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Reembolso sem desembolso e as fraudes nos seguros saúde

As regras contratuais das operadoras de saúde permitem a livre escolha de médicos, hospitais, laboratórios, internação e procedimento, com reembolso de parte dos gastos feitos pelo beneficiário. Na atualidade, existem práticas de reembolso sem desembolso. A quem essas práticas interessam?

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Atualizado às 13:30

Contratos de seguro saúde e o Instituto Jurídico do Reembolso 

A lei 9.656, de 1998, conhecida como Lei de Planos de Saúde, permitiu que seis diferentes modalidades de operadoras de saúde atuassem no setor: seguradoras; medicina de grupo; cooperativas; autogestão; odontologia e, entidades filantrópicas.

As seguradoras devem obrigatoriamente oferecer livre escolha de médicos, hospitais, laboratórios e outros prestadores em saúde, com direito do beneficiário a receber parte do valor desembolsado no pagamento do serviço. As demais modalidades podem oferecer a livre escolha, embora não sejam obrigadas por lei.

Na livre escolha o beneficiário pode decidir quem será seu prestador de serviços em caso de consultas, exames, internações ou outro procedimento coberto pelo contrato. Depois de utilizar o serviço deve realizar o pagamento do valor e, em seguida, apresentar o comprovante para a operadora e receber o reembolso, sempre em conformidade com os cálculos e percentuais previstos no contrato.

O reembolso das despesas do beneficiário só pode ocorrer depois de: (i) ser prestado o serviço; (ii) ser pago o valor cobrado pelo prestador escolhido; e, (iii) ser comprovado o pagamento para a operadora de saúde.

Com esses dados a operadora poderá efetuar o reembolso nos termos determinados no contrato.

Mutualismo - Essência da Atividade de Seguros

Mutualismo é princípio fundamental dos contratos em todas as modalidades de saúde suplementar, tanto no sistema de rede referenciada como no de livre escolha. Consiste na arrecadação de valores previamente calculados por atuários e estatísticos a partir da análise do risco para composição de um fundo mutual, organizado com a contribuição individual dos beneficiários e do qual sairão todos os valores necessários para pagamento das despesas comprovadamente realizadas para o atendimento de cada beneficiário.

O sistema é de repartição simples, ou seja, todos os valores pagos pelos beneficiários são utilizados para pagamento dos serviços de saúde.  Não há poupança individual porque o valor que custeia os procedimentos não pertence a uma pessoa individualizada, mas a todos que contribuem para a formação do fundo mutual.

É um sistema de solidariedade econômica em que todos contribuem para que alguns possam utilizar nos momentos em que houver necessidade e, respeitados os procedimentos e eventos em saúde previstos no rol da ANS, porque sem essa predeterminação não seria possível formular cálculos para organização do fundo mutual.

O papel legal e institucional das operadoras de saúde é organizar e administrar o fundo mutual composto a partir da contribuição de todos os beneficiários e, cujos valores serão utilizados integralmente para o custeio dos procedimentos de saúde ao longo do período de contratação.

Reembolso nos Seguros Saúde

Quando o beneficiário contrata saúde suplementar com livre escolha tem o direito de utilizar os prestadores de serviços de sua preferência.

Depois da utilização do serviço de saúde escolhido, o beneficiário deve efetuar o pagamento dos valores cobrados e apresentar documentos para a operadora de saúde para obter o reembolso. Os documentos serão aqueles previstos no contrato de seguro:  comprovante de pagamento e comprovação da realização do procedimento que, em casos para os quais existam diretrizes previamente fixadas pela ANS, poderão incluir relatório ou laudo médico.

Não há hipótese de reembolso sem efetivo pagamento ao profissional prestador do serviço de saúde, porque isso caracterizaria a negociação com o instrumento contratual o que é vedado em face das especificidades que os contratos de saúde suplementar possuem. Pela mesma razão, não cabe ao beneficiário a prática de cessão de direito porque, a rigor, antes da análise dos documentos apresentados ele sequer sabe se possui ou não um direito, uma vez que a situação será analisada à luz do contrato e de toda a regulação aplicável ao setor.

Importante ressaltar, ainda, que o reembolso sem efetivo pagamento caracterizaria uma transação financeira possível de sustentar práticas ilícitas como a lavagem de dinheiro, corrupção e financiamento de atos terroristas, o que é ilegal no âmbito das atividades de saúde suplementar. O pagamento direto ao prestador deverá ser feito apenas quando ele participa de rede credenciada e, caso não participe, somente poderá receber diretamente do beneficiário.

O reembolso dos valores despendidos pelos usuários dos planos de saúde não ocorre de forma automatizada, mediante simples comprovação de efetivação dos gastos. É preciso que a operadora de saúde conheça o procedimento realizado, verifique se este se encontra coberto pelo contrato ou pelo rol de procedimentos da ANS e, principalmente, se é compatível com diretrizes de utilização para o caso concreto diagnosticado. Essa maneira de proceder decorre da responsabilidade que tem a operadora de saúde pela organização e administração do fundo mutual, cujos recursos pertencem aos beneficiários e, de onde serão retirados os valores necessários para o pagamento de todos os procedimentos de saúde de todos os beneficiários.

A operadora de saúde tem dever legal de zelar pelos valores do fundo mutual, por isso os pedidos de reembolso são analisados e os documentos comprobatórios criteriosamente verificados. Qualquer falha praticada pela operadora de saúde poderá gerar implicações de natureza administrativa, civil e penal, porque o fundo mutual será prejudicado.

Por fim, cabe destacar que a lei 8.137, de 1990, Lei de Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo, estabelece em seu artigo 7º, inciso VII, que:

Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo:

(...)

VII - induzir o consumidor ou usuário a erro, por via de indicação ou afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza, qualidade do bem ou serviço, utilizando-se de qualquer meio, inclusive a veiculação ou divulgação publicitária;

Ao divulgar que é possível auxiliar o consumidor junto à operadora de saúde, desde que ele compartilhe seus dados de acesso para pedido de reembolso no sistema ou aplicativo da operadora, o prestador de serviços está fazendo afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza do serviço, tanto daquele que ele supostamente presta como da possibilidade de que o reembolso possa ser feito como transação financeira, ou seja, sem o devido desembolso. O prestador de serviços está induzindo o consumidor, beneficiário do plano de saúde, a erro, com afirmações falsas e enganosas sobre a natureza do serviço.

Entendimento do Superior Tribunal de Justiça 

Em 22 de novembro de 2022, no julgamento do RESp n.º 1.959.929/SP, que teve como relator o Ministro Marco Aurélio Bellizze, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, entendeu que:

O direito ao reembolso depende por pressuposto lógico que o beneficiário tenha efetivamente desembolsado previamente os valores coma assistência à saúde sendo imprescindível ainda o preenchimento dos demais requisitos previstos na lei de planos de saúde

Antes disso, mera expectativa de direito.

Se o usuário não despendeu nenhum valor a título de despesas médicas mostra-se incabível a transferência do direito ao reembolso visto que na realidade esse direito sequer existia, o negócio jurídico firmado entre as clínicas e laboratório e os beneficiários, cessão de direito ao reembolso sem prévio desembolso, operou-se sem objeto, o que o torna nulo de pleno direito.

Sem lei específica ou regulamento expressa da ANS não há como permitir que clínicas ou laboratórios não credenciados à OPS criem uma nova forma de reembolso: reembolso assistido ou auxiliado em completo desvirtuamento da própria logica preconizada pela Lei nº 9.656 dando margem inclusive a situações de falta de controle da verificação da adequação e dos valores das consultas, procedimentos, exames solicitados, o que poderia prejudicar todo o sistema atuarial do seguro e em último caso aos próprios beneficiários. (grifo do autor)

Como afirma a decisão do STJ o reembolso sem desembolso é uma prática não prevista na Lei n.º 9.656, de 1998, e exatamente por isso, é ilegal e sujeita às consequências sancionatórias, tanto em esfera civil como criminal. 

Conclusão

Não há fundamento fático ou jurídico que possa ser utilizado para sustentar a licitude e a contratualidade do reembolso sem desembolso. Se o beneficiário tem dificuldade em desembolsar antecipadamente pode utilizar a rede referenciada oferecida pela operadora de saúde e que, certamente, possui bons profissionais e prestadores de serviços.

O que não tem lógica como menciona expressamente o Superior Tribunal de Justiça - STJ e, tão pouco legalidade, é que o beneficiário possa utilizar o contrato com a operadora de saúde suplementar como instrumento de operações financeiras, em evidente utilização indevida do instituto do reembolso, a favorecer, inclusive, práticas ilícitas na circulação de valores e eventuais fraudes que trarão imensos prejuízos para os demais beneficiários, participantes do fundo mutual.

A sociedade brasileira tem maturidade e inteligência para detectar a diferença entre a necessidade e o oportunismo. Quem necessita e não tem recursos para pagar e aguardar pelo reembolso, tem à disposição a rede credenciada com centenas e até milhares de profissionais e prestadores de serviços. Quem tem possibilidade de escolher livremente um profissional ou prestador deve efetivar o pagamento e aguardar o reembolso, medidas acautelatórias na prevenção do uso indevido, da fraude, das práticas criminosas e, principalmente, que garantem a integridade dos fundos mutuais que pertencem aos beneficiários e são por eles utilizados.

Vera Valente

Vera Valente

Advogada e engenheira. Diretora Executiva da FenaSaúde desde 2019. Ingressou no mercado de Saúde no fim da década de 1990, quando foi convidada a assumir um cargo no Ministério da Saúde, onde esteve à frente do projeto de lançamento do cartão SUS. Em seguida, no início dos anos 2000, liderou a implementação da política de medicamentos genéricos no Brasil, na posição de Gerente Geral de Medicamentos Genéricos da ANVISA.

Angelica Carlini

Angelica Carlini

Doutora em Direito Político e Econômico. Mestre em Direito Civil. Pós-doutorado em Direito Constitucional. Pós-graduanda em Direito Digital pelo ITS-UERJ. Advogada. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT. Professora doutora e coordenadora do curso 'MBA Gestão Jurídica de Seguros e Resseguros'.

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