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STF abre possibilidade de condenação por crime impossível

A decisão se baseia em premissa errada, levando à conclusão equivocada (também errada).

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Atualizado às 08:00

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O STF, em 18/12/19, ao apreciar recurso ordinário em HC 163.334/SC1, que discutia a prisão, ou não, de contribuinte inadimplente com o recolhimento de ICMS, enquadrou tal fato como crime contra a ordem tributária, previsto no art. 2º, II da lei 8.137/902, conforme esta ementa:

Ementa:

DIREITO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. NÃO RECOLHIMENTO DO VALOR DE ICMS COBRADO DO ADQUIRENTE DA MERCADORIA OU SERVIÇO. TIPICIDADE
1. O contribuinte que deixa de recolher o valor do ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço apropria-se de valor de tributo, realizando o tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990.
2. Em primeiro lugar, uma interpretação semântica e sistemática da regra penal indica a adequação típica da conduta, pois a lei não faz diferenciação entre as espécies de sujeitos passivos tributários, exigindo apenas a cobrança do valor do tributo seguida da falta de seu recolhimento aos cofres públicos.
3. Em segundo lugar, uma interpretação histórica, a partir dos trabalhos legislativos, demonstra a intenção do Congresso Nacional de tipificar a conduta. De igual modo, do ponto de vista do direito comparado, constata-se não se tratar de excentricidade brasileira, pois se encontram tipos penais assemelhados em países como Itália, Portugal e EUA.
4. Em terceiro lugar, uma interpretação teleológica voltada à proteção da ordem tributária e uma interpretação atenta às consequências da decisão conduzem ao reconhecimento da tipicidade da conduta. Por um lado, a apropriação indébita do ICMS, o tributo mais sonegado do País, gera graves danos ao erário e à livre concorrência. Por outro lado, é virtualmente impossível que alguém seja preso por esse delito.
5. Impõe-se, porém, uma interpretação restritiva do tipo, de modo que somente se considera criminosa a inadimplência sistemática, contumaz, verdadeiro modus operandi do empresário, seja para enriquecimento ilícito, para lesar a concorrência ou para financiar as próprias atividades.
6. A caracterização do crime depende da demonstração do dolo de apropriação, a ser apurado a partir de circunstâncias objetivas factuais, tais como o inadimplemento prolongado sem tentativa de regularização dos débitos, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de "laranjas" no quadro societário, a falta de tentativa de regularização dos débitos, o encerramento irregular das suas atividades, a existência de débitos inscritos em dívida ativa em valor superior ao capital social integralizado etc.
7. Recurso desprovido.
8. Fixação da seguinte tese: O contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz e com dolo de apropriação, o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990.

A C Ó R D Ã O
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal por seu Tribunal Pleno, sob a presidência do Ministro Dias Toffoli, na conformidade da ata de julgamento, por maioria de votos, em negar provimento ao recurso ordinário, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio. Revogada a liminar anteriormente concedida. Em seguida, por maioria de votos, em fixar a seguinte tese: "O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2°, II, da Lei n° 8.137/1990", vencido o Ministro Marco Aurélio. Ausente, justificadamente, o ministro Celso de Mello.
Brasília, 18 de dezembro de 2019.

I - Breves esclarecimentos

Incialmente, destaca-se que a decisão se baseia em premissa errada, levando à conclusão equivocada (também errada).

Para melhor demonstrar as premissas erradas tomadas para solução da demanda, destaco os pontos 1, 3, 5, 6 e 8 a seguir que, mais adiante, farei com relação ao voto do ministro relator, Luís Roberto Barroso:

1 - Em verdade, o comerciante não cobra o imposto (ICMS) do consumidor, mas logicamente o custo deste poderá ter sido incluído na composição do preço final. Sobre o total da composição do custo do produto, aplica-se a alíquota do ICMS, que não é o valor a ser recolhido ao Estado, em razão do princípio da não-cumulatividade do ICMS.

Exemplo de apuração do ICMS:

O produto 'A', adquirido por R$ 2 mil, gerou crédito de ICMS de R$ 340 reais; foi revendido por R$ 3 mil (débito de ICMS R$ 510,00 destacado na NF).
Valor a Recolher: R$ 510,00 - 340,00 = 170,00, que deverá ser recolhido.

A não-cumulatividade foi totalmente ignorada na apreciação do RHC 163.334/SC.

Vejam, leitores, que não há como tratar de ICMS sem primeiramente obedecer aos critérios de apuração, baseando-se no princípio da não-cumulatividade.

3 - Infelizmente, não vemos, na nossa humilde opinião, a inexistência norma para o caso, a ensejar que o STF faça o papel de legislador positivo (com usurpação3 de poder). Existe norma sim, todavia a Suprema Corte tenta legislar em matéria tributária penal, interpretada erroneamente, como se o ICMS a recolher pelo contribuinte fosse retido do consumidor, como ocorre, por exemplo, com o IRRF (de pessoa física ou jurídica), CSLL, Pis, Cofins, ISSQN e INSS de prestadores de serviços para pessoas jurídicas.

Aplica-se a previsão do art. 2º, inciso II, da lei 8.137/904, na hipótese dos tributos federais mencionados acima, quando forem descontados pelos tomadores dos prestadores de serviços. Nesta hipótese, pode haver apropriação, caso o tomador dos serviços não recolha o valor retido ao Ente competente, no prazo legal.

No caso do ICMS, ele não é cobrado e nem retido do consumidor. Ainda assim, a Suprema Corte, legislando em matéria penal, por não dominar o regramento do ICMS proferira a equivocada decisão (premissa errada = resultado errado-julgamento).

5 - Mesmo que se admita equivocada decisão, fundada no art. 2º, II, da lei 8.137/90 para o ICMS (que tenha sido regularmente declarado ao fisco), estamos diante de expressão em aberto e indeterminada: inadimplência sistemática, contumaz!?

Para tentar demonstrar o que estamos a dizer, segue o exemplo: A empresa "A", em funcionamento há 30 anos, deve 15 competências de ICMS (declarado ao fisco). A empresa "B", em funcionamento há 5 anos, deve também 15 competências de ICMS (declarado ao fisco). Neste exemplo, quem é o sistêmico e contumaz devedor inadimplente?

Vejam que quando juiz julga e deixa em aberto a decisão, não solucionou a lide, mas, sim, legislou mau (usurpou poderes do congresso) e deixou mais dúvidas e questionamentos, em vez de resposta aos jurisdicionados e, o pior, possibilitando a criminalização sem norma penal tipificadora.

6 - Não esclarece que o contribuinte não tem que provar que não agiu com dolo em não ter recolhido o ICMS declarado! Cabe à acusação provar o suposto crime! Pois, o simples inadimplemento no recolhimento do ICMS declarado, por si só, não caracteriza crime algum.

Mesmo que se 'apure as circunstâncias objetivas', ainda assim estaremos diante de premissa equivocada, tendo em vista que o ICMS não é cobrado do consumidor final, nem mesmo retido. Apenas o seu valor pode, ou não, fazer parte da composição do preço final ao consumidor.

Se fosse o caso de se acatar o entendimento do RHC 163.334/SC, incumbiria ao órgão acusador, no caso concreto, provar que o contribuinte incluiu no preço total do produto o valor do ICMS.

8 - Como já dito e exemplificado ao longo deste pequeno texto, o ICMS, em regra geral, pode, ou não, compor o preço final do produto, e após esta composição do custo final, aplica-se a alíquota efetiva, e seu valor deve ser destacado/informado na nota fiscal. Mas não existe norma jurídica determinando a inclusão do ICMS na composição do preço!

O valor destacado na nota fiscal não é o somatório devido ao Estado, nem mesmo valor que teria sido retido ou cobrado do adquirente do produto (como consta na errônea interpretação do relator do RHC), conforme exemplo de apuração descrito no item 1.

Superado e esclarecido que o STF apreciou equivocadamente quanto ao ICMS, e firmar o entendimento de que o imposto é cobrado do consumidor.

Ademais, como já referido, não existe amparo legal para a tese do STF. Vale lembrar que, no caso de concessionária de serviço público de fornecimento de energia elétrica, até poderia ser aplicada a tese firmada no RHC 163334/SC, tendo em vista que há a previsão legal nos parágrafos 2º e 3º do art. 9º da lei 8.987/955, prevendo que o consumidor final assume o custo da tributação do ICMS, do PIS e da Cofins sobre a energia elétrica. Ainda assim, não se trata de retenção, mas do repasse de custo da tributação, que não é o caso do ICMS, diante da ausência de previsão legal.

Feitas estas breves considerações, estamos diante de um crime impossível de ser cometido pelo contribuinte (desde que tenha declarado corretamente ao fisco), pelos motivos já apontados e outros por ser apresentados.

O simples fato do ICMS estar destacado no NF não é prova de que é devido ao Estado (deve apurar-se pelo regime não-cumulativo) nem mesmo de que tenha sido incluído no preço do produto cobrado ao consumidor. Daí decorre que o STF ao julgar do modo acima apresentado, não somente legislou, mas desrespeitou o princípio da não-cumulatividade, previsto no art. 155, §2º, I, da Magna Carta.

  • Leia a íntegra do artigo aqui
Natal Moro Frigi

Natal Moro Frigi

Advogado e Contabilista, Especializado em Direito Tributário. Atua nas áreas tributária e empresarial. Fundador da sociedade Tolentino & Moro Frigi Advogados Associados.

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