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A revisão da "vida toda" e as estatísticas que levam ao retrocesso social

Pensar ou trilhar por este cenário, haverá promoção habitual de ruptura das bases do sistema, algo que a tese visa a corrigir ao conferir prestação previdenciária em melhor patamar financeiro, aliás, uma forma de concretizar a Justiça Social igualmente traçada na programação de 1988.

segunda-feira, 25 de julho de 2022

Atualizado em 26 de julho de 2022 09:50

Há muito tem se observado em solo pátrio uma avolumada judicialização previdenciária de toda a ordem, sob diversos aspectos, parâmetros, sujeitos e hipóteses.

Aludido e preocupante fenômeno pode ser compreendido e enfrentado em variadas frentes, ora a ponto de bem compreender a sua existência em cenários de crise, ora como ponto de estudo crítico a fim de buscar a evolução e aperfeiçoamento do sistema previdenciário.

A bem da verdade, ocorre sim e cada vez mais crescente um intervencionismo judiciário nas relações previdenciárias, notadamente àquelas envolvidas no âmbito do Regime Geral, o maior de todos e gerido pelo INSS, a conhecida autarquia federal previdenciária.

Sob o olhar pragmático e funcional, esse fenômeno aponta para algumas certas direções, dentre elas, de que a autarquia federal previdenciária está a desejar, agindo ou deixando de agir tal qual esperado e reiteradas vezes distante do programa de inclusão social a que se destinou.

É que o cenário nacional da política de proteção previdenciária está em visível colapso, um caos institucional sem precedentes, sem projeções de solução a curto e médio prazo e cada vez mais avolumado em desenfreadas demandas.

Fenômenos conhecidos como a excessiva judicialização1, a enorme fila de atendimento2, a falta de servidores3, a insegurança jurídica pelas constantes reformas4, dentre outros nevrálgicos aspectos apontam para um sistema cada vez mais inconfiável, inseguro e distante das premissas constitucionais.

Tem-se assim que o acesso direto e a pronta intervenção do Judiciário acaba sendo a única solução imediata a fim de conferir dignidade e bem entregar as prestações previdenciárias devidas em favor do beneficiário do sistema.

Neste sentido, o relevo da técnica previdenciária e sua justiça social são de grande monta no dia-a-dia dos trabalhadores, a ponto de se verificar que vários lares apenas sobrevivem com os benefícios auferidos, aliás, com agravamento do quadro a partir da pandemia em sensível aumento das necessidades mais básicas. Neste sentido, uma recente pesquisa: "92% dos aposentados recebem recursos do INSS" 5.

Assim, a Justiça Social ancorada em qualquer prestação previdenciária é algo incontroverso e imprescindível ao vigente Estado do Pós-Social, em que os valores fundamentais do texto constitucional continuam a fundamentar qualquer técnica previdenciária.

Neste trajeto, de desafios previdenciários diversos, a jurisprudência tem contribuído e muito para os ajustes do sistema, a fim de esclarecer, interpretar, complementar e aperfeiçoar as normas previdenciárias e tentar obter a uniformização de entendimentos além da perseguida unidade jurídica.

No âmago deste cenário diversas teses revisionais se viram produzidas pelo sistema jurídico, notadamente através do exercício da advocacia especializada, dos estudos doutrinários, da formação de precedentes, de casos concretos, etc., sendo que muitas destas teses já foram apreciadas pelos tribunais superiores e outras estão em pleno andamento pelas cortes supremas.

Dentre estas, uma tem ocupado os holofotes, entre idas e vindas, além de uma indevida politização dos fundamentos, a prevalência das estatísticas, fatores de impacto econômico, déficit previdenciário, etc., quer seja, a conhecida tese revisional da "vida toda", também nominada por alguns como vida toda contributiva.

A bem da verdade essa revisão se vê em julgamento pela Suprema Corte dentro do Recurso Extraordinário de número 1276977, no tema 1.102, mas sem análise de mérito definitivo até a presente data pelo excelso tribunal6.

Em linhas gerais àquele que participa do regime geral de previdência (RGPS) pelo exercício de alguma atividade remunerada, está automaticamente filiado ao sistema, portanto integrante deste pacto de proteção e com a cogente e peremptória obrigação contributiva, conforme previsto no artigo 201 do vigente texto constitucional7.

Pois bem, aqui o âmago da tese, ou seja, desde a sua filiação ao regime geral o trabalhador que agora passa a ser beneficiário do sistema se encontra na obrigação de exercer os recolhimentos previdenciários, sem opção alguma. Assim, sua vida contributiva é ampla e obrigatória no período de filiação jurídica.

Ocorreu que entre as habituais alterações do sistema ao longo dos anos, uma foi nevrálgica e com grande impacto no sistema de cálculos, quer seja, a lei 9.876/99, trazendo regra de transição no regime de cálculo; o conhecido fator previdenciário, dentre outras novidades.

Aqui o cerne da questão, ou seja, uma mudança normativa desproposital a época, abrupta e que abarcou todos do sistema, indistintamente, sem conferir opção e adesão ao regime jurídico de cálculo mais vantajoso, sobretudo àqueles que já estavam filiados ao regime.

Ocorreu que o INSS passou a conceder benefícios previdenciários se valendo das contribuições vertidas ao sistema desde julho de 1994, desprezando as anteriores, como se essas não estivessem existido ou, que os filiados não estivessem filiados ao sistema em épocas anteriores a este marco temporal.

Decorreu então que apesar do sistema receber recolhimentos pretéritos de toda a vida contributiva, para fins de cálculo dos benefícios o parâmetro foi outro, ou seja, a partir de julho de 1994.

Assim, entre estudos, interpretações e decisões isoladas a tese ganhou azo e passou a ser conhecida e defendida por grande parte da comunidade jurídica especializada, sob o fundamente argumento que ao filiado do sistema deve ser concedida a opção pela regra de cálculo mais benéfica, a fim de se aferir que com o cômputo de todas as contribuições vertidas a expressão econômica do benefício seria visivelmente mais vantajosa.

Infelizmente, o INSS assim nunca procedeu.

A tese trilhou o Judiciário e atualmente se encontra para apreciação na Suprema Corte, sem análise de mérito em definitivo.

De outro lado, o terror dos números, das frias estatísticas e do alardeado desajuste fiscal das contas do governo vieram novamente à tona para não só sensibilizar os julgadores da Corte, mas também assustar a sociedade brasileira acerca dos riscos de eventual aprovação da tese.  

Longe desta sintética reflexão exaurir a temática, mas trazer para a reflexão que os argumentos econômicos quiçá confiáveis, novamente aparecem para relativizar o pacto da proteção social.

Apenas por argumentar aqui não há que se falar em ausência de receitas, tendo em vista que claramente há e sempre houve o custeio para justificar os fundamentos da revisão, tendo em vista que o fato gerador confirma a filiação automática e contributiva, vale dizer, sem opção de não contribuição por parte de seus filiados.

Há provas das receitas, do custeio, durante toda a sua vida contributiva ao sistema, seja n condição de segurado obrigatório ou mesmo de facultativo, mas, de novo o que se vê é a não repercussão no plano de proteção e no aprimoramento conforme idealizado na previsão constitucional8.

Em verdade, aparece a numerologia a fim de afastar a programação constitucional e, a bem da verdade, contribuir para um retrocesso não planejado no horizonte do texto de 1988 fazendo com que a tese da revisão da "vida toda", juridicamente plausível e justificada, seja relativizada por efusivos dados econômicos.

Pensar ou trilhar por este cenário, haverá promoção habitual de ruptura das bases do sistema, algo que a tese visa a corrigir ao conferir prestação previdenciária em melhor patamar financeiro, aliás, uma forma de concretizar a Justiça Social igualmente traçada na programação de 1988.

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1 https://www.insper.edu.br/conhecimento/direito/desajustes-favorecem-judicializacao-previdenciaria/

2 https://oglobo.globo.com/economia/epoca/inss-tem-fila-recorde-com-285-milhoes-espera-de-beneficio-equivalente-populacao-de-salvador-25449108

3 https://www.direcaoconcursos.com.br/noticias/concurso-inss-2022-deficit-impacto/

4 https://cnts.org.br/noticias/reforma-da-previdencia-completa-um-ano-com-atrasos-e-filas-para-se-aposentar/

5 https://br.financas.yahoo.com/news/92-dos-aposentados-recebem-recursos-do-inss-171148560.html

6 https://valor.globo.com/patrocinado/dino/noticia/2022/06/30/stf-deixa-revisao-da-vida-toda-proxima-de-ser-aprovada.ghtml

7 Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, na forma da lei, a: 

8 Art. 201. (...) § 11. Os ganhos habituais do empregado, a qualquer título, serão incorporados ao salário para efeito de contribuição previdenciária e consequente repercussão em benefícios, nos casos e na forma da lei.     

Sérgio Henrique Salvador

VIP Sérgio Henrique Salvador

Mestre em Direito (FDSM). Pós-Graduado em Direito Previdenciário (EPD) e em Direito Processual Civil (PUC/SP). Professor Universitário. Escritor. Conselheiro da OAB/MG (23ª). Advogado em MG.

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