o mandamento nuclear do Código Civil, a eticidade, ou seja, a boa-fé objetiva a qual é considerada como a regra de ouro. 

A boa-fé objetiva (eticidade) tem previsão legal no art. 113 do Código Civil Brasileiro, dispondo que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé, in verbis: "Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração".

Não se pode confundir eticidade (boa-fé objetiva) com moral.

Eticidade é um comportamento esperado.

A boa-fé objetiva é denominada pela doutrina como standard ético jurídico, pois, ambas as partes do contrato devem agir com probidade, cooperação e lealdade.

Depois de uma breve visão dos princípios, se faz necessário abordar a importância dos contratos na nossa vida. A relação contratual está presente no cotidiano do ser humano, e a sua importância é ímpar, pois é através dele que temos o alicerce da segurança jurídica entre as pessoas.

De uma forma geral o contrato é uma espécie de negócio jurídico pelo qual duas ou mais partes realizam um acordo, valendo-se de sua autonomia privada. São negócios, interesses, efetivados e materializados com a finalidade de assegurar direitos e obrigações entre os envolvidos. Assim, os contratos devem sempre observar o princípio da boa-fé objetiva e o princípio da função social.

O negócio jurídico pode ser unilateral (doação, testamento), bilateral ou plurilateral. Os contratos são negócios jurídicos bilaterais ou plurilaterais.

Os doutrinadores modernos dizem que os contratos devem ser baseados na solidariedade constitucional, ou seja, um contrato para ter validade deve observar os princípios constitucionais, assim como a às leis ordinárias.

Nos termos do art. 3, inciso I, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o contrato deve se basear na solidariedade social e assim sendo, estamos falando que os princípios da boa-fé e da função social se amparam neste princípio constitucional (solidariedade).

Nesse contexto, nos termos do Enunciado 23, CJF/STJ, a função social do contrato não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance deste princípio quando presentes interesses individuais ou relativos a dignidade da pessoa humana.

Os contratos podem gerar efeitos perante terceiros, sendo essa a feição da eficácia externa da função social dos contratos.

Porém, na prática, observamos uma crise de cooperação nas relações contratuais, e podemos citar o brilhante exemplo do professor Pablo Stolze:

Imagine que FREDIE BACANA conduz o seu carro no estacionamento da Faculdade. Em uma manobra brusca e negligente, colide com o carro de SALOMÉ VIENA. Esta última, vítima do dano e titular do direito à indenização, exige que FREDIE chame um guincho. Muito bem. Enquanto FREDIE se dirigia à secretaria da Faculdade para fazer a ligação, SALOMÉ - credora do direito à indenização - verificou que uma pequenina chama surgiu no motor do carro.

Em uma situação como essa, o que se espera do comportamento da credora ao ver que o seu carro está pegando fogo? Sem dúvida, a situação do devedor está se agravando com o incêndio. Neste caso concreto, qual seria a solução? Antes de responder, se faz necessário abordar a teoria do Duty Mitigate.

Essa teoria foi apresentada doutrinariamente pela primeira vez pelo grande jurista italiano, Emilio Beti, professor da Universidade de Roma que em sua obra clássica, Teoria Geral das Obrigações, observa, de uma forma geral, a existência de uma "crise de cooperação" entre as partes envolvidas em uma relação contratual.

No Brasil ela foi acolhida pelo STJ no REsp 758.518/PR, senão vejamos:          

 

DIREITO CIVIL. CONTRATOS. BOA-FÉ OBJETIVA. STANDARD ÉTICO-JURÍDICO.OBSERVÂNCIA PELAS PARTES CONTRATANTES. DEVERES ANEXOS. DUTY TOMITIGATE THE LOSS. DEVER DE MITIGAR O PRÓPRIO PREJUÍZO. INÉRCIA DOCREDOR. AGRAVAMENTO DO DANO. INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. RECURSOIMPROVIDO. 1. Boa-fé objetiva. Standard ético-jurídico. Observância pelos contratantes em todas as fases. Condutas pautadas pela probidade, cooperação e lealdade. 2. Relações obrigacionais. Atuação das partes. Preservação dos direitos dos contratantes na consecução dos fins. Impossibilidade de violação aos preceitos éticos insertos no ordenamento jurídico. 3. Preceito decorrente da boa-fé objetiva. Duty to mitigate the loss: o dever de mitigar o próprio prejuízo. Os contratantes devem tomar as medidas necessárias e possíveis para que o dano não seja agravado. A parte a que a perda aproveita não pode permanecer deliberadamente inerte diante do dano. Agravamento do prejuízo, em razão da inércia do credor. Infringência aos deveres de cooperação e lealdade. 4. Lição da doutrinadora Véra Maria Jacob de Fradera. Descuido com o dever de mitigar o prejuízo sofrido. O fato de ter deixado o devedor na posse do imóvel por quase 7 (sete) anos, sem que este cumprisse com o seu dever contratual (pagamento das prestações relativas ao contrato de compra e venda), evidencia a ausência de zelo com o patrimônio do credor, com o consequente agravamento significativo das perdas, uma vez que a realização mais célere dos atos de defesa possessória diminuiriam a extensão do dano.5. Violação ao princípio da boa-fé objetiva. Caracterização de inadimplemento contratual a justificar a penalidade imposta pela Corte originária, (exclusão de um ano de ressarcimento).6. Recurso improvido. (STJ - REsp: 758518 PR 2005/0096775-4, Relator: Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), Data de Julgamento: 17/06/2010, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: REPDJe 01/07/2010)

Assim, o STJ reconheceu a preocupação com a boa-fé objetiva, probidade, cooperação e lealdade.

Desse modo o julgado se tornou importante, relevante para o ordenamento jurídico brasileiro, pois de acordo com ele, essa obrigação de mitigar (diminuir), impondo ao credor atuar para não agravar o prejuízo do devedor, sempre que possível, deve ocorrer.

Em conformidade com o Enunciado nº 169 da III Jornada de Direito Civil o "princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo".

À luz do julgado acima podemos, com tranquilidade, responder o exemplo acima dizendo que caberia a credora (Salomé Viana), ao ver o seu carro pegando fogo, tentar apagá-lo a fim de minimizar o prejuízo da parte devedora (FREDIE BACANA).

Se, porventura, a credora fez de tudo para apagar o fogo, tentando minimizar o sofrimento do devedor e, infelizmente, o carro se deteriorou por inteiro é justo que ela seja ressarcida pelo todo. Porém, se podendo, não o fizer, vendo o fogo destruir o automóvel, por ter agido de má-fé, terá direito somente ao valor do prejuízo decorrente da batida e não pelo todo do incêndio.

Observa-se que a teoria do Duty Mitigate, também conhecida como The Duty To Mitigate The Loss, vem sendo adotada cada vez mais pelos nossos tribunais, em todo o país, seja em relação as causas envolvendo particulares ou perante o Estado. Sem dúvida, para que tal situação não ocorra, de negligência pelo credor diante da possiblidade de aumento do dano, gerando mais prejuízos para o devedor, se faz necessário que as partes observem a regra de ouro, ou seja, a boa-fé como elemento essencial em uma sociedade democrática.

______________

BETTI, Emilio. Teoria geral das obrigações. Campinas: Bookseller, 2005. Págs. 124-125.

BRASIL, Código Civil. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm> Acessado no dia 04/02/2022

________. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Acessado no dia 04/04/2022

STOLZE, Pablo e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 107-108.

STJ. REsp 758.518/PR, rel. ministro Vasco Della Giustina (Desembargador Convocado Do TJ/RS), Terceira Turma, julgado em 17/06/2010

 

Clodoaldo Moreira dos Santos Júnior

Clodoaldo Moreira dos Santos Júnior

Advogado, pós-doutor em Direito Constitucional na Itália. Professor universitário. Sócio fundador escritório SME Advocacia. Presidente da Comissão Especial de Direito Civil da OAB/GO. Membro consultor da Comissão de Estudos Direito Constitucional da OAB Nacional e árbitro da CAMES.

Tiago Magalhães Costa

Tiago Magalhães Costa

Especialista em Direito Civil e Processual Civil, mestrando em Direito Constitucional (IDP), advogado, professor universitário, sócio fundador Escritório SME Advocacia.

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