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Nosso estado de direito está agonizante

É preciso uma profunda reflexão por parte dos responsáveis pela fiscalização e aplicação do Direito Punitivo a fim de se encontrar as razões mais profundas desse lento e progressivo assassinato de nosso Estado de Direito.

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Atualizado às 09:38

(Imagem: Arte Migalhas)

Há muitos anos sou assíduo leitor do jornal "Folha de São Paulo". Mas, nos últimos tempos, recolho a edição que deixam à porta de serviço de nosso apartamento, hesitante entre ler os editoriais e as notícias, ou não.

Obviamente, a necessidade de obter informações sempre é vencedora. Mas, com as leituras, vou colecionando frustrações e, porque não dizer, espantos!

Ainda dia 9 de abril o ilustre Professor Oscar Vilhena Vieira, cujas análises inteligentes sempre vão diretamente ao cerne do problema, discorreu sobre o declínio de nosso Estado de Direito, apontando, como sintomas claramente visíveis, o "crescimento do crime organizado na região amazônica, no âmbito da corrupção e no fortalecimento do milicianismo e do tráfico".

Domingo (10 de abril), acabo de ler o jornal e vejo como o citado articulista tem razão. O conjunto das matérias nem parece ter sido escrito hoje, mas em data antiga, antes da Constituição Federal de 1988. De um tempo em que a sociedade e o Estado não dispunham de mecanismos teoricamente eficazes e aptos para fiscalizar, coibir e punir os atos que estão estampados na edição.

Para ficarmos com a opinião do Jornal, menciono dois editoriais contundentes.

No primeiro ("De roubos a robôs"), o editorialista comenta, logo no início, o segredo que envolveu a iniciativa de licitação de computadores no valor de 3 bilhões de reais, "em boa hora abortada" - pela qual uma escola com 255 alunos receberia 30.000 equipamentos... O FNDE, segundo o mesmo editorial, comandado pelo Centrão, adquiriu kits de robótica para localidades alagoanas por 26 milhões de reais: "o odor de negociata a emanar da transação é forte". A matéria é retomada por Elio Gaspari, que denuncia a compra feita por empresa que não fabrica o equipamento, mas é de Alagoas. Alude, ainda, à exorbitância dos preços pagos. E o editorial prossegue, referindo-se a outros casos escabrosos na área do MEC.

O segundo editorial ("Suprema Insignificância") aponta a ocorrência 3.100 processos, em 2010, no STJ, e de 2.255 no STF, referentes aos chamados crimes insignificantes ou de bagatela, que deveriam morrer - se fosse o caso de haver a instauração de um processo, que custa mais que o valor do dano causado - em primeiro grau de jurisdição, desatravancando os tribunais superiores, para causas de importância nacional. Na maioria são casos de furtos famélicos e os processos representam uma moderna saga daquela vivenciada por Jean Valjean, criado em 1862, pelo gênio de Victor Hugo.

Minha geração de Ministério Público acreditou firmemente na possibilidade de criar instrumentos constitucionais para que essas coisa todas não mais ocorressem. E eles foram criados no bojo da Constituição cidadã, para lembrarmos do epíteto tão bem dado por Ulisses Guimarães.

Com muita urgência, é preciso uma profunda reflexão - por parte dos responsáveis pela fiscalização e aplicação do Direito Punitivo - a fim de se encontrar as razões mais profundas desse lento e progressivo assassinato de nosso Estado de Direito.

Oxalá não demore muito.

Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo

Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo

Advogado e sócio fundador do escritório Dal Pozzo Advogados. Ex-procurador Geral de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo.

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