MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Direitos sexuais e reprodutivos da pessoa com deficiência mental e intelectual

Direitos sexuais e reprodutivos da pessoa com deficiência mental e intelectual

O estatuto da pessoa com deficiência alterou o código civil e permitiu o exercício autônomo dos direitos existenciais pelos deficientes mentais e intelectuais, em qualquer grau. Dentro desta categoria, estão os direitos sexuais e reprodutivos. Importante trazer ao debate o quanto estes novos direitos implicam em benefícios aos seus sujeitos e à sociedade.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Atualizado às 14:16

É atribuída a Aristóteles a máxima "a lei é a razão, livre da paixão", no sentido de que ao legislador cabe produzir a norma sem se deixar influenciar por fatores subjetivos, que possam prejudicar sua aplicação ou o desvirtuamento de seu objetivo.

Sabemos, e já restou provado por inúmeros estudos científicos, que nossas decisões pessoais são muitas vezes influenciadas por fatores psicológicos, culturais e ambientais. Porém, a racionalidade é almejada numa sociedade fundada em regras de conduta, na medida em que precisamos da razão para tomar decisões, alcançar um objetivo ou solucionar problemas.

Desde a antiguidade, quando as primeiras civilizações se organizaram, procurou-se regular as ações humanas. O indivíduo inserido num grupo faria a escolha entre obedecer à lei ou sofrer uma sanção. A razão seria avocada individualmente por cada pessoa, que faria, de forma analítica, a escolha entre viver dentro da regra ou sofrer as consequências.

O Direito contemporâneo, de tal modo, é operado sobretudo por leis, produzidas por meio de um raciocínio jurídico lógico-dedutivo, pelo qual se analisa uma situação específica (caso concreto), diante de um axioma geral (lei), extraindo uma consequência racional (conclusão). A utilização desta metodologia garante a certeza e previsibilidade dos direitos e obrigações pelos cidadãos, destinatários das normas. 

O raciocínio, portanto, é essencial para a aplicação do nosso Direito. Em decorrência deste fato, seriam consideráveis imputáveis - aqueles a quem o direito pode ser aplicado - as pessoas com plena capacidade mental e intelectual para realizar este exercício abstrato. Pessoas incapazes de aplicar o raciocínio lógico ou de entender o caráter ilícito de um fato por elas praticado ou de determinar-se de acordo com esse entendimento seriam poupadas de eventuais sanções ou responsabilizações.

Desta forma, os deficientes intelectuais ou mentais, em princípio, entrariam na esfera da exclusão da punibilidade das leis sempre que fossem incapazes de refletir razoavelmente sobre suas ações e seus efeitos. Os primeiros são aqueles que, em regra, possuem uma condição específica (genética ou não) que ocasiona alteração no desenvolvimento cerebral desde o início da vida, enquanto os segundos são pessoas afetadas por doença mental, que se desenvolve mais comumente na vida adulta e que compromete a ordem psicológica e/ou mental. Em ambas as situações, existe um comprometimento de longo prazo do raciocínio e da resolução de problemas.

Porém, a lei 13.146/15, mais conhecida por Estatuto da Pessoa com Deficiência, cujo texto é originário da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU, surpreendeu ao procurar igualar as pessoas com deficiência intelectual ou mental (em qualquer grau) às que possuem plenas habilidades (intelectuais e mentais).

Revogaram-se as proteções anteriormente previstas no Código Civil e a regra passou a ser, portanto, a plena capacidade para exercer os direitos existenciais pelas pessoas com deficiência mental ou intelectual, que podem, além de se relacionar emocional e sexualmente, ter filhos e se casar, sem qualquer assistência de terceiro.

Alega-se, como justificativa a esta alteração legislativa, que a inteligência acadêmica não se confunde com a "inteligência afetiva", ou que a limitação cognitiva não pode privar o sujeito de buscar sua felicidade, o prazer e a intimidade.  Fica evidente o forte apelo emocional dos argumentos apresentados.

Contudo, ao suprimir os dispositivos protetivos da norma anterior, a nova lei pode vir a colocar em perigo exatamente aqueles que pretendia beneficiar. Sobre isso escreveu Fabio Ulhoa Coelho: "ao classificar o deficiente mental entre os incapazes, a lei procurava unicamente protegê-lo, determinando sua representação ou assistência por alguém presumivelmente de sua confiança e sem interesse em prejudicá-lo"1.

O debate torna-se relevante especialmente pela incontestável importância da família como a base da sociedade, nos termos do artigo 226 da Constituição Federal2. Os indivíduos que desejarem iniciá-la devem possuir plenas capacidades para expressar esta vontade, assim como para agir de forma consciente e ponderada, assumindo plenamente as responsabilidades e reconhecendo os direitos decorrentes do casamento e da criação dos filhos.  Seria aceitável preterir estes valores, pelo direito individual da busca à felicidade ou ao prazer? É realmente possível o Estado garantir a busca de direitos abstratos e tão relativos? 

Como afirma Erika Silva, "não se trata de preconceito ou negação de direitos por razões de deficiência. A questão é perceber se o sujeito terá discernimento para compreender a responsabilidade sobre ter filhos e os meios de suprir suas limitações"3.

A referida lei, no intuito de assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais pela pessoa com deficiência, possibilita a ocorrência de situações que podem lesá-la física, emocional e financeiramente. As hipóteses são inúmeras: um portador de esquizofrenia paranoide que desejar ter um filho, sem ter condições de prover o sustento e a segurança necessária para um bebê se desenvolver; o portador de demência em grau avançado que "decidir" se casar e participar de um processo de reprodução assistida; a mulher casada que não conseguir distinguir entre sexo consensual e o abuso ou estupro marital; o reconhecimento de paternidade de terceiro não consanguíneo, dentre tantas outras.

Criou-se, ainda, um paradoxo, quando o referido Estatuto garante, dentre os direitos sexuais, a esterilização voluntária ou a reprodução assistida, situações em que se exige, por lei, a assinatura de um termo de consentimento livre e esclarecido. Será impossível requerer a tomada de decisão livre e esclarecida quando o indivíduo sofre de deficiência que o impede de analisar e refletir adequadamente.

Supõe-se que o referido diploma legal teve a (boa?) intenção de promover aos deficientes a inclusão social e o exercício pleno da cidadania, além de procurar combater o denominado "capacitismo" - preconceito contra estes indivíduos - através da inclusão desta minoria na sociedade de forma ampla. Porém, esta igualdade para exercício dos direitos dificilmente será exercida pela maioria dos deficientes mentais e intelectuais, uma vez que eles não são iguais na compreensão dos atos da vida civil.

Do princípio da igualdade aristotélica surge o conceito de equidade, que considera as diferenças como elemento essencial para a aplicação da justiça no caso particular. De tal modo, a justiça só seria possível na medida em que os desiguais fossem tratados com desigualdade, na intenção de equipará-los em seus direitos.

Em sentido contrário, o estatuto da pessoa com deficiência abdicou das necessárias proteções anteriormente existentes a esta população vulnerável, abrindo possibilidade de que sejam ainda mais injustiçados ao exercer sem assistência a plena capacidade civil.

Uma sociedade deve evoluir e promover a justiça social produzindo leis e desenvolvendo políticas públicas que valorizem a educação, combatam o preconceito e propiciem melhores oportunidades aos socialmente mais vulneráveis, sem a contaminação por modismos ou ideologias apaixonadas que, na prática, podem produzir consequências destrutivas à coletividade.

------------------------

1 Curso de Direito Civil, Volume 1, p. 185

2 Constituição Federal, artigo 226: "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado."

3 Silva, Erika Mayumi Moreira da. "Capacidade civil da pessoa com deficiência intelectual e mental: entre a autonomia e a desproteção jurídica", p. 197. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

Gisele Machado Figueiredo Boselli

VIP Gisele Machado Figueiredo Boselli

Advogada, formada pela PUC de Campinas, SP, pós graduada em Direito Médico e da Saúde pela PUC do Paraná e em Direito da Economia e da Empresa pela FGV,SP, membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São Paulo, capital.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca