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A possibilidade de pagar juros sobre capital próprio de exercícios anteriores

A única exigência decorrente da lei é a existência de lucros no exercício ou lucros acumulados e reserva de lucros, no montante definido pela legislação regente. Atendido essa exigência, as deduções de períodos pretéritos poderão ocorrer.

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Atualizado às 09:38

A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça ("STJ") decidiu por maioria, no Resp. 1.946.363-SP, que é possível realizar a dedução da base do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica ("IRPJ") e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido ("CSLL") quanto a juros sobre capital ("JCP") de períodos anteriores, haja vista que "a legislação não impõe limitação temporal para a dedução de juros sobre capital próprio de exercícios anteriores".

O caso se é em um mandado de segurança impetrado pelo contribuinte, uma companhia fechada, contra ato do DEINF/SP, diante da glosa decorrente de deduções a título de Juros Sobre o Capital Próprio de anos fiscais anteriores, 2001 até 2005.

Tanto em 1ª quanto na 2ª instância a decisão foi favorável ao contribuinte. De acordo com a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região ("TRF3"), sob relatoria do Des. Fed. Nelton dos Santos, a jurisprudência do TRF3 e do STJ é firme quanto a possibilidade de dedução dos juros sobre o capital próprio da base de cálculo do IRPJ e da CSLL de outros exercícios, além disso, o direito à dedução dos referidos tributos surge apenas quando ocorre o efetivo pagamento aos sócios e não quando há o ganho para a empresa

A Fazenda interpôs um Recurso Especial (Resp.) que ficou sob a relatoria do Min. Francisco Falcão, na qual foi seguido por maioria, restando vencido o voto divergente do Min. Herman Benjamin.

Antes de adentrar as questões debatidas no acórdão, vale contextualizar, brevemente o que é o JCP e qual a sua utilidade.

Conceito e origem do JCP

A crise do petróleo na década de 70 acentuou a crise inflacionária no Brasil a partir da segunda metade daquela década,1 e como forma de preservar os investimentos dos acionistas, a então nova lei das sociedades anônimas ("LSA") havia criado uma forma de restaurar o valor contribuído por cada acionista através da correção monetária. Essa correção se estendia também às demonstrações financeiras que, na redação do revogado art. 185 da LSA, previa que nas demonstrações financeiras deveriam ser consideradas os efeitos da modificação e no poder de compra da moeda nacional sobre o valor dos elementos do patrimônio e os resultados do exercício.2

Com o advento da lei 9.249/95, a correção monetária das demonstrações financeiras foi extinta e como extinção poderia causar a longo prazo uma diferença entre o patrimônio líquido e os lucros apurados, essa lei estabeleceu o Juros Sobre Capital Próprio.

O JCP tinha dois frontes: O primeiro era uma a compensação aos acionistas pela extinção da possibilidade de correção monetária do patrimônio líquido,3 e o segundo é que a companhia que pagasse o JCP teria a possibilidade de deduzir o seu montante como despesa e serem compensados para efeitos de dividendo obrigatório.4

Com isso, além dos dividendos e bonificações, existiria a possibilidade de os acionistas participarem dos resultados que companhia alcançou naquele resultado através do recebimento do JCP.5

A lógica do JCP nasce da indisponibilidade que o sócio tem quanto ao dinheiro aportado na sociedade,6 ou seja, o direito a essa remuneração é oriundo dos juros que incide em cima do quanto o sócio aportou no capital social. Isso porque a ideia de juros é justamente "uma renda devida pelo uso de capital de outrem, em função de temporária privação do recurso pelo seu titular".7 Essa remuneração é caracterizada como fruto civil, na medida que são acessórios daquele capital aportado pelo sócio na integralização do capital social.8

A natureza do JCP passou a ser um ponto de muitas discussões9 e parte da doutrina passou a entender que o JCP não tem natureza de lucro ou dividendo e sim de receita financeira.10  A verdade é que o JCP apresenta duas naturezas, uma fiscal e outra comercial, da lei societária. Para efeitos da LSA é considerada como distribuição de lucros e para fins tributários "são juros, dedutíveis na determinação da base de cálculo do imposto da pessoa jurídica".11

Nesse sentido, o art. 9°, § 7º da lei 9.249/95 dispõe que o valor dos juros pagos ou creditados pela pessoa jurídica, a título de remuneração do capital próprio, poderá ser imputado ao valor dos dividendos de que trata o art. 202 da LSA. A mesma ideia é ratificada pelo art. 2° da Resolução 143 da CVM que determina que "os juros pagos ou creditados, a título de remuneração do capital próprio, somente poderão ser imputados ao dividendo obrigatório".12

Apesar disso, o JCP deve seguir o mesmo rito para pagamento de dividendos intermediários13 (art. 204 da LSA). Isso implica passar pela aprovação da assembleia ou da administração (Diretoria ou Conselho de Administração, conforme o estatuto). Com isso, os mesmos direitos aplicáveis aos preferencialista quanto aos dividendos obrigatórios também se estendem para o pagamento do JCP.

Um dos atrativos do JCP é a justamente a possibilidade de a Companhia deduzir, para efeitos da apuração do lucro real, os juros pagos ou creditados a cada a acionista, tendo como condição mínima para pagamento existência de lucros, computados antes da dedução dos juros, ou de lucros acumulados e reservas de lucros, conforme se observa no caput do art. 9° e o seu § 1°.

A taxa máxima a ser aplicada será, pro rata dia, da Taxa de Juros de Longo Prazo ("TJLP"). O TJLP é calculado e divulgada pelo Conselho Monetário Nacional14 e o racional do seu cálculo é definido na Resolução 4.645 do Banco Central.

Principais pontos do acórdão

A Fazenda Nacional defendeu no Recurso Especial a tese de que a sociedade tem pleno poder de decisão sobre quando ocorrerá o pagamento de valores a título de JCP. Conquanto a respectiva dedução do IRPJ e da CSLL esteja em conformidade com a lei tributária vigente, ou seja, que as deduções sejam realizadas no mesmo ano fiscal em que percebido o lucro pela sociedade.15 A base jurídica dessa tese seria a inteligência da legislação vigente, qual seja o §1º do Art. 9º da lei 9.249/95 (dedução do JCP para pessoas jurídica sujeitas ao lucro real); Art. 109 do CTN16 (princípios gerais de direito privado e efeitos tributários); Instrução Normativa 1.515/14 (apuração do IRPJ e da CSLL após 1996); LSA (prescrições acerca da obrigação acessória de escriturar); e Art. 6º do decreto-lei 1.598/77 (conceituação de lucro real).

Além disso, há limitação de valores, no caso de lucros acumulados e reservas de lucros, ao somatório de 50%; e após dedução da CSLL, mas antes da apuração do IRPJ, 50% do lucro líquido do período de apuração.

Noutras palavras, a lei material de direito privado, não poderá verter-se a nível de prescrever os efeitos tributários de determinado fato jurídico,17 o que ocorreria, sob ótica da fazenda pública, se as deduções de exercícios anteriores fossem concretizadas em anos fiscais futuros.

Aliás, a Coordenação Geral de Tributação ("COSIT"), desde 2014, na Solução de Consulta 329,18  interpretando as normas correspondentes às deduções de JCP de exercícios anteriores, que no âmbito de apuração do lucro real, as deduções supracitadas quando não reconhecidas como despesa no ano de sua ocorrência, não atendem às diretrizes do regime de competência.

Argumento oposto, sustenta o contribuinte que a lei 9.249/95 não impõe qualquer comando no sentido de impedir a dedução de valores a título de JCP relativos a períodos anteriores ao exercício financeiro vigente, portanto, não merecendo prosperar a tese do fisco.

Em análise do mérito, o Min. Herman Benjamin autor do voto-vista que restou vencido, destacou duas justificativas para reexame do entendimento da corte, quais sejam: o precedente invocado, ainda que tenha enfrentado o tema para autorização ou não da dedução dos valores a título de JCP, não examinou há época, as alegações de violações ao Art. 177 da LSA,19 bem como arts. 6º e 7° decreto-lei 1.598/77;20-21 e o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais ("CARF"), mudou posicionamento, decidindo de maneira favorável aos contribuintes usando como paradigma o quanto foi decidido nos autos do Resp. 1.086.752/PR.

Como fundamento inicial, defendeu que a literalidade do comando previsto no Art. 9º da lei 9.249/95, não tem força suficiente para determinar que a dedução esteja ou não vinculada ao regime de competência. Inclusive, aduz que o direito posto (lei escrita) para que produza o efeito pretendido, em certas ocasiões, demanda da hermenêutica restritiva, ampliativa, histórica, sistemática, teleológica e outras.

Com efeito, sustenta que as normas infralegais não são instrumentos para replicar o conteúdo da lei, mas aptas a viabilizar o comando normativo de origem, contudo, sendo inadmitidos acréscimos (inovação) por força do princípio da reserva legal.22

Prosseguiu interpretando que o Art. 177 da LSA, aliado com os artigos 6º e 7º do decreto-lei 1.598/76, impõe que as escriturações estão sujeitas a legislação comercial, lei tributária e princípios contábeis, dentro do regime de competência. Ao passo que o lucro real consiste na apuração do exercício.

Portanto, as limitações impostas aos contribuintes pelo fisco, estão em harmonia com a ordem jurídica vigente, interpretando que a omissão não afasta as prescrições de adoção do regime de competência. Há a segregação entre a opção de pagamento/creditamento com o regime de dedução dos valores percebidos a título de JCP.

A maior da turma do STJ, acompanhando o relator, entendeu que, conforme decidiu o juízo de origem, a corte fixou precedentes no sentido de autorizar a dedução de JCP de exercícios anteriores. Isto pois, na inteligência do Art. 9º e §1º da lei 9.249/95, não se extrai qualquer limitação temporal para a dedução de JCP atinentes a exercícios anteriores, não existindo qualquer violação ao regime contábil.

Ademais, o pagamento/creditamento de JCP tem como origem a deliberação da sociedade, que por seu turno quando ocorre, dá origem a respectiva obrigação. Como consequência, é realizado o conhecimento contábil. Ou seja, somente após definição da sociedade sobre o pagamento de valores a título de JCP, surge o pagamento/creditamento, oportunidade em que, cumulativamente, será percebido o fato contábil (ocasionando a escrituração).

Em suma, a única exigência decorrente da lei é a existência de lucros no exercício ou lucros acumulados e reserva de lucros, no montante definido pela legislação regente. Atendido essa exigência, as deduções de períodos pretéritos poderão ocorrer.

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1 https://diariodocomercio.com.br/especial/economia-do-brasil-vive-ceu-e-inferno-nos-anos-70/ último acesso em 27.12.22

2 Lamy Filho, Alfredo e Bulhões Pedreira, José Luiz. A lei das S.A.: (pressupostos, elaboração, aplicação) Vol. II. Pareceres. - 2. ed. - Rio de Janeiro: Renovar, 1996. pp. 88-90

3 Brasil, Bruno Menezes. Juros sobre o capital próprio: aspectos societários e tributários. 2010. 205 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010. p. 147

4 Borba, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. - 18. ed. - São Paulo: Atlas, 2021. pp. 475-476

5Tomazette, Marlon. Curso de direito empresarial: Teoria geral e direito societário - v. 1. - 12. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2021. p. 257

6 Tomazette, Marlon. Curso de direito empresarial: Teoria geral e direito societário - v. 1. - 12. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2021. p. 257

7 Nanni, Giovanni Ettore. Comentários ao Código Civil: direito privado contemporâneo. - 2. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2021. p. 388

8 Apesar dessa caracterização, Rubens Requião critica a ideia de que a participação societária seja considerada um empréstimo. Requião defende que quando ocorre a transferência de algum bem para a formação do capital social, "procede a transferência da respectiva propriedade" desses bens para a Sociedade. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 231.

9 Brasil, Bruno Menezes. Juros sobre o capital próprio: aspectos societários e tributários. 2010. 205 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010. p. 149

10 Tomazette, Marlon. Curso de direito empresarial: Teoria geral e direito societário - v. 1. - 12. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2021. p. 257

11 Lamy Filho, Alfredo e Bulhões Pedreira, José Luiz. Direito das companhias. - 2. ed., atual. e ref. - Rio de Janeiro: Forense, 2017. pp. 1.247-1.248

12 Gostaríamos de chamar a atenção para as palavras "poderá" e "somente poderão" na lei 9.249/95 e na Resolução 143 da CVM, respectivamente. O Comando da lei 9.249/95 indica uma faculdade, haja vista que "poderá" é uma flexão do verbo poder, que significa "ter permissão", quanto que na Resolução 143 a parte "somente poderão" indica uma obrigatoriedade. Isso significa que à Companhia fechada tem a faculdade de escolher distribuir JCP imputando-o como dividendo obrigatório, ou não. Porém, a Companhia aberta deve sempre imputar o JCP como dividendo obrigatório.

13 Borba, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. - 18. ed. - São Paulo: Atlas, 2021. p. 476

14 https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/financiamento/guia/custos-financeiros/taxa-juros-longo-prazo-tjlp#:~:text=abr%2F2022%20a%20jun%2F2022,%2F2021%204%2C88%25%20a.a. último acesso em 27.12.22

15 Trata-se da aplicação do princípio contábil do Regime de Competência, onde, a Demonstração do Resultado do Período ("DRE"), irá indicar todos os fatos contábeis ocorridos no lapso qualificado como período, seja de natureza mensal, trimestral, semestral ou anual.

16 Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.

17 Acerca do tema, revela-se o caráter de comunicação do direito tributário com outras disciplinas, uma vez que a materialidade da relação jurídico tributária, está atrelada a princípios de direito privado e conceitos desta disciplina. A título de exemplo, a lei tributária não qualifica o conceito de propriedade, sendo reservado ao Art. 1.228 do Código Civil.

18 Soluções de Consulta representa um procedimento administrativo, por meio do e-CAC, cujo propósito é esclarecer a interpretação de legislação tributária e aduaneira, bem como classificação de operações que produzam variações no patrimônio do contribuinte, que por consequência, tem reflexo fiscal. Atualmente, a formulação de soluções de consulta e demais procedimentos, estão prescritos na IN RFB nº 2058/2021.

19 Art. 177. A escrituração da companhia será mantida em registros permanentes, com obediência aos preceitos da legislação comercial e desta lei e aos princípios de contabilidade geralmente aceitos, devendo observar métodos ou critérios contábeis uniformes no tempo e registrar as mutações patrimoniais segundo o regime de competência.

20 Art. 6º - Lucro real é o lucro líquido do exercício ajustado pelas adições, exclusões ou compensações prescritas ou autorizadas pela legislação tributária.

21 Art. 7º - O lucro real será determinado com base na escrituração que o contribuinte deve manter, com observância das leis comerciais e fiscais.

22 A interpretação do Min. Herman Benjamin, no âmbito da esfera tributária, encontra suporte na inteligência do Art. 87, Parágrafo Único e inciso II da Constituição Federal, onde resta evidente o papel das instruções normativas. Consistem em mecanismos que orientam a atuação do fisco, no que compreende interpretação e aplicação de lei em matéria tributária.

Israel Couto

Israel Couto

Bacharel em Direito pela FMU, Membro do CJA-CBMA (Comissão de Jovens Arbitralistas), Student Member do CIARB Brazil (Chartered Institute of Arbitrators), fundador do Grupo de Estudos em Resolução de Conflitos da FMU (GERC-FMU) e Analista Júnior de Regulatório e Compliance de Mercado de Capitais.

Arnaldo K. Costa

Arnaldo K. Costa

Bacharel em Direito pela FMU.

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