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Interposição fraudulenta e o encomendante do encomendante

Um novo olhar sobre a jurisprudência do CARF após a solução de consulta COSIT 158/21.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Atualizado às 13:11

Dentre os diferentes casos desafiadores que tive a oportunidade de relatar durante minha passagem pelo CARF, como conselheira, aqueles envolvendo acusações de interposição fraudulenta de terceiros eram dotados de maior complexidade fática, com diferentes estruturas e uma variedade documental a ser apreciada. 

A interposição pode ser caracterizada, por exemplo, pela ausência de identificação da real importadora das mercadorias nas declarações de importação elaboradas em nome próprio. Ou, ainda, quando a operação, igualmente declarada como por conta própria, foi realizada de fato como uma importação por encomenda, com encomendante predeterminado não identificado. Nesses casos, compete à fiscalização identificar a figura do real importador das mercadorias, aquele que não figurou nas DIs.

Contudo, uma situação fática em especial se destacou entre as diferentes acusações de interposição fraudulenta ordinariamente analisadas, por se tratar de uma situação jurídica bastante peculiar: em uma importação por encomenda a fiscalização afirmava que a real encomendante das mercadorias seria empresa distinta daquela que foi formalmente identificada como tal nas DIs. É aquela interposição que vem sendo vulgarmente chamada de "encomendante do encomendante" e que será aqui analisada a partir dos Acórdãos 3401-006.746, 3402-007.150 e 3401-010.570.

Esses três acórdãos se referem a um mesmo arranjo fático, tendo como autuados as mesmas partes, distinguindo-se as acusações apenas em relação aos períodos das operações de importações. Nas autuações objeto de julgamento, a fiscalização teria identificado simulação nas documentações de importações por encomenda realizadas por uma importadora (I) em interesse de uma empresa atacadista (A). Não obstante (I) tenha declarado a importação por encomenda para (A), figurando ambas ns DIs, a acusação fiscal aduziu que as verdadeiras encomendantes das mercadorias (reais compradoras) seriam empresas varejistas (V) localizadas no mercado interno, que adquiriram as mercadorias da atacadista, no âmbito de contratos de fornecimento, e para quem as mercadorias importadas seriam previamente destinadas. Um elemento considerado relevante pela fiscalização foi o fato de as empresas (I) e (V) pertencerem a um mesmo grupo econômico, não existindo, todavia, qualquer vínculo societário ou de coordenação entre (A) e as demais pessoas jurídicas envolvidas na operação.

Com isso, a acusação fiscal foi no sentido de que a identificação da atacadista encomendante na DI teria por finalidade acobertar a relação comercial existente entre a importadora e as varejistas, reais encomendantes das mercadorias. Logo, estaria caracterizado o ilícito de ocultação do real comprador, punível com a pena de perdimento das mercadorias, conforme art. 23, V, do decreto-lei 1.455/76.

Inexistiu no caso qualquer dúvida de que houve uma importação por encomenda, financiada com recursos da própria importadora. A dúvida recaiu, tão somente, em quem teria sido o efetivo encomendante dessa operação de importação e, por conseguinte, aquele que deveria ser informado na DI: a atacadista (como declarado) ou as varejistas (como apontado pela fiscalização).

A situação fática desses casos é extremamente complexa, dando ensejo a decisões divergentes no âmbito do CARF, em especial porque, à época em que foram proferidas, não havia uma posição oficial da Receita Federal do Brasil para o modelo de importação aqui descrito. No acórdão 3401-006.7461, por exemplo, a turma julgadora, por maioria de votos, afastou a acusação de interposição fraudulenta ao fundamento de inexistir conduta dolosa a justificar a ocorrência da suposta fraude ou simulação a caracterizar a interposição. Já no acórdão CARF 3402-007.1502, entendeu-se por unanimidade de votos pela manutenção da exigência aduaneira, ao fundamento de que o conjunto indiciário levantado pela fiscalização evidenciaria a necessidade de indicar, na DI, o nome das empresas varejistas "encomendantes", por serem as destinatárias finais das mercadorias importadas.

Todavia, em setembro de 2021, foi publicada a solução de consulta COSIT 158, que finalmente delimitou a interpretação jurídica a ser atribuída aos mesmos fatos analisados nos referidos acórdãos. À luz deste novo contexto jurídico foi proferido o acórdão 3401-010.570 que, por maioria de votos, concluiu que "a situação endereçada na solução de consulta é exatamente idêntica a dos autos" e que, portanto, a venda realizada da atacadista (A) para as varejistas (V) deveria ser tratada, na forma da Solução de Consulta, uma venda realizada dentro do ambiente doméstico e, portanto, fora do controle aduaneiro. Por igualmente reconhecer que esse novo parâmetro interpretativo das regras aduaneiras impactou diretamente a operação aqui descrita, considerei oportuno proceder com uma reanálise do caso sob estudo.

Isso porque, na referida Solução de Consulta foi expressamente consignada a desnecessidade de indicação, nos documentos da importação, do "encomendante do encomendante". A RFB admitiu que o encomendante predeterminado localizado no mercado interno não deve ser identificado nos documentos relativos à importação e que essa ausência não implica omissão de informação na DI ou fraude.

Ora, como dito, o ilícito identificado pela fiscalização aduaneira nos casos analisados seria de ocultação, mediante fraude ou simulação, de sujeito que supostamente deveria figurar na DI, sob pena de aplicação da pena de perdimento das mercadorias. Ou seja, a premissa jurídica da qual partiu a autuação foi exatamente a necessidade de indicar na DI o comprador pré-determinado no mercado interno, na condição de "encomendante do encomendante da operação de importação", exigência essa que foi expressamente rejeitada pela referida solução de consulta COSIT.

De forma simplificada, sobredita solução de consulta afastou a relevância probatória de elementos que anteriormente compunham  o conjunto indiciário levantado pela fiscalização para sustentar a suposta fraude, reconhecendo a validade da importação por encomenda com comprador pré-determinado no mercado nacional:  (1) independentemente da empresa importadora (I) e as empresas varejistas (V) integrarem um mesmo grupo econômico, (2) considerando a existência de uma relação comercial da importadora (I) com a formal encomendante (A), (3) sendo irrelevante o fato de uma das varejistas (V) encontrar-se com sua habilitação para operar no comércio exterior "suspensa", e (4) uma vez existente  uma relação comercial de fato entre a atacadista (A) e as varejistas (V). 

Com isso, diante desses novos parâmetros jurídicos firmados pela manifestação da própria RFB, a discussão jurídico-aduaneira relacionada à figura do "encomendante do encomendante" ganha um novo cenário a ser observado pelo CARF em seus futuros julgamentos, na medida em que a SC 158/21 evidencia a plena validade da operação tal como praticada e analisada nos acórdãos CARF 3401-006.746, 3402-007.150 e 3401-010.570. Aliás, esse foi o alerta feito na declaração de voto do Conselheiro Leonardo Branco no referido acórdão CARF 3401-010.570, que afirma de forma objetiva que a própria RFB passou a reconhecer o "modelo de negócio praticado em um contexto de mercado interno", afastando a aplicação do tipo infracional da interposição fraudulenta.

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1 Relatora Conselheira Mara Cristina Sifuentes, julgado em 20/08/2019.

2 Por mim relatado e julgado em 16/12/2019.

Maysa Pittondo Deligne

Maysa Pittondo Deligne

Maysa Pittondo Deligne é advogada. Doutora e mestre em Direito Tributário pela USP. Professora do mestrado profissional do IDP e de cursos de pós-graduação em Direito Tributário.

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