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O que pode estar por trás da ADPF da CNI sobre destinação de indenizações em ações coletivas?

A extinção da ADPF 944 é a solução exemplar que se espera para inibir ações da espécie.

sexta-feira, 4 de março de 2022

Atualizado em 7 de março de 2022 12:58

(Imagem: Arte Migalhas)

A Confederação Nacional da Indústria (CNI) ajuizou Ação de Descrumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), que recebeu o número 944 no Supremo Tribunal Federal (STF), contra a destinação de indenizações resultantes de condenações em ações coletivas ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). De acordo com a CNI, essas destinações não vêm observando o disposto no artigo 13 da Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/85), uma vez que devem ir para o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) ou ao Fundo de Direitos Difusos (FDD) do Ministério Público Federal (MPF).

A ação surpreende, por inusitada, e daí o título provocativo do presente texto, que se sustenta na seguinte indagação: o que pretende a CNI? Qual é o interesse jurídico da CNI na interpretação de referido dispositivo legal?

A presente análise propõe, em linha especulativa, buscar revelar o que está por trás da presente ação. No aspecto técnico-jurídico, não há caminho possível a não ser a ilegitimidade da CNI e o descabimento da ADPF, como será visto.

A CNI é uma entidade sindical de grau superior com significativo poder político e teve papel de destaque na reforma trabalhista promovida pela lei 13.467/17. Referida reforma é um espelho da maioria das propostas contidas na publicação da CNI: "101 Propostas para Modernização Trabalhista", de 2012.1 Contudo, entre as propostas da CNI não há previsão de criação de fundo de direitos difusos trabalhista. Está a CNI realmente interessada na criação deste fundo, como dá a entender a presente ADPF? Ou será que ela pretende, pela via da ADPF, desviar o curso das diversas ações trabalhistas com destinação de recursos já definidas?

A linha argumentativa da CNI na verdade se direciona para a defesa de sua interpretação da Lei 7.347/85 e requer o acolhimento de seus pedidos ao fundamento de que decisões da Justiça do Trabalho se afastaram dessa interpretação ao dar outra destinação às indenização que não o FAT ou o FDD. A indicação de preceitos constitucionais sobre orçamento e separação de poderes não passa de mero protocolo para a tentativa de encaixar a aventureira ADPF, numa espécie de "vai que cola".

A legitimidade da CNI no controle concentrado de constitucionalidade não é equiparada ao do Procurador Geral da República ou da Ordem dos Advogados do Brasil, por exemplo. A atuação das confederações sindicais, nessa esfera, circunscreve-se aos interesses que a entidade se propõe a defender. Uma confederação patronal não tem poder de representar adequadamente a sociedade brasileira no controle concentrado de constitucionalidade, mas apenas questões envolvendo as entidades por ela representadas. De outro modo, o interesse econômico de suas entidades pautaria o controle concentrado de constitucionalidade em detrimento da sociedade brasileira. Não é objetivo da CNI a defesa do orçamento público contra a recomposição do bem lesado nas ações coletivas, de modo que a ADPF não possui pertinência temática com os objetivos da entidade que a propôs. Além disso, não cabe a CNI substituir o Ministério Público no papel de fiscal do ordenamento jurídico e dos órgãos públicos de controle e muito menos definir políticas nacionais em detrimento da sociedade brasileira.

A defesa de interesses privados, sob a veste de interesse público, constitui processo ameaçador de invasão do governo privado na definição das questões que dizem respeito à coletividade como um todo. O poder de expansão e dominação da vida pública pelos interesses de mercado, numa mercantilização da vida pela força dos moinhos satânicos, para utilizar a expressão de Polanyi,2 é claramente limitado pela Constituição brasileira.

A destinação das indenizações em ações propostas pelo MPT não dizem respeito diretamente a questões orçamentárias, nem à separação de poderes, mas a reconstituição dos bens lesados. O fundo é apenas um meio e não pode sacrificar o objetivo da lei baseado na ideia de reparação integral do dano. Além disso, não existe fundo para as condenações em ações civis públicas trabalhistas, pois o FAT ou o FDD federal não possuem representantes do MPT e de trabalhadores e empregadores. A participação desses representantes é "necessariamente" condição legal para a constituição do fundo (art. 13, § 1°, Lei 7.347/85).

A destinação ao FAT, em seu momento, chegou a ser indicada por procuradores e acatada por juízes trabalhistas, diante da inexistência de fundo próprio para recompor danos decorrentes da violação de interesses e direitos coletivos e difusos na área trabalhista. Contudo, percebeu-se que essa destinação não cumpria com os objetivos legais.3 Parte dos recursos do fundo são canalizados para o desenvolvimento econômico, por meio de financiamentos pelo BNDES, e são liberados, não propriamente pelo histórico de cumprimento da legislação trabalhista, mas, por exemplo, para a modernização de empresas de grande porte, como incorporação de novas tecnologias, com impactos adversos na contratação de trabalhadores, ou mesmo para empresas que operam com especulação financeira e não com investimento produtivo.4

O próprio FDD federal regulamentado pela lei 9008/95 não inviabiliza a reconstituição do bem lesado diretamente. É o que tem ocorrido no âmbito do MPF em que, em algumas situações, o fundo acaba obstruíndo o objetivo legal.5

Pelo visto, é essa paralisia da recomposição do bem lesado ou o seu equivalente que a CNI pretende alcançar com a ADPF, com a retirada do poder do Judiciário trabalhista e do MPT de definir o modo de como ela se dará. Se o propósito é, efetivamente, interferir no curso das ações com condenação de indenizações e destinações já definidas, eventual resultado favorável impactaria não só na recomposição do bem lesado, mas no próprio potencial inibitório dessas indenizações. A recomposição do bem lesado restabelece o sistema de proteção contra futuras violações, não apenas pelo autor da agressão, mas também contra outros potenciais agressores.

A combinação do efeito de recompor o bem lesado, destinando-se recursos diretamente para esse fim, com o caráter inibitório não é uma invenção brasileira.

Nos Estados Unidos, por exemplo, além da reparação dos danos, algumas ações dão margem a condenação dos denominados punitive damages ou exemplary damages. Trata-se de modalidade de punição aplicada pelas cortes norte americanas e com previsão em algumas leis, sendo o principal objetivo da punição o efeito inibitório (deterrent) para que não cometa infrações no futuro.6 As cortes e a doutrina norte-americanas costumam usar a análise econômica, em termos de custos e incentivos, para justificar essa punição. A ideia é que o infrator internalize todos os custos resultantes da conduta lesiva em lugar de contabilizar os custos regulares de ações com caráter apenas reparatório. Sem a punição ou a com punição tardia, haveria uma espécie de incentivo (underdeterrence) para o infrator prosseguir na sua conduta, lesando os interesses na sociedade. Além do mais, os infratores que não investem em segurança teriam ganho em relação aos que investem e tomam as medidas necessárias para prevenir ilícitos bem como os danos disso decorrentes.7 São comuns acordos (settlements) ou decisões (judgments) em ações coletivas em que recursos são destinados para instituições consideradas de caridade, como institutos de pesquisa, relacionados ao bem lesado (cy press). Essa destinação visa promover estudos e ações para maior proteção contra ameça ou lesão a direitos. Por exemplo, se a agressão provocou cancer nas vítimas, recursos podem ser destinados a pesquisas contra o cancer ou ações para a cura da doença.8

Ações judiciais não podem servir para a captura de poder público por entidades privadas com interesses bem definidos, que levem ao esvaziamento das instituições e do modelo estabelecido pela Constituição brasileira de 1988. A extinção da ADPF 944 é a solução exemplar que se espera para inibir ações da espécie.

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1 Confederação Nacional da Industrial. 101 Propostas para Modernização Trabalhista. Brasília, 2012. https://static.portaldaindustria.com.br/media/filer_public/c0/9e/c09e210e-a7bc-4e12-adfa-7edebcf73578/20130206173400990740i.pdf

2 Polanyi, Karl. A grande transformação. As origens de nossa época. Rio de Janeiro. Editora Campus, 2000, p. 89.

3 Pereira, Ricardo José Macedo de Britto. Ação Civil Pública no Processo do Trabalho. 2ª. Ed., Salvador, Juspodium, 2016.

4 CEA, Georgia Sobreira dos Santos. "Faces da privatização do fundo público no brasil: uma análise da utilização dos recursos do fat pelo bndes." Disponível em http://cac-php.unioeste.br/projetos/gpps/midia/seminario2/trabalhos/economia/meco18.pdf.

5 Nenzo, Fábio Nesi. Fundo de Defesa de Direitos Difusos: descompasso com a garantia da tutela adequada e efetiva dos direitos coletivos. Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 16 - n. 50, p. 125-146 - jul./dez. 2017.

6 McGovern, Francis E. Punitive Damages and Class Actions. Louisiana Law Review, Vol. 70, p. 435-462.

Id.

8 Mulheron, R. (2006). The Modern Cy-près Doctrine: Applications and Implications (1st ed.). Routledge-Cavendish. https://doi-org.libezproxy2.syr.edu/10.4324/9781843149118.

Ricardo José Macedo de Britto Pereira

Ricardo José Macedo de Britto Pereira

Subprocurador Geral do Trabalho aposentado. Professor titular do Mestrado Centro Universitário UDF. Estágio pós-doutoral Cornell University. Doutor Universidad Complutense de Madrid. Master of Law Syracuse University. Mestre UNB. Advogado

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