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Competência do TCU para fiscalizar as EFPC e a defesa do capital privado

Argumentos a favor da competência alegam necessidade de técnicos mais qualificados. No entanto, a complexidade do tema mostra que o TCU pode acabar atuando no interesse do capital privado.

terça-feira, 19 de abril de 2022

Atualizado em 20 de abril de 2022 09:11

(Imagem: Arte Migalhas)

Recente artigo de Fábio Zambitte Ibrahim afirma que o TCU não tem a mesma expertise que a Previc para fiscalizar as EFPC. O professor, contudo, acaba por defender a competência da corte de contas para fiscalizar diretamente as EFPC.1 É saudável o debate. Afinal - em sentido contrário - há os fundamentos da ADPF 817/21 [Relatoria de Rosa Weber] e do MS 37.802/21 [Relatoria de Ricardo Lewandowski]. Dialeticamente, penso que alguns pontos levantados pelo autor do artigo merecem um segundo olhar. Não é um confronto. Apenas desejo enriquecer o tema pelo diálogo.

Escreve o professor:

"Difícil apontar que uma EFPC patrocinada pelo Governo Federal não se enquadre como pessoa que assuma obrigações de natureza pecuniária em nome da União."

Ao tratar de EFPC patrocinada pelo "Governo Federal", pareceu-me que se estava tratando apenas do regime de previdência complementar para os servidores públicos federais (lei 12.618/12).2 Sendo esse o caso, faço uma ressalva: Essas EFPC não assumem obrigações em nome da União. Como são planos CD3 (art. 12 da lei 12.618/12), não há que se falar nem mesmo em déficit, equacionamento, contribuições extraordinárias e agravamento das obrigações do patrocinador público. Assim, todas as obrigações da União já estão previstas em Lei e nos Convênios de Adesão.

Contudo, o TCU tem ido mais além. Autodeclara sua competência para fiscalizar absolutamente todas as EFPC. Ou seja, inclui até mesmo as que não têm entre seus patrocinadores, uma autarquia, fundação, ou sociedade de economia mista controlada direta ou indiretamente pela União.4

Prossegue o autor:

"Basta lembrar que má-gestão de recursos garantidores, na hipótese de déficits dos planos de benefício, tendem a gerar planos de equacionamento com a imposição de contribuições extraordinárias, as quais, inevitavelmente, também recaem sobre as patrocinadoras. No caso, a União."

Como os planos das EFPC sujeitas à lei 12.618/12 são CD, neste ponto, tem-se a sensação de que agora a referência seria às demais EFPC sujeitas à Lei Complementar 108/2001 (com Planos BD e CV)5. Diante disso, Concordo que, de fato, a má-gestão pode gerar déficits. Contudo, o texto pode levar um leitor menos atento a uma conclusão equivocada. Deve-se alertar que a boa qualidade da gestão não é ato a ser fiscalizado pelo TCU. Ainda que sua competência fosse admitida, seu alcance se limitaria a apurar a existência de atos ilícitos que causem prejuízo ao erário.

Certo é que, nem mesmo a Previc pode se manifestar sobre a mera qualidade da gestão. Seu papel é aferir se o administrador da EFPC cometeu ato ilícito ao falhar em seus deveres fundamentais de cuidado e lealdade. E, esses deveres não são poucos. Explico. O administrador de EFPC deve ser ativo e probo. Isso significa que só cumpre seus deveres se: atuar sempre no melhor interesse dos planos administrados e; nos processos decisórios, utilizar informação suficiente e consistente para decidir com racionalidade econômica.6 Significa dizer que o administrador de EFPC deve cumprir seu dever fiduciário ao decidir mediante processo formalizado com metodologia adequada para decisões complexas. E, sempre buscar proporcionar uma maior expectativa de solução eficiente para o interesse dos planos administrados. Assim, o administrador de EFPC deve racionalmente: (a) buscar e considerar informações em quantidade e qualidade suficientes; (b) avaliar juízos de risco e retorno; (c) adequar suas decisões ao perfil de risco do plano; (d) ter por interesse de referência a rentabilidade financeira para poder honrar as obrigações de pagar benefícios aos seus participantes; e (e) também observar princípios de segurança, solvência, liquidez e transparência.

Retomando o artigo:

"Afirmar que a EFPC administra recursos privados - o que é correto - também não é capaz de excluir a atuação do TCU, da mesma forma que o Tribunal, por exemplo, deve controlar excessos de horas extras e diárias de servidores públicos, em prejuízo do ente público."

Respeitosamente, há dificuldade em concordar com a comparação. Sabe-se que o pagamento de excessos de horas extras e diárias de servidores públicos é realizado com recursos públicos. De outro lado, como muito bem reconhece o professor, os recursos administrados pelas EFPC são privados. O TCU diverge, todavia, neste ponto. Considera de caráter público até mesmo os recursos privados de planos CD individualizados em contas pessoais e aportados exclusivamente pelo participante.

Seguindo:

"A autonomia do sistema complementar de previdência - outra premissa correta - não afasta os aportes estatais necessários para fins de contribuições normais e extraordinárias derivadas do orçamento público."

Concordo que as contribuições normais dos planos para os servidores públicos federais estão em orçamento público. Todavia, reitero que esses planos são CD, logo não há contribuições extraordinárias para equacionar eventuais déficits. Por outro lado, a situação guarda mais complexidade quando se trata de EFPC patrocinada - entre outras - por uma sociedade de economia mista controlada societariamente pela União.

Ocorre que os recursos para as contribuições não são oriundos do orçamento público, mas do orçamento privado da sociedade empresarial cujo capital é detido parte pela União e parte por sócios privados. Sem avançar muito no direito societário, há hipóteses em que uma sociedade empresarial controlada pela União (por ter um maior número de ações ordinárias), tem a maior parte de seu capital na mão de sócios privados (em razão dos detentores de ações preferenciais).

Ofereço um exemplo mais concreto: A Petros possui 43 planos de benefícios e mais de 100 patrocinadores e instituidores. Os recursos dos planos BD não chegam a 15% do total administrado.7Além disso, deve-se considerar a existência de participantes autopatrocinados; e a paridade patrocinador-participante.8 Ou seja, a patrocinadora contribui com menos da metade da formação do patrimônio administrado. Nesses planos, dada a paridade, há dois patrocinadores privados que contribuem com cerca de 5% e a Petrobras que contribui com aproximadamente 40%. Como se sabe, a Petrobras é societariamente controlado pela União. Ainda assim, o capital da Petrobras é detido pela União [29%/União; 8% /BNDES]; por investidores privados brasileiros [18%]; e por investidores estrangeiros [45%].9 Deste modo, eventuais déficits têm reflexos majoritariamente sobre os sócios privados da patrocinadora. Em outras palavras, do ponto de vista matemático, se o TCU fiscalizar a Petros preocupada com déficits, acabará por atuar muito mais no interesse do capital privado e do capital estrangeiro do que no interesse do capital público.

Voltando às palavras do professor:

"É natural que um tribunal de contas não detenha a mesma expertise que a autarquia responsável pela fiscalização, mas, por outro lado, o conhecimento de mecanismos formais de gerenciamento de riscos pode ser útil, especialmente na realidade nacional, na qual os mecanismos formais de controle falharam nos últimos anos."

Permita-me discordar parcialmente desse argumento. Primeiro, não me arrisco a afirmar que os técnicos da Previc não têm o mesmo conhecimento de mecanismos formais de gerenciamento de risco que os técnicos do TCU. Mesmo que fosse verdade, a correção do problema não se daria pela flexibilização de competência, mas pela qualificação dos profissionais com competência legal para fiscalizar. Concordo, contudo, que os técnicos da Previc têm maior expertise na fiscalização de EFPC.

Outro ponto a comentar:

"evidente risco de prejuízos a participantes e assistidos, justifica a correta interpretação do TCU sobre seu papel."

O risco de prejuízos sempre existirá. É inerente à atividade de gestão de recursos de terceiros. Nessa linha, lembro que a lei 6.385/76 criou a CVM, entidade autárquica em regime especial, com personalidade jurídica e patrimônio próprios, dotada de autoridade administrativa independente, ausência de subordinação hierárquica e autonomia financeira e orçamentária. Entre suas competências está a proteção dos titulares de valores mobiliários contra atos ilegais de administradores das companhias abertas. Questiono: O risco de prejuízos a pessoas físicas/ investidores privados no mercado acionário seria justificativa para o TCU fiscalizar a gestão das companhias abertas?

No mesmo modo, a Lei complementar 179/2021 e a lei 4.595/64 disciplinam o Banco Central do Brasil, autarquia de natureza especial que tem por objetivo assegurar a estabilidade de preços, zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego. Dentre a lista de suas competências está o exercício da fiscalização das instituições financeiras. Repito a questão: O risco de prejuízos a pessoas físicas/ investidores privados no mercado bancário seria justificativa para o TCU fiscalizar a gestão das instituições financeiras?

De maneira análoga, a lei 12.154/09 criou a PREVIC, uma autarquia de natureza especial, dotada de autonomia administrativa e financeira e patrimônio próprio com o propósito de fiscalizar e supervisionar as atividades das EFPC e executar as políticas para o regime de previdência complementar. Insisto nas perguntas: O risco de prejuízos a pessoas físicas/ participantes seria justificativa para o TCU fiscalizar a gestão das EFPC?

Parece-me que indicar a competência do TCU com base no risco do prejuízo de pessoas físicas deve levar à conclusão lógica de que o TCU também pode fiscalizar o mercado acionário e bancário.

Prosseguindo na análise do texto:

"Nos parece que há mais uma relação de cooperação do que propriamente de fiscalização, de forma a se aprimorar mecanismos internos que sejam capazes de mitigar riscos variados."

Receio que não é isso que temos visto. Pelo menos não foram de relação de cooperação os Acórdãos 573/2006; 2730/2010; 2232/2011; 3133/2012; 1306/2013; 2072/2015; 2073/2015; 630/2017; 1252/2017; 595/2018; 3151/2019; 2402/2020; 2917/2020; 3087/2020; 619/2021; e 622/2021 nos quais o TCU autodeclarou sua competência fiscalizatória quanto a todas as EFPC.

Argumenta também o professor:

"A experiência recente com perdas vultosas em fundos de pensão de patrocínio estatal - com o correspondente incremento de contribuições extraordinárias dos entes públicos - aponta para a necessidade de melhorias."

É verdade que atos ilícitos na gestão dos investimentos podem causar ou agravar déficits. Contudo, de forma geral, os déficits que estão sendo equacionados foram causados preponderantemente em razão de múltiplos fatores econômicos e atuariais que passam ao largo da gestão dos investimentos. Ainda assim, discordo da lógica argumentativa. Ademais, não compreendo o argumento jurídico de estender a competência para o TCU em função de perdas ocasionadas por atos ilícitos dos administradores de EFPC. Se os resultados apontam para a necessidade de melhorias, essas devem ser direcionadas para a autarquia que tem competência legal para tanto. Afinal, desde 2006 o TCU autodeclara sua competência para fiscalizar as EFPC e isso também não evitou os déficits.

Por fim, concordo integralmente com o professor em um ponto. O corpo técnico do TCU "é qualificadíssimo, com profissionais que, mediante a correta orientação, podem buscar resultados favoráveis à sociedade." No entanto, adiciono que o corpo técnico da Previc também é qualificadíssimo, com profissionais que, mediante a correta orientação, podem buscar resultados favoráveis à sociedade. Todos dentro do limite de suas competências.

 __________

1 "O papel dos tribunais de contas na fiscalização de entidades de previdência complementar, Fábio Zambitte Ibrahim, segunda-feira, 4 de abril de 2022" https://www.migalhas.com.br/coluna/previdencialhas/362985/tribunais-de-contas-na-fiscalizacao-de-entidades-de-previdencia

Considerando que "Governo Federal" tenha sido utilizado com o significado de União.

3 Planos de Contribuição Definida

4TCU Acórdão 3133/2012: "Os recursos que integram as contas individuais dos participantes das EFPC, quer oriundos do patrocínio de órgãos públicos ou de entidade de natureza jurídica de direito privado, quer das contribuições individuais dos participantes, enquanto administrados pelas Entidades Fechadas de Previdência Complementar (EFPC), são considerados de caráter público."

5 Planos de Benefício Definido e Planos de Contribuição Variável.

6 Do que devemos falar antes de processar um administrador de EFPC? Revista da ABRAPP maio/junho 2021 p.47/50 https://biblioteca.sophia.com.br/terminal/9147/VisualizadorPdf?codigoArquivo=56052

7 ttps://relatorioanual2020.petros.com.br/pdf/petros_ra_2020.pdf#page=69

8 Art. 6º § 1º da Lei Complementar 108/2001.

9 https://www.investidorpetrobras.com.br/visao-geral/composicao-acionaria/

Renato de Mello Gomes dos Santos

Renato de Mello Gomes dos Santos

Mestre em Direito dos Contratos e da Empresa na Universidade do Minho - Braga - Portugal, Graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Pós-Graduado em Direito do Consumidor pela EMERJ; e MBA em Gestão de Negócios pelo IBMEC. Tem cursos de extensão em Direito da Empresa pela UERJ; e Direito Societário e Mercado de Capitais pela FGV e pelo IBMEC. Advogado inscrito no Brasil e em Portugal.

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