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Mais um 8 de março e a luta pela igualdade segue urgente

Nesse ano de 2022, em que completamos 90 anos da conquista do voto pelas mulheres, sabemos que ainda há muito para ser alcançado.

terça-feira, 8 de março de 2022

Atualizado às 14:09

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Mais um 8 de março, data de luta e de render homenagens à memória e às conquistas do movimento pelos direitos das mulheres. Dias antes, em um episódio nada isolado de misoginia em nosso país, Arthur do Val, segundo deputado mais votado de São Paulo, teve áudios vazados nos quais afirmava que ucranianas "são fáceis porque são pobres".1 Essa é apenas uma entre tantas outras afirmações absurdas feitas nos áudios do parlamentar em que se demonstra a naturalidade e a disposição de se aproveitar de corpos femininos vulnerabilizados pela guerra e pela pobreza.

E não é novidade que apenas o engajamento contínuo e organizado das mulheres nos levou a conquistar nossos direitos e é apenas por meio da luta diária que haverá a garantia de que esses direitos permanecerão e avançarão ainda mais. Como Simone de Beauvoir ensinou, basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. É preciso estarmos atentas durante toda a vida para que nossos direitos não sejam anulados. E o episódio narrado é um exemplo claro disso.

Nesta luta, ressaltamos a importante participação da OAB/SP que em 7 de março fez a Marcha contra a Misoginia e protocolou na Assembleia Legislativa de São Paulo pedido de providências para imediata apuração e sanção do deputado Arthur do Val e mobilizou parlamentares de forma suprapartidária para tratar do tema. Na mesma ocasião, também foi entregue a petição online do Coletivo Juntas, que reuniu 70.000 assinaturas em menos de 48 horas. A ação da sociedade civil organizada em momentos como esse é fundamental.

Os nossos dados são alarmantes. Em meio à crise sanitária, política, econômica e social provocada pela Covid-19 e pela forma de condução da crise pelo governo federal no Brasil foi possível mais uma vez constatar como os problemas atingem de forma diferentes homens e mulheres. As mulheres foram as primeiras a perderem seus postos com o fechamento das creches e escolas. A taxa de desemprego no país foi de 11%2, sendo que, entre mulheres, a taxa é de 16,8%, e de 19,8% entre mulheres pretas. Logo no início da pandemia, as mais prejudicadas foram as mais vulneráveis: com baixa renda, pretas e sem instrução formal. Uma análise do data_labe3, associação sem fins lucrativos da Favela da Maré, no Rio de Janeiro, mostra que no 1° trimestre de 2021, mulheres negras estavam desocupadas duas vezes mais que homens brancos, e que quem mora na periferia - independentemente de raça ou gênero - tem duas vezes mais chance de estar desocupado do que quem mora em regiões centrais.

O índice de violência doméstica aumentou e as mulheres com deficiência foram as mais afetadas, já que enfrentam barreiras diversas ainda maiores para denunciar e para acessar o sistema de proteção social de forma autônoma, pela ausência de acessibilidade e acolhimento a partir de suas limitações funcionais. Sendo o agressor um familiar ou o próprio companheiro, responsável pelo apoio e assistência pessoal da mulher com deficiência, a situação é ainda mais difícil de lidar. Não por outra razão que, de acordo com o Atlas da Violência 2021, elaborado pelo Ipea em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 58% dos casos de violência sofrida por pessoas com deficiência são de violência doméstica, e as mulheres com deficiência intelectual são o grupo mais fortemente impactado. 

A Lei Maria da Penha - lei 11.340/06 - é uma referência legal que busca operacionalizar o combate à violência de gênero e tem em seu nome a homenagem a uma mulher que adquiriu deficiência em consequência de uma violência. É uma reparação simbólica pela omissão do Estado brasileiro e de impunidade do seu agressor. Mesmo havendo uma proteção especial para a mulher com deficiência na lei citada e na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, norma constitucional no país, as mulheres com deficiência permanecem alijadas de acesso a políticas e serviços. O Comitê de Monitoramento do tratado na ONU editou o Comentário Geral no. 3 em 2016, traduzido pela Defensoria Pública de São Paulo4 e pela Universidade de São Paulo, justamente para endereçar as questões que mais afetam as meninas e mulheres com deficiência. O Brasil ainda segue em dívida histórica. 

 Importante lembrar que mulheres não são um grupo homogêneo: são mulheres indígenas, refugiadas, migrantes, em situação de rua, encarceradas, lésbicas, bissexuais, transexuais, negras, com diversos tipos de deficiência, entre tantas outras características da diversidade humana.

Precisamos seguir lutando para mudar essa situação de desigualdade. No país, temas que tratam da saúde e da dignidade da mulher, como a pobreza menstrual, não são colocados como prioridade na agenda política senão por mobilização da sociedade civil. Exemplo disso é o veto presidencial ao PL 4.968/2019, da deputada Marília Arraes (PT/PE), que propõe a criação do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual e prevê a distribuição de absorventes a estudantes de escolas públicas e pessoas em situação de rua cuja apreciação deve se dar no Congresso Nacional esta semana. Pela luta social este veto há de ser revertido.

A exclusão das mulheres do espaço público e político é uma consequência desta história de violências de gênero. Apesar de ter sido um dos primeiros países da região da América Latina e Caribe a instituir sufrágio feminino, dados da União Interparlamentar de 20215 demonstram que o Brasil ocupa o 4º lugar dentre os piores desempenhos em representatividade feminina no Senado e na Câmara dos Deputados nesse mesmo rol de países, ficando atrás de nações consideradas mais conservadoras em termos de valores e concepções de igualdade de gênero. Esse ano não podemos repetir erros de eleições passadas.

O Observatório de Igualdade de Gênero da América Latina e do Caribe6 e o TSE7 publicaram pesquisa que demonstra que, apesar de comporem mais da metade do eleitorado brasileiro, no ano de 2018 as mulheres reuniam apenas 3,7% dos Governadores eleitos; 11,6% dos Prefeitos; 13% dos Senadores; 15% dos Deputados Federais; 15% dos deputados estaduais e 13,5% dos Vereadores.

Para avançarmos, políticas e ações afirmativas constituem um importante caminho. É preciso ampliar a representatividade das mulheres na política e na sociedade, e distribuir o poder de forma mais igualitária, sobretudo no Brasil onde as mulheres representam quase 43% da população economicamente ativa do país8 e ao mesmo tempo assumem compulsoriamente tarefas relacionadas à vida doméstica e ao cuidado com os filhos.

No âmbito das eleições, temos como política afirmativa as cotas previstas no artigo 10, parágrafo terceiro da lei 9.504/97, conhecida como "Lei Eleitoral", segundo a qual, em eleições proporcionais, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo, objetivando ampliar a inclusão ou reduzir a exclusão das mulheres da vida pública.

Apesar de mandatória, a violação da cota pelos partidos é sistemática e a legislação não prevê mecanismos que coíbam ou penalizem tal ilegalidade, assunto que se tornou um desafio para os tribunais superiores. De acordo com pesquisa da James Madison University9, nas eleições de 2018, 35% das candidaturas femininas para a Câmara Federal no Brasil não alcançaram a marca de 320 votos, sendo esse um dos principais indícios de fraude nas candidaturas para burlar as cotas.

Entender como e por que chegamos nesse cenário desesperançoso não é simples. É preciso uma análise multicausal que abarque fatores históricos, culturais, socioeconômicos e políticos. A série de estudos Mulheres nas Eleições elaborada pelo Instituo Alziras10 se dedica a explicar o déficit de representação de mulheres nos cargos eletivos de modo a contribuir para o aprimoramento dos marcos normativos vigentes. Iniciativas como a plataforma online Im.pulsa11, realizada em parceria pelo Instituto Update e pela Elas no Poder Brasil também buscam modificar essa lógica perversa que despoja as mulheres da política, oferecendo a formação gratuita para inspirar campanhas eleitorais da próxima geração de mulheres líderes.

Nesse ano de 2022, em que completamos 90 anos da conquista do voto pelas mulheres, resultado da luta de sufragistas como Alzira Soriano, Leolinda de Figueiredo Daltro, Bertha Lutz entre outras, sabemos que ainda há muito para ser alcançado. Dos quase 147 milhões de eleitores brasileiros que devem ir às urnas em outubro, mais de 52% são mulheres12. Que possamos coletivamente eleger representantes capazes de enfrentar os desafios existentes, especialmente o combate à discriminação em geral, a misoginia, o racismo e o capacitismo, e de transformar os espaços políticos e de poder em lugares de maior inclusão, representação e atenção com à vida e à dignidade de todas as mulheres.

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1 Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/audios-atribuidos-a-arthur-do-val-dizem-que-ucranianas-sao-faceis-porque-sao-pobres/

Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/trabalho-e-previdencia/2022/02/desemprego-no-pais-cai-para-11-1-no-quarto-trimestre-de-2021#:~:text=A%20taxa%20de%20desemprego%20no,chegava%20a%2012%2C6%25.

Disponível em: https://datalabe.org/dispensadas/

Disponível em: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Repositorio/40/Documentos/Legislacao/traducaoONU_pessoasDeficiencia_links.pdf

Disponível em: https://www.ipu.org/women-in-politics-2021

Disponível em: https://oig.cepal.org/pt/indicadores

Disponível em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/10/08/no-de-mulheres-eleitas-se-mantem-no-senado-mas-aumenta-na-camara-e-nas-assembleias.ghtml

Disponível em: https://www.ibge.gov.br/apps/snig/v1/?loc=0&cat=128,-1,1,2,-2,-3&ind=4726

Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47446723

10 Disponível em: https://mulheresnaseleicoes.org.br/

11 Disponível em: https://www.impulsa.voto/

12 Disponível em: https://www.tse.jus.br/eleitor/estatisticas-de-eleitorado/estatistica-do-eleitorado-por-sexo-e-faixa-etaria

Laís de Figueirêdo Lopes

Laís de Figueirêdo Lopes

Advogada, Doutoranda em Direito Público pela Universidade de Coimbra, Mestre em Direitos Humanos pela PUC/SP e Sócia de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados. Integra o Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e a Coordenação da Frente Jurídica da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva. Foi Conselheira do Conade - Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência representando o Conselho Federal da OAB, de 2006 a 2011, e Ex-Assessora Especial do Ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, de 2011 a 2016. Participou do comitê ad hoc de elaboração da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU de 2005 a 2006, e do processo de ratificação no Brasil de 2007 a 2009.

Natalia Toito Galli

Natalia Toito Galli

Advogada de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados.

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