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Há arbitrariedade na obrigatoriedade da vacinação infantil?

Mariana Morais de Oliveira e Jaíne Hellen Machnicki

A obrigatoriedade da vacinação infantil, disposta no artigo 14, 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, não se trata de uma norma arbitrária.

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Atualizado às 08:44

A obrigatoriedade de vacinação infantil está prevista no §1º do artigo 14 da lei 8.069 de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA), a saber: 

Art. 14. O Sistema Único de Saúde promoverá programas de assistência médica e odontológica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente afetam a população infantil, e campanhas de educação sanitária para pais, educadores e alunos.

§ 1º É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias. 

Vê-se que a legislação é expressa quanto à obrigatoriedade de vacinação nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias. 

Ainda, conforme denota-se do artigo supra, trata-se de obrigatoriedade limitada a casos em que há recomendação pelas autoridades sanitárias. Do mesmo modo, relevante destacar que a obrigatoriedade da vacinação infantil não alcança aqueles que possuem contraindicação médica, em razão de sua condição de saúde. 

No mesmo sentido, verifica-se necessária a demonstração de necessidade da vacina e a realização de testes prévios para aprovação do produto de forma segura. Ou seja, a necessidade de recomendação das autoridades sanitárias demonstra que não se trata de uma autorização indiscriminada de um medicamento que possa ser duvidoso. Em regra, é para ser algo confiável e aplicável aos casos gerais, não às exceções. 

Não obstante a segurança e obrigatoriedade legal, na prática, tem-se a possibilidade de tal norma entrar em conflito com as convicções dos pais ou responsáveis, que podem acreditar na desnecessidade ou na prejudicialidade da vacinação, por inúmeras razões, sejam filosóficas, religiosas, políticas ou outras, impedindo a vacinação de menores.

Considerando isto, na seara jurídica, verifica-se claramente o embate entre dois direitos de suma importância, o direito à liberdade versus o direito à saúde, analisando-se este pelo prisma do melhor interesse da criança. 

Posto isto, no que tange ao primeiro direito em conflito, de acordo com o artigo 5º, caput, da Constituição Federal, toda pessoa tem direito à liberdade, incluindo a liberdade de pensamento e convicções.  

O direito à liberdade, segundo Daniel Sarmento, consiste na possibilidade real de cada pessoa tomar decisões sobre a sua própria vida e de segui-las, não estando limitada tão somente a ausência de constrangimentos externos impostos pelo Estado à ação dos agentes (SARMENTO, 2016, p. 196/197). 

Assim, sob essa perspectiva de liberdade, há pais, que no exercício de seu poder familiar, não acreditando na eficácia da vacina ou acreditando em sua prejudicialidade, optam por não permitir a vacinação de seus filhos. 

Neste contexto, há que se considerar que, em que pese a liberdade ser um direito consagrado constitucionalmente, permitindo que toda pessoa tenha o livre direito de pensamento, convicções, e com isto, possa optar por não se vacinar, tal raciocínio não é aplicável quando se está falando de uma criança, tendo em vista a prevalência do direito à saúde e o melhor interesse da criança, em detrimento ao direito de liberdade dos pais. 

Isto porque, quanto ao segundo direito em conflito, tem-se, dentre os diversos direitos que devem ser resguardados à criança ou adolescente, previstos no artigo 227 da Constituição Federal, o direito à vida e à saúde, os quais devem ser garantidos pela família, sociedade e pelo Estado, in verbis: 

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010) 

No mesmo sentido, é a previsão dos artigos 3º e 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente: 

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. 

Art. 7º A criança e o adolescente têm direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. 

Ademais, para além da norma positivada, tem-se o princípio do melhor interesse da criança que consiste em ser feito o melhor para a criança, de acordo com a Justiça, não com a vontade dos pais. 

Deste modo, verifica-se ilegítima a recusa dos pais à vacinação compulsória de filho menor, pois segundo nota emitida pelo Ministério Público do Paraná o direito em questão é indisponível, decorrente de uma obrigação legal. 

Assim, vê-se, inclusive, que há respaldo à interferência estatal, visando o melhor interesse da criança, sobretudo porque a obrigatoriedade da vacinação infantil está prevista em Lei. Não sendo, portanto, uma interferência estatal sem motivos ou abusiva.

Logo, se constatada a inércia da família em proteger os direitos do menor, fica a sociedade e o Estado autorizados a atuarem. Isto porque, conforme já visto, a escolha do pai ou responsável em não levar seu filho para se vacinar encontra-se em frontal desacordo com o artigo 14, § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente. 

Essa interpretação decorre da visão do legislador e do Poder Judiciário no sentido de proteger a criança e o adolescente, vez que estes são considerados absolutamente incapazes até os 16 anos de idade, não possuindo discernimento suficiente para tomar suas próprias decisões e praticar os atos da vida civil (artigo 3º do Código Civil). 

Nesse mesmo sentido é que se deu a Nota Técnica Conjunta 02/22 aprovada pelo Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais dos Estados e da União (CNPG) sobre a posição  institucional do Ministério Público brasileiro a favor das vacinas e em defesa das crianças. 

Referido tema também foi objeto do Recurso Extraordinário 1.267.879/SP, no qual prevaleceu o melhor interesse da criança, conforme entendimento do ministro Luís Roberto Barroso: 

Crianças são seres autônomos, embora incapazes, e não propriedade dos pais. Diversas cortes internacionais, mesmo em países em que a vacinação não é obrigatória, já impuseram a vacinação contra doenças específicas, como comprovam precedentes da Corte Constitucional italiana, da Corte Superior da Inglaterra e do Conselho Constitucional francês. Portanto, se a convicção filosófica dos pais colocar em risco o melhor interesse da criança, é este que deve prevalecer. 

Veja-se, a vacina tem como objetivo concretizar os direitos previstos no artigo 227 da Constituição Federal e artigos 3º e 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente, pois é a partir da vacinação que se torna possível a prevenção de doenças infecciosas e, em determinadas circunstâncias, até mesmo a erradicação de doenças graves, preservando, portanto, a integridade física dos menores. 

Assim, em caso de desobediência do artigo 14, §1º do Estatuto da Criança e do Adolescente, é possível que os pais ou responsáveis sejam penalizados. Para tanto, incumbe ao Conselho Tutelar e ao Ministério Público tomar as medidas necessárias para proteger o melhor interesse e direito da criança ou adolescente, conforme preceitua o artigo 201, inciso VIII, do Estatuto da Criança e do Adolescente. 

Neste contexto, portanto, há que se considerar que, em que pese a liberdade ser um direito consagrado constitucionalmente, permitindo que toda pessoa tenha o livre direito de pensamento, convicções, e comisto, possa optar por não se vacinar, tal raciocínio não é aplicável quando se está falando de uma criança, tendo em vista a prevalência do direito à saúde e o melhor interesse da criança, em detrimento ao direito de liberdade dos pais. 

Destarte, conclui-se que a obrigatoriedade da vacinação infantil, disposta no artigo 14, 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, não se trata de uma norma arbitrária, vez que respaldada pelo artigo 227 da Constituição Federal e pelos artigos 3º e 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como, aplicada em conformidade com as Recomendações do Ministério da Saúde.

______________ 

RASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 

BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Institui Estatuto da Criança e do Adolescente. 

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. 

FLORENZANO, Beatriz Picanço. Princípio do melhor interesse da criança: como definir a guarda dos filhos? Instituto Brasileiro de Direito de Família, 2021. 

SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016. 

https://crianca.mppr.mp.br/pagina-2158.html - Acessado em 30.06.2022. 

https://www.cnpg.org.br/noticias-cnpg/10534-dentre-outros-temas-em-reuniao-ordinaria-cnpg-aprova-nota-tecnica-sobre-vacinacao-de-criancas-de-5-a-11-anos-contra-a-covid-20.html - Acessado em 30.06.2022. 

https://cnpg.org.br/images/2022/Nota_Tecnica_022022CNPG_-_vacinacao_de_criancas-2.pdf - Acessado em 30.06.2022. 

https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ARE%201267879%22&base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true - Acessado em 30.06.2022. 

https://ibdfam.org.br/artigos/1653/Princ%C3%ADpio+do+melhor+interesse+da+crian%C3%A7a%3A+como+definir+a+guarda+dos+filhos%3F#:~:text=Considera%2Dse%20%E2%80%9Cmelhor%20interesse%20da,primeira%20op%C3%A7%C3%A3o%20para%20o%20judici%C3%A1rio. - Acessado em 30.06.2022.

Mariana Morais de Oliveira

Mariana Morais de Oliveira

Acadêmica de Direito.

Jaíne Hellen Machnicki

Jaíne Hellen Machnicki

Bacharel em Direito pelo UNICURITIBA; Pós-Graduada em Direito Civil, Consumidor e Processual Cível pela UP; Pós-Graduada em Direito de Família pela LFG; Pós-Graduada em Direito Empresarial pela UCAM.

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