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As recentes modificações no mercado de combustíveis e o retrocesso ao direito do consumidor

Fernando Rodrigues Martins, Lucia Ancona Lopez de Magalhães Dias e Claudia Lima Marques

Tendo em vista as externalidades e potencialidades que possam ser derivadas da prestação de serviços de abastecimento, as medidas precautórias e preventivas visam à proteção à incolumidade e integridade do vulnerável, não fazendo sentido exposição indevida ao perigo.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Atualizado às 14:56

A Agência Nacional de Petróleo editou no ano de 2021 a Resolução ANP 858/211 com o escopo de "rever as regras de comercialização do revendedor varejista e do transportador-revendedor-retalhista, permitindo a venda direta de gasolina c e etanol fora dos postos de combustível". Singularmente e de início cabe registrar que se trata de 'tomada de decisão normativa secundária' que coloca em xeque as diretrizes principiológicas e regras de conduta que estruturam e funcionalizam a proteção do consumidor no Brasil.

O desenvolvimento desta nova etapa regulatória, compreende-se, está umbilicalmente ligado às inúmeras tentativas lançadas pelo governo federal em fazer frente aos altos preços dos combustíveis no ano de 2021, embora muito do seu conteúdo remonte, inclusive, a debates iniciados há alguns anos2. Até então, a solução fiscal e tributária ainda não estava resolvida junto aos Estados-membros, o que levou a edição da Medida Provisória 1063/213 que na base, acrescia na lei 9.478/97, o dispositivo 68-D, permitindo a revenda nos postos bandeirados de combustíveis de outros fornecedores, mediante informação. Não tardou, a Presidência da República editar regulamento a essa medida, conforme decreto 10.792/21.4

Referida Medida Provisória foi convertida na lei 14.292/225, contudo a redação do mencionado art. 68-D foi totalmente modificada no parlamento, desta feita não ratificando legalmente a venda de produtos de marcas diferentes no mesmo posto revendedor bandeirado. O texto que substituiu aquele originário da MP passou a permitir a comercialização de gasolina e etanol 'fora' do estabelecimento autorizado, criando a figura do 'combustível delivery'.

Em suma, o que temos atualmente: a lei 14.292/22 que autoriza remessa delivery, mas não permite venda de produtos por fornecedores diferentes no mesmo posto revendedor; o decreto presidencial que 'regula' a comercialização de combustíveis entre fornecedores diversos dentro de estabelecimento bandeirado; e a Resolução ANP 858/21 que atua no mesmo sentido do decreto 10.792/21. 

A rigor as anteriores Resoluções ANP 08/07 e 58/17, revogadas parcialmente pela Resolução 858/2021, mantinham diretrizes bem mais favoráveis aos consumidores desse mercado. As modificações agora são extremamente indóceis (e sem coerência na teoria do direito): i - a primeira, que permite a venda de combustíveis fora do ambiente revendedor (posto de gasolina), isso na modalidade 'delivery'; ii - a segunda, que autoriza a venda de combustível de outra marca em posto revendedor bandeirado.

Esse tema deve ser observado analiticamente, mesmo que de forma tão rápida, considerando os seguintes aspectos: o sentido constitucional da regulação; o estímulo ao erro do consumidor e confiança projetada; a banalização aos princípios da prevenção e precaução na comercialização de combustíveis fora da margem de segurança; e o evidente retrocesso aos deveres de proteção ao consumidor.

A atividade regulatória é caracterizada pelo perfil técnico, atento às finalidades estratégicas (especialmente quanto à qualidade de produtos e serviços) e às variações econômicas, bem como às necessidades do mercado (nele compreendido os consumidores). Por isso, não é uma atividade administrativa simples, senão de natureza essencial, multidisciplinar e hipercomplexa.6

Entretanto, tal 'atividade administrativa', mesmo sendo estratégia de orientação e encaminhamento das plataformas econômicas, quer sejam gerais ou setoriais, deve atender e obedecer aos objetivos indicados pelo interesse público fundamental.  Não se trata de dar vazão a subjetivismos políticos, senão aos regramentos jurídicos que devem nortear essa atividade.

Observe que o art. 174 da Constituição Federal dispõe que "como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado". Isso remonta que conjuntamente à atividade de polícia (fiscalização), o Estado deve regular a atividade econômica de setores privados levando-se em consideração planejamento e incentivo.

Vale lembrar, contudo, que como 'não se interpreta o direito em tiras'8, cabe ao Estado nesta atividade regulatória observar os fundamentos e princípios que regem a ordem econômica e que estão designados no art. 170 da Constituição Federal. Vale o destaque para vida digna (caput) e para a proteção do consumidor (inv. V), dentre tais diretrizes.

Não à toa que a lei 13.848/19 - que dispõe sobre a gestão, organização e processo decisório das agências reguladoras - vincula como dever dessas instituições zelar pelo cumprimento da legislação de defesa do consumidor (art. 31). Veja-se no iter legislativo, após a aprovação da lei 14.292/22, houve a edição de decreto presidencial que, infelizmente, imiscuiu-se na atividade regulatória, açambarcando o tema de competência constitucional e retirando a autonomia da agência reguladora.

Ainda a nova Resolução (assim como o Decreto) ao permitir que bandeiras (marcas) diferentes promovam venda de combustíveis dentro do mesmo estabelecimento promove verdadeira (des)informação, confundindo o consumidor e permitindo que ele compre combustíveis levado pela aparência ou erro.

O posto revendedor utiliza de forma ostensiva a marca da bandeira, suas insígnias, designers, banners explorando a respectiva imagem que, inclusive, tem valor extrapatrimonial9 e que dentre outras funções serve para individualizá-la perante os demais fornecedores. Essa imagem, que contextualiza a oferta, desperta no consumidor a expectativa quanto ao produto e sua marca, desencadeando a tomada de decisão para se dirigir ao interior do estabelecimento para abastecer o veículo. Matéria essa, outrora, pacificada no STJ.10

Calha alertar que a exigência de informação quanto ao produto de fornecedor diferente que deveria constar na bomba não exclusiva da bandeira ("bomba branca"), conforme está na Resolução, não tem utilidade alguma para afastar a indução do consumidor em erro. A medida é insuficiente, justamente porque a confiança gerada no consumidor pela fornecedora principal, através da ostensiva marca da bandeira e de sua publicidade, proporcionará lucratividade à fornecedora intrusa, que apenas se apresenta com informações de identificação, não proporcionais aos inerentes destaques marcários e publicitários principais e cuja identificação levaram o consumidor a escolher aquela bandeira, aquele combustível. Fosse diferente, bastaria o consumidor se dirigir diretamente a um posto bandeira branca.

Tudo isso, sem levar em consideração outro aspecto de natureza subjetiva: a vulnerabilidade do consumidor11, que em inúmeras oportunidades não saberá diferenciar as marcas, pensando que ambas se resumem numa só. Circunstâncias como idade, alfabetização, tamanho das letras do aviso de informação (quando existente), déficit de cognição são extremamente essenciais para avaliar o resultado que se espera das informações afixadas nas bombas em cotejo com a marca da bandeira e sua publicidade amplamente exposta.

Também não seria razoável contemplar marcas reconhecidas e aceitas pelo mercado, com aquelas 'free riders', 'fornecedores carona' (inclusive através de bandeiras brancas), que concorrem sem arcar com os mesmos custos, investimentos, publicidade e externalidades do agente principal. O que mais uma vez é ilícito, já que o CDC, nos direitos básicos, privilegia a concorrência leal (art. 6º, inc. IV), repudiando métodos comerciais desleais que geram prejuízos ao consumidor (art. 4, VI).

Observe que enquanto o posto revendedor treina e capacita seu pessoal para servir a marca principal, os 'caroneiros' utilizam dos mesmos recursos humanos para alcançar lucratividade, frustrando principalmente a função social do contrato. Interessante que dados da própria ANP demonstram que, após a Resolução 858/2021, as cinco maiores distribuidoras que atuam com bombas brancas aumentaram três vezes mais o volume de vendas justamente por meio do fornecimento de combustível para os postos bandeirados, o que reforça as preocupações ora expostas de lesão aos direitos do consumidor por força de tal regulação.12

Já em termos de práticas comerciais deve ser levado em consideração o disposto no art. 31 do CDC que exige que toda oferta e apresentação assegurem informações corretas, claras, precisas e ostensivas, o que será pouco provável dentro do mesmo estabelecimento. Por isso, a exclusividade de bandeira no mesmo estabelecimento encontra respaldo no entendimento do STJ (MS 4.578/DF).13

Uma última advertência respeita ao problema do micro dano, porque a identificação insuficiente do autor da lesão (como no caso do fornecedor free rider), considerando a cadeia de fornecimento de que trata o art. 7º, parágrafo único do CDC, poderia igualmente gerar imputação ao fornecedor da marca principal e dificultar a indenização do consumidor. Não se pode olvidar que muitos dos danos causados ao motor e às engrenagens dos veículos por combustível fora das especificações regulatórias só se deixarão manifestar muito tempo depois.

Neste particular, outro ponto que se põe resta ligado à qualidade dos produtos e serviços, ou como nós consumeristas tratamos à 'teoria da qualidade'. A lei 14.292/22 simplesmente aceita a entrega (delivery) de produtos inflamáveis aos consumidores. Ora, isso significa claramente o trepasse do risco do empreendedor ao vulnerável que terá de armazenar ou consumir utilizando meios de segurança próprios, quando não capacitado para isso.

Na verdade, teríamos uma versão do iFood para os combustíveis que se resume no IFuel. Ora, o posto revendedor, como de resto ocorre em quase toda sociedade de mercado na contemporaneidade, não é mero fornecedor de produto, mas essencialmente fornecedor de prestação de serviço, o que exige estrito respeito à integridade física da pessoa.

Esta prestação de serviço deve estar qualificada pela segurança (CDC, art. 8º), bem como pela proteção da vida e saúde do consumidor (CDC, art. 6º, inc. I). Veja-se que pelo CDC os combustíveis se enquadram na categoria de produtos perigosos (já que inflamáveis) e sua comercialização somente é autorizada desde que todos os aspectos de segurança (imanentes e transcendentes) sejam levados a efeito (CDC, art. 9º).

Portanto, não se trata apenas de 'delivery' de produto, mas essencialmente de um nítido processo obrigacional: oferta-compra-pagamento-entrega(produto)-abastecimento (serviço), tudo isso à luz da boa-fé como princípio informativo, integrativo, interpretativo e estabilizador das relações humanas.14

Tudo isso, sem prejuízo da observação de que a lei Consumerista ainda estabelece o dever de prevenção e dever de precaução por parte dos fornecedores, sem prejuízo de alcance aos próprios agentes reguladores. Neste ponto, a própria ANP ao regular dessa forma tão flexível feriu o Texto Constitucional, porquanto não está cuidando dos 'deveres fundamentais de proteção' ao consumidor.

Em outras palavras, tendo em vista as externalidades e potencialidades que possam ser derivadas da prestação de serviços de abastecimento, as medidas precautórias e preventivas visam à proteção à incolumidade e integridade do vulnerável, não fazendo sentido exposição indevida ao perigo.

Por fim, cumpre anotar que as manifestações legislativas e regulatórias não podem fluir contrariamente à conformidade constitucional, mais especificamente aos direitos fundamentais, dentre eles o direito do consumidor. O princípio da vedação ao retrocesso, mesmo que implícito na Constituição Federal, está previsto de forma clara no art. 2º do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, na medida em que se exige dos países subscritores (dentre eles, o Brasil) que assegure progressivamente os direitos sociais, econômicos e culturais ali estabelecidos: o chamado efeito cliquet. 15

Igualmente se relaciona à segurança jurídica (cariz objetivo), porque os direitos fundamentais devem ser efetivados e ao mesmo tempo à confiança (cariz subjetivo) naquilo que a Constituição Federal despertou e deve ser cumprido (CF, art. 5º). Ora, no caso concreto, a vinculação do legislador e do agente regulador é clara: fazer valer os direitos dos consumidores, sob pena de negar a própria Constituição Federal.

Por fim, o princípio da vedação ao retrocesso está muito bem assentado na máxima efetividade dos direitos fundamentais (§ 1º, art. 5º, na expressão direta e imediata) e, por isso, não cabe tergiversações.

Na óbvia constatação que a Resolução 858/2021 rejeitou claramente o Texto Constitucional na consideração da proteção ao consumidor, nos parece que é cabível a arguição de sua inconstitucionalidade.

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1 Publicada no D.O.U em 08.11.2021

2 Como é notório, as discussões sobre a temática se iniciaram em 2018, quando a ANP trouxe ao debate público uma série de Tomadas Públicas de Contribuições (TPCs), que, em síntese, propunham a venda direta de etanol pelas usinas, o fim da fidelidade à bandeira e também a verticalização da cadeia.

3 Publicada no D.O.U em 11.08.2021

4 Publicado no D.O.U em 13.09.2021

5 Publicada no D.O.U em 03.01.2022

6 SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica. São Paulo, Malheiros, 2008.

7 MARTINS, Fernando Rodrigues. Controle do Patrimônio Público. 6ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2021.

8 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 34.

9 Ver STJ - REsp: 1863566 SC 2020/0046086-5 da Relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino de 30/09/2020, no excerto: "Ingerência ilícita que, por afetar a própria identidade marcária, demanda a mesma proteção conferida a direito de personalidade, reconhecível também às pessoas jurídicas, por força do art. 52 do CC".

10 Ver STJ, AREsp 9000097-52.2011.8.26.0100 SP. Rel. Marco Aurélio Bellizze. Extrai-se do voto condutor: "Viola a um só tempo a confiança e as legítimas expectativas dos consumidores, que, ao adquirirem combustível em um posto de determinada bandeira, acreditam na boa procedência e na fiscalização da distribuidora".

11 MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno.  O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

12 Fonte: ANP - Painel dinâmico do mercado brasileiro de combustíveis líquidos.

13 Quem escolhe posto de determinada 'bandeira', para abastecer um veículo, o faz na presunção de que a empresa por ela simbolizada entregará um produto de boa qualidade. Isto ocorre, porque, a exibição do logotipo de marca famosa traduz a afirmação de que no local se vende daquela marca. Ora, se o posto negocia produtos cuja origem não corresponda à sua bandeira, ele estará enganando o freguês (...). Quando o freguês é iludido, a distribuição de combustível não estará correspondendo aos fins sociais que orientam as normas disciplinadoras da distribuição de combustíveis".

14 COUTO E SILVA, Clóvis. A obrigação como processo. São Paulo, Bushatsky, 1976.

15 DUQUE, Marcelo Schenk. Curso de direitos fundamentais: teoria e prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

Fernando Rodrigues Martins

Fernando Rodrigues Martins

Mestre e doutor em direito das relações sociais pela PUC-SP. Professor, adjunto de Direito Civil na Universidade Federal de Uberlândia. Ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia.

Lucia Ancona Lopez de Magalhães Dias

Lucia Ancona Lopez de Magalhães Dias

Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002). Doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (2010) pelo Departamento de Direito Civil (enfoque Direito do Consumidor), aprovada com louvor. Advogada do Escritório Magalhães & Dias, atuando principalmente nas seguintes áreas: relações de consumo, publicidade, direito regulatório e contencioso cível.

Claudia Lima Marques

Claudia Lima Marques

Professora titular de Direito Internacional Privado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutora pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e mestre em Direito (L.L.M.) pela Universidade de Tübingen (Alemanha). É presidente do Comitê de Proteção Internacional dos Consumidores e da International Law Association (Londres). Ex-presidente do Brasilcon e da Asadip (Paraguai).

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