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Observações sobre a lei 14.311 - Trabalho presencial das gestantes. Evidências de Inconstitucionalidade

A redação final do projeto de lei, aprovada pelo Congresso, equiparava o afastamento presencial da empregada gestante, no caso de incompatibilidade com o exercício de qualquer atividade remota.

terça-feira, 22 de março de 2022

Atualizado em 24 de março de 2022 10:26

(Imagem: Arte Migalhas)

A lei 14.311/22, publicada em 10 de março de 2022, alterou a lei 14.151/21, que disciplinava o trabalho da empregada gestante, durante o estado de emergência de saúde pública de importância nacional, decorrente do coronavírus.

A nova regra implica afastar do trabalho presencial a gestante que ainda não esteja totalmente imunizada, sem prejuízo da sua remuneração, podendo o empregador submetê-la a qualquer espécie de trabalho remoto, inclusive alterando, nesse período, as funções da empregada (redação do artigo 1º, caput, da lei 14.151/21, com os acréscimos dos parágrafos 1º e 2º).

As mudanças, até ali, foram positivas, pois a redação original impunha o afastamento presencial da empregada apenas em razão da gravidez, mesmo estando ela completamente imunizada e, observados os cuidados necessários, em plenas condições de trabalho, sob às expensas do empregador, havendo ou não possibilidade de teletrabalho ou similar.

Os problemas começam a partir do parágrafo 3º, do art. 1º, introduzido pela lei 14.311/22.

Tal dispositivo determina que a empregada gestante retorne ao trabalho presencial, salvo se o empregador optar por mantê-la afastada, em trabalho remoto ou à disposição, nas hipóteses de (i) encerramento do estado de emergência de âmbito nacional, (ii) imunização com dosimetria integral ou (iii) opção individual da empregada pela não vacinação contra o coronavírus, bastando à gestante assinar um termo de responsabilidade e de livre consentimento, indicado no parágrafo 6º da nova redação, para o exercício do trabalho presencial.

Além disso, no seu parágrafo 7º, igualmente acrescentado ao artigo 1º, a Lei conceitua da seguinte forma o exercício de opção acima grifado:

"§ 7º O exercício da opção a que se refere o inciso III do § 3º deste artigo é uma expressão do direito fundamental da liberdade de autodeterminação individual, e não poderá ser imposta à gestante que fizer a escolha pela não vacinação qualquer restrição de direitos em razão dela."

Aqui se verifica, ao meu juízo, uma manifesta inconstitucionalidade, haja vista as decisões já proferidas sobre o tema, pelo STF.

Embora a Lei em questão trate especificamente da gestante, o conceito adotado no mencionado parágrafo ("direito fundamental da liberdade de autodeterminação individual") tem um alcance naturalmente amplo e geral, mesmo porque não haveria justificativa para se restringir esse suposto direito fundamental à empregada gestante.

Ocorre que o STF, apreciando as ADIs (ações diretas de inconstitucionalidade) 6.586 e 6.587 e o ARE (agravo em recurso extraordinário) 1.267.879, entendeu de forma diametralmente oposta, asseverando a constitucionalidade da autorização legal para a vacinação obrigatória e demarcando o limite das liberdades individuais quando o seu exercício possa afetar um direito maior, colocando em risco a segurança dos seus pares no contingente laboral, das suas famílias e da sociedade como um todo.

O posicionamento unânime dos ministros da Suprema Corte, nos citados julgamentos, privilegiando a segurança da coletividade em face dos riscos de contaminação, conflita, cristalinamente, com a concessão, prevista na lei 14.311/22, de um pretenso direito de liberdade individual ao trabalho presencial, mesmo sem a imunização por meio de vacina, mediante a simples assinatura de um termo de consentimento e autorresponsabilidade.

A lembrança de algumas passagens dos Votos consignados naqueles julgamentos é ilustrativa:

Ricardo Lewandowski - "a saúde coletiva não pode ser prejudicada por pessoas que deliberadamente se recusam a ser vacinadas". "Sob o ângulo estritamente constitucional, a previsão de vacinação obrigatória, excluída a imposição de vacinação forçada, afigura-se legítima".

Luís Roberto Barroso - "A dignidade protege também o próprio indivíduo eventualmente contra a sua desinformação ou a sua escolha equivocada, impondo a ele a imunização que irá preservar a sua vida ou a sua saúde. Esse é um dos raros casos em que o paternalismo se justifica, com o estado se sobrepondo à vontade individual". "escolhas individuais não são legítimas quando afetam gravemente direitos de terceiros". "As vacinas só atingem de forma ampla seu objetivo, que é a erradicação ou controle de uma moléstia, quando uma quantidade elevada de pessoas está imunizada."

Alexandre de Moraes - "a preservação da vida, da saúde, seja individual, seja pública, em um país como Brasil, com quase 200 mil mortos pela Covid-19, não permite demagogia, hipocrisia, ideologias, obscurantismo, disputas político-eleitoreiras e, principalmente, não permite ignorância". "A vacinação compulsória é uma obrigação do poder público e, também, do indivíduo".

Carmem Lúcia - "pior do que ser contaminado pelo vírus, é o medo de contaminar alguém". "Temos medo de contaminar alguém por uma falta nossa. Quem tem dignidade, respeita a dignidade do outro também". "A vacinação não é forçada, mas há medidas indiretas que a pessoa tem que cumprir e é um dever genérico". "A liberdade não é absoluta e não pode ser contra tudo e contra todos. Egoísmo não se compadece com a democracia."

Luiz Fux - "A hesitação contra a vacinação é uma das dez maiores ameaças à saúde global, segundo a Organização Mundial de Saúde".

Não bastasse, em novembro de 2021, O ministro Luis Roberto Barroso, apreciando 4 (quatro) arguições de descumprimento de preceito fundamental, ADPFs 898, 901 e 905, propostas por determinados partidos políticos, suspendeu, liminarmente, o cerne da então editada Portaria MTPS 620/21, que proibia os empregadores de exigir documentos comprobatórios de vacinação para a contratação ou manutenção da relação de emprego, se reportando o relator, inclusive, às decisões acima destacadas:

"Em tais condições, é razoável o entendimento de que a presença de empregados não vacinados no âmbito da empresa enseja ameaça para a saúde dos demais trabalhadores, risco de danos à segurança e à saúde do meio ambiente laboral e de comprometimento da saúde do público com o qual a empresa interage (.)

Vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a legitimidade da vacinação compulsória, por meio da adoção de medidas indutivas indiretas, como restrição de atividades e de acesso a estabelecimentos, afastando apenas a possibilidade de vacinação com o uso da força" (.)".

Amparadas no posicionamento assumido pelo STF, diversas empresas estabeleceram normas internas, impondo a obrigatoriedade da vacinação, como medida de segurança do trabalho, visando a prevenir a propagação do vírus, em benefício comum da saúde da coletividade.  

A lei 14.311/22, determinando, a pretexto de disciplinar o trabalho da gestante, que o empregado detém o direito fundamental de autodeterminação, lhe oferecendo (ou impondo, como se verá) a opção de  não se vacinar contra o coronavírus, trabalhar presencialmente em contato com os demais trabalhadores e permanecer imune a qualquer restrição do empregador (combinação dos parágrafos 3º, III, 6º e 7º), interfere nas citadas normas regulamentares, prejudicando assim o dever constitucional dos empregadores de zelar pela saúde dos seus empregados e desafiando o reiterado entendimento do STF.

É possível afirmar que a Lei renova o espírito da Portaria MTPS 620/21, liminarmente suspensa, neste particular, agregando, como suposta garantia (não se sabe bem do que e para quem), a formalização de um termo de responsabilidade e consentimento.

Desse modo, é patente a inconstitucionalidade do art. 1º, parágrafos 3º, III, 6º e 7º, da lei 14.151/21, com a redação que lhe atribuiu a lei 14.311/22, haja vista a aplicação dos preceitos constitucionais vinculados ao direito social à saúde (art. 6º), à obrigação de redução dos riscos ao trabalho "por meio de normas de saúde, higiene e segurança" (art. 7º, XXII), ao dever de preservação do meio ambiente (art.225) e dos princípios da solidariedade, da dignidade e da proteção à vida, também albergados pela CF, de acordo com o uníssono posicionamento do STF.   

A Lei, ademais, no seu contexto, cita aleatoriamente direito, liberdade e obrigação, embaralhando esses conceitos, que acabam por se anular, mutuamente. Reparem:  

"Art. 1º Durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do coronavírus SARS-CoV-2, a empregada gestante que ainda não tenha sido totalmente imunizada contra o referido agente infeccioso, de acordo com os critérios definidos pelo Ministério da Saúde e pelo Plano Nacional de Imunizações (PNI), deverá permanecer afastada das atividades de trabalho presencial.

§ 1º A empregada gestante afastada nos termos do caput deste artigo ficará à disposição do empregador para exercer as atividades em seu domicílio, por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho a distância, sem prejuízo de sua remuneração.

 

(...)

§ 3º Salvo se o empregador optar por manter o exercício das suas atividades nos termos do § 1º deste artigo, a empregada gestante deverá retornar à atividade presencial nas seguintes hipóteses:

(...)

III - mediante o exercício de legítima opção individual pela não vacinação contra o coronavírus SARS-CoV-2 que lhe tiver sido disponibilizada, conforme o calendário divulgado pela autoridade de saúde e mediante o termo de responsabilidade de que trata o § 6º deste artigo; (...)".

Está afirmado, portanto, conforme a sequência dos dispositivos acima transcritos, que se o empregador não se interessar por manter a empregada gestante em casa, com ou sem trabalho (art. 1º, parágrafo 1º, que pressupõe, salvo engano, um direito do empregador), ela, a empregada, "deverá" (o termo é imperativo, denotando obrigação) trabalhar presencialmente, mesmo não imunizada, através do exercício da "opção" indicada no parágrafo 3º (que seria, em princípio, um direito, relacionado a liberdade individual).  

Com muito esforço teleológico, se poderia interpretar que quando o legislador menciona o dever, ele está, na verdade, concedendo um direito à empregada a ser cumprido pelo empregador, a partir da manifestação de opção formalizada pela gestante. Por outro lado, como conceber um direito (o de trabalhar sem imunização), que só poderá ser exercido conforme a vontade do empregador (a de manter ou não a empregada gestante em home office ou à disposição)?

Enfim, sem nos descurarmos da hermenêutica e da exegese, certo é, ao menos na dicção literal da Lei, que a "opção" sequer é real, por estar apresentada, aparentemente, como decorrência de uma imposição, por sua vez condicionada a um ato do empregador.

No entanto, sem embargo das gritantes incongruências do texto legal, o mais relevante é que, se por acaso existe mesmo uma previsão clara de legítima opção de trabalhar sem a devida imunização, ela é inconstitucional, pois, como decidido pela Suprema Corte, não existe, em tempos de pandemia, direito de liberdade individual de autodeterminação, que justifique expor um grupo ou comunidade de empregados a um risco maior de contaminação.    

Indo mais adiante, está correto ponderar que a Lei se presume constitucional, até que se declare o contrário, por meio dos canais jurídico processuais próprios. Portanto, às empresas que regulamentaram a obrigatoriedade de vacinação dos seus respectivos empregados, cabe, no momento, com amparo no parágrafo 1º, do art. 1º, manter as gestantes não completamente imunizadas afastadas do trabalho presencial, pagando-lhes, em qualquer hipótese, a remuneração habitual, ressalvada a possibilidade de acionamento judicial. Mantém-se, assim, a higidez dos seus regulamentos e a segurança no ambiente de trabalho.

Neste aspecto - pagamento pelo empregador sem a contraprestação dos serviços - o problema na Lei resulta dos vetos promovidos pela presidência da República.

A redação final do projeto de lei, aprovada pelo Congresso, equiparava o afastamento presencial da empregada gestante, no caso de incompatibilidade com o exercício de qualquer atividade remota, à gravidez de risco, para os efeitos da concessão do benefício da licença maternidade.

Essa previsão, além de suprir a lacuna da Lei alterada, pacificaria a questão no âmbito judicial, considerando-se que, desde a edição da lei 14.151/21, foram proferidas, na Justiça Federal, diversas decisões reconhecendo a inconstitucionalidade da atribuição ao empregador do ônus pelo pagamento à gestante afastada e sem atividade laboral, tendo em vista que os valores pagos nessas condições, a teor do princípio constitucional da solidariedade social (artigos 201, II e 203, I, da CF e, ainda,  item 8 do art. 4º, da Convenção 103, da OIT), deveriam se enquadrar como salário maternidade, às expensas do INSS, na forma do art. 72, parágrafo 1º, da lei 8.213/91.

As mesmas decisões enfatizavam que a Lei, ao cabo, causava a desproteção da mulher quanto ao acesso ao mercado de trabalho, sem falar que, a rigor, a CLT, tratando justamente da proteção a maternidade (seção V, capítulo III), confere, no seu art. 394-A, parágrafo 3º, suficiente reserva legal, para que o afastamento em enfoque ensejasse a percepção da licença maternidade, tal qual estipulado no projeto de lei submetido à sanção.      

Os vetos, entretanto, perpetuam a indefinição original, e, uma vez praticados sob a justificativa de não colocar em risco a sustentabilidade do sistema de seguridade social, fazem supor a intenção de submeter o ônus para o empregador.

A provável consequência, como sói acontecer por estas bandas, será mais litigiosidade e menos segurança jurídica.

Cristóvão Macedo Soares

VIP Cristóvão Macedo Soares

Sócio no Bosisio Advogados.

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