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Panorama da aplicação do princípio da insignificância nos crimes tributários pelo TJ/SP

Apesar de entendimento pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça sobre a aplicação do princípio da insignificância em crimes de sonegação de tributos estaduais, 3/8 das Câmaras de Direito Criminal do TJSP não adota essa posição.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Atualizado às 08:33

O princípio da insignificância ou da bagatela, cada dia mais presente e aceito a respeito do mínimo conteúdo material do bem juridicamente tutelado como critério de justiça na aplicação do Direito Penal, continua a gerar resistência em uma parcela significativa do Poder Judiciário, notadamente o paulista, em que pesem as reiteradas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça reconhecendo a sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro.

Partindo-se da premissa de que o Direito Penal é a ultima ratio, voltado para a tutela de bens jurídicos imprescindíveis para a vida em sociedade, com base nos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade, construiu-se o conceito de que condutas que não sejam capazes de lesar significativamente o bem jurídico tutelado, ainda que formalmente, não caracterizam um fato típico, devendo o Estado se utilizar de outros ramos do Direito para a repressão e prevenção do ato.

O Supremo Tribunal Federal passou a considerar como penalmente insignificantes as sonegações fiscais cujo valor do tributo federal sonegado seja menor do que aquele previsto em lei como suficiente para a propositura de ação de execução fiscal.

Isso porque a lei Federal 10.522/02, em seu artigo 20, previa que seriam arquivadas as execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Diante dessa previsão legal, o Supremo Tribunal Federal entendeu que uma conduta administrativamente irrelevante não pode ter relevância criminal, com base nos princípios da subsidiariedade, da fragmentariedade, da necessidade e da intervenção mínima que regem o Direito Penal1.

Posteriormente, a redação do artigo 20 da lei 10.522/02 foi alterada, dispondo que esse valor mínimo será fixado em ato do Procurador-Geral da Fazenda Nacional. Atualmente esse valor é de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), conforme Portaria 130/12 do Ministério da Fazenda.

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, entende que esse parâmetro se aplica apenas a casos envolvendo tributos federais. Para casos envolvendo tributos estaduais, a Terceira Seção, que reúne as duas Turmas com atribuição funcional para julgar matéria penal (a 5ª e a 6ª), ao julgar a ordem de Habeas Corpus 535.063/SP, pacificou, perante aquele Tribunal, que tem a missão constitucional de uniformizar a interpretação da legislação federal, o entendimento de que havendo lei Estadual com disposição semelhante à lei Federal 10.522/02, é possível o reconhecimento da insignificância penal com base na lei local2.

No Estado de São Paulo, vige a lei Estadual 14.272/10, que autorizava a não propositura de execuções penais cujos valores não ultrapassassem 600 (seiscentas) Unidades Fiscais do Estado de São Paulo - UFESPs. Posteriormente, o parâmetro foi aumentado para 1.200 UFESPs pela lei Estadual 16.498/17.

Portanto, pela posição atual do Superior Tribunal de Justiça, aplica-se o princípio da insignificância em crimes de sonegação fiscal de tributos estaduais de São Paulo de valor inferior a 1.200 UFESPs. Em 2023, isso equivale a R$ 41.112,00 (quarenta e um mil, cento e doze reais).

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, composto por 16 (dezesseis) Câmaras especializadas em Direito Penal, ao ser demandado a se manifestar sobre o tema, não possui uma posição homogênea.

Em pesquisa simples de jurisprudência, realizada no sítio eletrônico do Tribunal de Justiça de São Paulo, foi possível identificar julgados recentes sobre o tema e concluir que, atualmente, aplicam o princípio da insignificância em crimes tributários com base na lei Estadual 14.272/10: a 1ª, 2ª, 6ª, 7ª, 10ª, 11ª, 12ª, 13ª, 14ª e 16ª Câmaras de Direito Criminal3.

Por outro lado, rechaçam o princípio da insignificância em crimes tributários: a 3ª, 4ª, 5ª, 8ª, 9ª e a 15ª Câmaras de Direito Criminal4.

Assim, das 16 (dezesseis) Câmaras com competência para julgar matéria penal, 10 (dez) seguem o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, enquanto 6 (seis) negam esse entendimento, ou seja, 3/8 do Tribunal de Justiça de São Paulo rejeita posição consolidada dos Tribunais Superiores sobre crimes tributários e o princípio da insignificância.

A situação faz lembrar a brilhante passagem de Piero Calamandrei, em seu clássico livro Eles, os juízes, vistos por um advogado:

"O recorrente, que numa das salas perdeu a causa, teria ganho (com os mesmos argumentos) se tivesse sido julgado na sala ao lado. Quando saiu ao corredor, onde as portas das salas se abrem uma ao lado da outra, estava estupefato com essa diferença, inexplicável para um profano; e, naturalmente, descontava em seu advogado:

- Está claro que o senhor errou na defesa...

- Não - replicou o advogado -, errei foi de porta."5

Apesar do Superior Tribunal de Justiça, constitucionalmente incumbido de uniformizar a jurisprudência nacional, ter cristalizado seu entendimento pela aplicação do princípio da insignificância em crimes tributários estaduais, o que se nota é uma resistência em parte considerável das Câmaras Criminais do maior Tribunal de Justiça do país em seguir essa posição.

Esse fato encoraja promotores de justiça a oferecer denúncias por fatos insignificantes e juízes de primeiro grau a receberem essas denúncias, aumentando o número de recursos ao próprio Tribunal de Justiça de São Paulo e aos Tribunais Superiores, todos já muito sobrecarregados.

No Estado Democrático de Direito, a independência do juiz para emanar suas decisões é fundamental, mas não absoluta. Deve ser meta de todo o Poder Judiciário a busca pela pacificação da jurisprudência, garantindo segurança jurídica e previsibilidade das decisões judiciais aos cidadãos, de maneira que é dever da Advocacia continuar levando essa discussão à apreciação do Poder Judiciário, pois somente a insistência jurídica e racionalmente fundamentada tem o poder de fazer avançar a jurisprudência.

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1 STF, HC nº 92.438-7/PR, Segunda Turma, Relator Min. Joaquim Barbosa, julgado em 19/08/2008.

2 STJ, HC n. 535.063/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, julgado em 10/6/2020.

3 Alguns julgados exemplificativos: Recurso em Sentido Estrito 0009251-59.2021.8.26.0405, 1ª Câmara de Direito Criminal, Relator Des. Andrade Sampaio, julgado em 31/01/2022; Apelação Criminal 0056060-57.2011.8.26.0050, 2ª Câmara de Direito Criminal, Relator Des. André Carvalho e Silva de Almeida, julgado em 30/05/2022; Habeas Corpus Criminal 2190813-52.2020.8.26.0000, 6ª Câmara de Direito Criminal, Relator Des. Mens de Mello, julgado em 23/09/2020; Embargos de Declaração Criminal 0001371-04.2015.8.26.0283, 7ª Câmara de Direito Criminal, Relator Des. Reinaldo Cintra, julgado em 29/07/2020; Habeas Corpus Criminal 2075995-87.2020.8.26.0000, 10ª Câmara de Direito Criminal, Relator Des. Nuevo Campos, julgado em 30/06/2020; Apelação Criminal 0000938-31.2017.8.26.0347, 11ª Câmara de Direito Criminal, Relatora Des. Maria Tereza do Amaral, julgado em 10/05/2021; Apelação Criminal 0049732-14.2011.8.26.0050, 12ª Câmara de Direito Criminal, Relator Des. João Morenghi, julgado em 19/10/2021; Apelação Criminal 0002109-42.2014.8.26.0213, 13ª Câmara de Direito Criminal, Relator Des. De Paula Santos, julgado em 31/01/2019; Apelação Criminal 0002381-11.2012.8.26.0050, 16ª Câmara de Direito Criminal, Relator Des. Newton Neves, julgado em 13/07/2021.

4 Alguns julgados exemplificativos: Apelação Criminal 0096476-28.2015.8.26.0050, 3ª Câmara de Direito Criminal, Relator Des. Toloza Neto, julgado em 21/06/2022; Recurso em Sentido Estrito 0100250-32.2016.8.26.0050, 4ª Câmara de Direito Criminal, Relator Des. Luis Soares de Mello, julgado em 15/06/2022; Recurso em Sentido Estrito 0096519-62.2015.8.26.0050, 5ª Câmara de Direito Criminal, Relator Des. Tristão Ribeiro, julgado em 03/06/2022; Apelação Criminal 0044689-62.2012.8.26.0050, 8ª Câmara de Direito Criminal, Relator Des. Juscelino Batista, julgado em 06/04/2022; Apelação Criminal 0043205-41.2014.8.26.0050, 9ª Câmara de Direito Criminal, Relator Des. Cesar Augusto Andrade de Castro, julgado em 30/07/2021; Apelação Criminal 0004298-43.2011.8.26.0586, 15ª Câmara de Direito Criminal, Relator Des. Gilberto Ferreira da Cruz, julgado em 16/02/2022

5 CALAMANDREI, Piero. Eles os juízes vistos por um advogado. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 159.

Leandro Sarcedo

Leandro Sarcedo

Advogado. Sócio da Massud, Sarcedo e Andrade Sociedade de Advogados. Doutor e mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde é graduado.

Leonardo Massud

Leonardo Massud

Advogado criminal. Professor de Direito Penal da PUC/SP. É bacharel e Mestre pela mesma Instituição. Pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra. Sócio da Massud, Sarcedo e Andrade Sociedade de Advogados.

Renato Losinskas Hachul

Renato Losinskas Hachul

Advogado. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra e Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP. Sócio do Massud, Sarcedo e Andrade Sociedade de Advogados

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