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Um problema filosófico: esta palavra existe?

Todos, por uma ou outra vez, já se depararam com palavras ou expressões de emprego amplo ou generalizado no meio jurídico, mas que não encontram respaldo na gramática ou nos dicionários. Como proceder nesses casos?

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Atualizado em 9 de maio de 2022 14:03

(Imagem: Arte Migalhas)

Pode o autor de qualquer peça jurídica perguntar-se, em algum momento, se determinada palavra de fato existe. Um problema com o qual me deparei recentemente foi o da palavra voto-vista. Acontece que essa palavra, de fato, não está registrada na maioria dos dicionários de língua portuguesa, tampouco no volp1vocabulário oficial da língua portuguesa, da Academia Brasileira de Letras. Especificamente sobre esse tópico, o leitor pode consultar as importantíssimas considerações do prof. José Maria da Costa2, no próprio site Migalhas.

Em verdade, este texto primeiro ratifica os comentários de José Maria da Costa, evidenciando um fato importante: o dicionário e o volp não são normas superiores à língua. Nós devemos entender que eles nos servem apenas de boa referência; aliás, na maioria dos contextos, eles nos serão extremamente úteis, porque podem mostrar a grafia correta das palavras da língua. Todavia, a língua - evitando-se todos os clichês das frases sobre a variação linguística - está mudando a todo o momento; assim, é evidente que nenhum dicionário ou site conseguirá elencar todas as palavras da língua, porque isso é simplesmente impossível.

Então, voltemos à pergunta: o que define se uma palavra existe ou como ela é escrita? Bem, essa pergunta, novamente, encontra resposta complexa. Dizemos que, se uma palavra é empregada com frequência em um determinado contexto, ela certamente existe. Além disso, nós nem sequer precisamos prender-nos a normas no sentido de afirmar se uma determinada palavra tem inicial maiúscula ou minúscula. Isso são amenidades que um ou outro documento normatizará de alguma forma, mas isso não ignora anos e anos de procedimentos e instruções sendo produzidas da mesma forma há anos e anos - que provavelmente excedem o tempo de vida do novo acordo ortográfico, ainda engatinhando.

Um outro exemplo sobre esse assunto: a palavra ministro. Todos sabemos que os substantivos próprios sempre receberão inicial maiúscula; contudo, quando esse nome vem antecipado de um substantivo genérico que o designe, então esse substantivo será grafado com inicial minúscula. Veja: "o professor Roberto, o advogado Lucas, o sintaticista Paulo, o docente Marcus". Entretanto, por questão meramente estilística, é padrão dos tribunais em geral escrever a palavra ministro, nessa mesma situação, com inicial maiúscula: "o Ministro Jorge Oliveira, o Ministro Alexandre de Moraes". Haverá, decerto, documentos oficiais que contradigam essa grafia. Mas a tradição ataca a inteligibilidade ou a formalidade do texto nessa situação? De forma alguma! E, sinceramente, eu, como revisor, não gastaria horas do meu dia para corrigir uma grafia que sei que continuará a ser elaborada dessa forma e que agrada aos assessores e ao ministro.

Outro exemplo talvez ainda mais cristalino: a escrita de numerais ordinais. A tradição ortográfica ordenará a escrita sempre com ponto abreviativo, quando ela for efetuada por meio de algarismos indo-arábicos: "1.º, 2.º, 3.º". Porém, procure o leitor a Constituição Federal e diga como são escritos os numerais ordinais nos primeiros artigos. Nenhum deles recebe o ponto; são escritos, pois, desta forma: "1º, 2º, 3º". Assim, já imaginamos que todos os outros artigos de todas as outras leis são assim, e realmente o são. Diga-me, então, por que qualquer autor de texto jurídico escreveria os numerais ordinais com ponto abreviativo, sob a pena de até serem corrigidos ou podados em relação a essa escrita? Não há sentido; isso já é um traço intrínseco ao texto jurídico no todo.

Por fim, o último exemplo que apresento aqui é o do verbo restar. José Maria da Costa, nesta página3, indica não haver instrução gramatical para o uso desse verbo como copulativo (ou de ligação). Então, sintaxes como "o processo restou julgado" são normativamente incorretas, de fato, porque não encontram respaldo entre os gramáticos esclarecidos, os autores cultos e os dicionaristas. Contudo, dada a força desse tipo de construção - que se mostra cada vez mais frequentes nos textos que reviso - tendo a não corrigi-la, uma vez que ela, a meu ver, já integra o estilo do texto jurídico - que pode contar com vocabulário próprio ou, nesse caso, regência específica para um verbo já existente.

Novamente, devemos enxergar a gramática normativa não necessariamente como o conjunto de regras elementares para iniciar o texto. A gramática normativa é, na verdade, um conjunto de regras da escrita formal e culta, mas ela estará sempre em cabo de guerra com o estilo de cada pessoa. Violar uma ou outra norma branda isoladamente jamais acarretará prejuízo completo, porque um ponto aqui ou ali não fará deixar de ser formal um texto inteiro. Do mesmo modo, o estilo vence esse jogo de pontinhos e tracinhos, porque aqui o estilo é mais forte que a instrução normativa - que, aliás, não é clara, nem uníssona, nem fixa.

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1 https://www.academia.org.br/nossa-lingua/busca-no-vocabulario

2 https://www.migalhas.com.br/coluna/gramatigalhas/273961/voto-vista-ou-voto-vista--e-qual-e-o-plural

3 https://www.migalhas.com.br/coluna/gramatigalhas/76280/restar

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Acordo ortográfico da língua portuguesa: atos internacionais e normas correlatas. 2.ª ed. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2014.

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 39.ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.

GARCIA, Orthon Moacyr. Comunicação em Prosa Moderna: aprenda a escrever, aprendendo a pensar. 27.ª ed. Editora FGV: 2010.

SACCONI, Luiz Antonio. 1000 erros de português da atualidade. 3.ª ed. São Paulo: Matrix, 2021.

Roberto Gandulfo

Roberto Gandulfo

Professor de Língua Portuguesa, revisor de textos e pesquisador em Linguística.

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