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A suspensão da MP 1.135/22, que adia repasses ao setor cultural e de eventos, pelo STF

O apoio e o incentivo constitucional à cultura é claro e efusivo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Atualizado às 08:35

Os profissionais da cultura tiveram seu meio de vida severamente afetado pela pandemia da COVID-19. Não foram poucas as notícias que veicularam os efeitos negativos percebidos no setor cultural em decorrência da pandemia do coronavírus. Cinemas, museus, teatros e tantos outros centros culturais foram fechados por meses a fio, prejudicando não só o desenvolvimento, como a sobrevivência dessa área. Todavia, o confinamento social confirmou a importância da cultura, revelando que a atuação do setor é fundamental para a saúde mental dos indivíduos em um período tão conturbado.

Os agentes do setor cultural, consternados com o futuro da cultura brasileira, em um contexto pós-pandêmico, considerando a defasagem que sofreram nos anos anteriores, se mobilizaram para pleitear um apoio estatal no processo de retomada das atividades.

Valorizando a categoria e reconhecendo os pleitos dos agentes culturais, o Congresso Nacional aprovou leis que previam expressivos repasses como providências emergenciais a fim de viabilizar a volta das atividades e dos produtos culturais. Dentre essas leis, destaca-se a Lei Complementar 195/22, alcunhada de "Lei Paulo Gustavo" em homenagem ao humorista Paulo Gustavo, que faleceu em 2021, por complicações da Covid-19, e a lei 14.399/22, conhecida como "Lei Aldir Blanc 2" também em homenagem a outro representante do meio artístico brasileiro, Aldir Blanc, que morreu em decorrência do vírus da Covid-19 em 2020.  As duas leis citadas atendem a um mesmo anseio geral no tocante à imperatividade de um apoio financeiro como meio de impulsionar o setor, gravemente afetado pela pandemia.

Ocorre que, mesmo após a aprovação nas duas Casas, o atual Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, vetou ambas as leis sob o fundamento de que seriam inconstitucionais e contrárias ao interesse público1, o que, todavia, não subsistiu, tendo em vista que, posteriormente, o veto presidencial foi derrubado pelo Congresso Nacional2.

No entanto, uma vez promulgadas as leis supracitadas, sobreveio a publicação da Medida Provisória 1.135/22, cujo texto promovia alterações no teor da lei 14.399/22 ("Lei Aldir Blanc 2"), da Lei Complementar 195/22 ("Lei Paulo Gustavo") e da lei 14.148/22 ("Lei do Perse") de modo a protelar os repasses estipulados para os setores de eventos e da cultura, além de conferir incerteza quanto à sua obrigatoriedade.

Assim, com o intuito de se declarar a inconstitucionalidade de tal Medida Provisória, o partido político Rede Sustentabilidade ajuizou, perante o Supremo Tribunal Federal, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, a ADIn 7232/DF. De acordo com os fundamentos da requerente, a MP possuiria inconstitucionalidades não só materiais, como também formais, já que não preenche os requisitos da urgência e da relevância, inerentes à edição de uma MP, não observa aos princípios da administração pública e desrespeita o devido processo legislativo. Ao final, a Rede pleiteou a concessão de medida cautelar, com a suspensão imediata e integral da eficácia da MP 1.135/22.

A ação, que foi distribuída à Min. Cármen Lúcia, repercutiu na mídia e, sobretudo, dentro do meio cultural. Não à toa, viu-se um expressivo número de associações que se habilitaram na ação como amici curiae, como a Associação Brasileira de Cineastas (ABRACI-RJ), a Conexão Audiovisual Centro-Oeste, Norte e Nordeste (CONNE) e a Associação Paulista de Cineastas (APACI), a fim de contribuir com a causa, exteriorizando o papel decisivo das leis Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo para o fortalecimento do segmento audiovisual.

Diante desse cenário, no último sábado (4), a relatora, Min. Cármen Lúcia, proferiu decisão determinante para o futuro próximo da categoria que atua em prol da cultura nacional. Isso porque a relatora concedeu, monocraticamente, a liminar requerida, suspendendo os efeitos da MP 1.135/22, com efeitos ex tunc, não interferindo no seu regular trâmite no Congresso, que, inclusive, por determinação do Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), no dia 1/11/22, prorrogou a vigência da referida MP por 60 dias.

Em seu voto, a Min. Cármen Lúcia ressaltou que "a medida provisória 1.135/22 é uma trava posta a) ao legislador que atuou para elaborar as leis e derrubar os vetos presidenciais e b) para o legislador que atuará na discussão e votação das leis orçamentárias, pelo menos enquanto ela produzir efeitos imediatos". Após a decisão da relatora, a Min. Rosa Weber, atual presidente do STF, convocou sessão virtual extraordinária do Plenário para terça-feira (08) com o intuito de submeter aos demais ministros o referendo à liminar então concedida. Finalizado o julgamento virtual, o Tribunal, por maioria, referendou a decisão proferida pela relatora, vencidos, por sua vez, os ministros André Mendonça e Nunes Marques.

Com a decisão, Cibele Amaral, Diretora da CONNE, associação admitida como amicus curiae na ADIn 7232, representada pelo escritório Ayres Britto Consultoria e Advocacia, se pronunciou e relatou como a notícia foi celebrada pelo segmento:

"Nós estivemos aí, nos anos da pandemia, sofrendo muitas baixas no nosso setor [audiovisual] e tivemos a Lei Paulo Gustavo como uma grande esperança de recuperação para o nosso setor. Foi muito difícil fazer essa lei caminhar porque nós enfrentamos muitos obstáculos e, por fim, conseguimos derrubar os vetos presidenciais no Congresso e, no entanto, [...] surgiu uma MP que atrasava a chegada desses recursos e nós sofremos novamente o impacto de uma promessa que não se cumpria, uma esperança que não via mais uma luz no fim do túnel. Essa notícia de hoje [deferimento da liminar pela relatora] nos enche de esperança, dá um conforto para o nosso setor [...]. Então, nós estamos muito felizes e cheios de esperança para esse ano que vai começar".

No mesmo sentido, o Presidente da Associação Brasileira de Cineastas, ABRACI-RJ, Eduardo Ades Moraes, admitida como amicus curiae na ADIn 7232/DF e representada pela banca De Jongh Martins Advogados, entende que:

"O setor cultural foi um dos mais afetados pela pandemia e talvez o último a retomar suas atividades plenamente. Muitas empresas e profissionais ainda não conseguiram se recuperar do impacto desses anos difíceis. Certamente, o setor não teria passado por tantas dificuldades, se o governo não tivesse contingenciado as verbas destinadas ao fomento à cultura. A Lei Paulo Gustavo, por exemplo, não cria recursos para o fomento ao cinema. Ela pega o dinheiro que era do audiovisual, arrecadado junto às próprias empresas do setor e faz com que esse recurso volte para o investimento no audiovisual. [...] Essas duas leis fazem uma reparação aos danos causados pela pandemia e pelos contingenciamentos do governo à cultura. E fazem justiça à importância da cultura para a economia e a cidadania no nosso país".

A partir dessas falas, rememora-se que a Constituição da República Federativa atribui como competência da União, dos Estados e dos Municípios a garantia aos meios de acesso à cultura, conforme o artigo 23, V. Tal atribuição é, sobremaneira, reforçada no Capítulo III, Seção II, da Constituição Federal, que trata especificamente da cultura, de onde se pode extrair, no caput do artigo 215, que "O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais".

O apoio e o incentivo constitucional à cultura é claro e efusivo. Logo, toda a administração pública deve agir em harmonia com o sentido do texto, vez que a Constituição baliza a atuação dos agentes públicos, incluindo, portanto, o próprio Presidente da República, em consonância com o compromisso por ele assumido perante o Congresso Nacional, sob os ditames do artigo 78, caput, da CRFB/883. Todavia, o que emerge, a partir da conduta adotada pelo Presidente da República, é a aparente inobservância ao direito à cultura, assegurado constitucionalmente, haja vista suas reiteradas ações que geram como efeito o seu desmonte, e não sua valorização.

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1 Bolsonaro veta integralmente Lei Aldir Blanc 2, de apoio à cultura. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/05/05/bolsonaro-veta-integralmente-lei-aldir-blanc-2-de-apoio-a-cultura. Acessado em 08 de nov. 2022.

2 Veto à compensação de perdas do setor de eventos com a pandemia é derrubado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/03/17/veto-a-compensacao-de-perdas-do-setor-de-eventos-com-a-pandemia-e-derrubado. Acessado em 08 de nov. 2022.

3 CF/88. Art. 78. O Presidente e o Vice-Presidente da República tomarão posse em sessão do Congresso Nacional, prestando o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.

Nara Pinheiro Reis Ayres de Britto

Nara Pinheiro Reis Ayres de Britto

Sócia do escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia, Doutoranda em Direito pelo UniCEUB. Professora da pós-graduação lato sensu do UniCEUB.

Bryan Phillip de Jongh Martins

Bryan Phillip de Jongh Martins

Sócio-fundador do escritório De Jongh Martins Advogados. Diretor Institucional do Instituto Victor Nunes Leal.

Airana Avohay N. de Morais

Airana Avohay N. de Morais

Estagiária do escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia. Discente em Direito pela Universidade de Brasília.

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