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LGPD - Vigilância estatal ou direito à privacidade de dados?

A utilização de informações pessoais dos cidadãos pelo poder público, longe de ser massiva e geral, deve ser específica e fundamentada, orientada pelos direitos fundamentais previstos no art. 5º da Constituição Federal, e pelos princípios que regem a administração pública, estabelecidos pelo art. 37 do texto constitucional.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Atualizado em 16 de dezembro de 2022 09:37

1. Introdução

A lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, conhecida por Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), se traduz, inegavelmente, como marco no ordenamento jurídico brasileiro. A partir da edição da lei, a  intimidade e a privacidade do cidadão brasileiro ganham protagonismo e posição de destaque.

De certa forma, em relação às empresas privadas, não há grandes contradições. No entanto, em relação ao poder público existe um sentimento conflitante: ao mesmo tempo em que se espera a guarda e proteção da intimidade dos cidadãos, admite-se um poder de vigilância sobre os indivíduos, inclusive com uso de recursos tecnológicos e o  compartilhamento de informações entre órgãos da administração pública.

Mas, ao mesmo tempo em que se espera um poder de vigilância estatal sobre os cidadãos, argumenta-se a favor do direito à privacidade dos dados pessoais. Essa dicotomia entre certo e errado, há muito vem sendo estudada na filosofia do direito. O dilema em questão, a LGPD: vigilância estatal x direito à privacidade e à intimidade, é o que se pretende analisar nesse breve artigo.

A análise será feita a partir do voto conjunto proferido pelo relator, ministro Gilmar Mendes, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 695 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.649, julgadas em 15/09/22, que enfrentaram os temas ora discutidos.

2. Direito Fundamental à Proteção de Dados Pessoais

A ADPF 695 foi interposta objetivando impedir ou cessar o compartilhamento dos dados pessoais de 76 milhões de cidadãos brasileiros portadores de Carteira Nacional de Habilitação, cujas informações constam na base de dados do Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO) e que seriam compartilhados com a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Afirma o autor da ação que os atos estabelecidos entre estes órgãos extrapolam os limites do decreto 10.046/19, de 09 de outubro de 2019, e ferem preceitos fundamentais (Constituição Federal, art. 5º, caput e incisos X e XII).

A ADIn 6.649 foi distribuída por prevenção à ADPF 695 em razão de conexão entre as matérias. A pretensão exposta na ADI é a declaração de inconstitucionalidade do decreto 10.046/19, com exclusão do Cadastro Base do Cidadão e do Comitê Central de Governança de Dados.

O cerne da preocupação está no receio de que o massivo compartilhamento de dados, sem limite e fiscalização, possa ocasionar um controle estatal de tamanha magnitude capaz de transformar em realidade a figura do "Grande Irmão" idealizada por George Orwell em sua obra 1984. Esta preocupação já foi manifestada por diversos filósofos no decorrer da história

Segundo o pensamento de Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C), o governo bom é aquele que tem por objetivo a busca da felicidade geral, ou seja, o bem comum. Nesse cenário, o compartilhamento de dados pessoais não importaria em problemas quando o bem comum fosse o objetivo pretendido pelo poder público.

Ocorre que Aristóteles também reconhecia a possibilidade de existência de degeneração do governo, ou seja, que este deixasse de buscar a felicidade do cidadão e o bem comum. E justamente diante deste risco é que a utilização dos dados pessoais poderá ser realizada de forma arbitrária e em prejuízo ao cidadão.

Nas iniciais dos processos, destacam-se ainda elementos do juspositivismo estrito e métodos hermenêuticos defendidos por Hans Kelsen (1881 - 1973):

(a) o método autêntico, ao fazer remissão aos julgados proferidos pelo próprio STF a respeito de privacidade e proteção de dados; e,

(b) método não autêntico ou dogmático, ao se referir a doutrinadores que tratam sobre esse tema.

3. Interesse Público e legalidade

O Estado sustenta que o decreto 10.046/19 observa cada etapa do tratamento de dados e considera a finalidade, o interesse público e a boa-fé, além de utilizar os dados pessoais para o tratamento e uso compartilhado de dados necessários à execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos ou respaldadas em contratos, convênios ou instrumentos congêneres, nos moldes do art. 7º, incido III, da LGPD.

Enfrenta, porém, desafio em aparente conflito com o princípio constitucional da legalidade atribuído ao Poder Público (Art. 37, da Constituição Federal de 1988) e os limites da proteção do direito à privacidade, alçado a direito fundamental autônomo após a promulgação da Emenda Constitucional 115, de 10 de fevereiro de 2022,  devidamente insculpido no art. 5º, inciso LXXIX, da CF/88.

Diante do conflito instaurado, o Supremo Tribunal Federal (STF) adotou posição harmônica entre o direito da pessoa e o dever do Estado, entre o juspositivismo e a virtude ética como meio termo entre estes extremos, na busca da justiça aplicando a lei com equidade, em clara consonância com o pensamento aristotélico.

O voto do ministro, entretanto, parece estar mais ligado ao pensamento de Immanuel Kant (1724 - 1804), do dever ser do Estado, que deve seguir os parâmetros das nações democráticas, no sentido de que o compartilhamento de dados entre órgãos públicos pressupõe rigorosa observância do art. 23, inciso I, da lei 13.709/18, devendo ser dada a devida publicidade às hipóteses em que cada entidade governamental compartilha ou tem acesso a banco de dados pessoais, privilegiando, de tal forma, o direito fundamental inerente à proteção de dados pessoais.

4. Considerações finais: harmonia de interesses - Estado e particular

Segundo o voto analisado, ainda que a coleta, o processamento e o compartilhamento de informações biográficas sejam indispensáveis à mensuração da abrangência e eficiência de políticas públicas, não se pode afirmar que as relações entre Estado e cidadãos permitem um traslado automático de um regime jurídico de proteção de dados às relações privadas.

Não se discute que o compartilhamento efetivo de dados entre os órgãos e entidades da Administração é, sem dúvida, pressuposto de uma gestão pública eficiente. Todavia, o ministro pondera que o debate sobre a privacidade nas relações com a Administração Estatal não deve partir de uma visão dicotômica que coloque o interesse público como bem jurídico a ser tutelado de forma totalmente distinta e em confronto com o valor constitucional da privacidade e proteção de dados pessoais.

Sendo assim, entendemos que a LGPD não pode ser utilizada no contexto filosófico puro do Estado como finalidade. Este é o pensamento de Thomas Hobbes (1588 - 1679), para quem o Estado deve ter o monopólio da força e um poder soberano acima dos indivíduos.

Preferimos seguir o pensamento de John Locke (1632 - 1704), contrário ao poder absoluto do soberano (quem me protege do soberano?). Para Locke, há uma divisão dos poderes e o soberano somente é legítimo se respeita os direitos naturais. Portanto, o ato de compartilhamento de dados somente é válido se realizado em conformidade com os direitos dos titulares, sem prejudicar as ações fundamentais do Estado.

Nesse contexto, nos termos do voto conjunto na ADIn 6649 e ADPF 695, ora analisado, a utilização de informações pessoais dos cidadãos pelo poder público, longe de ser massiva e geral, deve ser específica e fundamentada, orientada pelos direitos fundamentais previstos no art. 5º da Constituição Federal, e pelos princípios que regem a administração pública, estabelecidos pelo art. 37 do texto constitucional.

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Ação Direta de Inconstitucionalidade 6649 e Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 695. Voto Conjunto do Relator, ministro Gilmar Mendes. Disponível em: https://images.jota.info/wp-content/uploads/2022/09/voto-adi-6649-e-adpf-695-1.pdf. Acesso em: 28 nov. 2022.

CALDAS, Camilo Onoda. Teoria Geral do Estado.São Paulo: Ideias & Letras, 2018.

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 28 nov. 2022.

Decreto n. 10.046, de 9 de outubro de 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D10046.htm. Acesso em: 28 nov. 2022.

Lei n. 13.709/2018, de 14 de agosto de 2018. Disponível em. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709compilado.htm. Acesso em: 28 nov. 2022.

MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. 9ª Ed. Barueri: Atlas, 2022.

Reginaldo Angelo dos Santos

Reginaldo Angelo dos Santos

Mestrando em Direito pela EPD/SP. Especialista em Direito Empresarial pela FGV DIREITO/SP. Especialista em Direito Tributário pela PUC/SP. Advogado.

Sadik Sarkis

Sadik Sarkis

Mestrando em Direito pela EPD/SP. Certificado em Privacy and Data Protection pela Exin NL. Pós-Graduando em Compliance pela FGV Direito SP. Diretor Executivo Jurídico. Data Protection Officer e Compliance Officer. Advogado.

Deborah Alessandra de Oliveira Damas

Deborah Alessandra de Oliveira Damas

Mestranda em Direito pela EPD/SP. LLM em Direito Empresarial pela FGV/RIO. Especialista em Direito Empresarial pela PUC/PR. Advogada.

Luisa França Bistene

Luisa França Bistene

Mestranda em Direito pela EPD/SP. MBA em Direito Bancário pela FGV. Gerente no contencioso e conciliação trabalhista do Banco do Brasil no Estado de São Paulo. Advogada.

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