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O fim do estigma da falência?

Com as reformas promovidas pela lei 14.112/20, a falência deixa de ter caráter punitivo para se transformar em instrumento de realocação eficiente dos recursos e o retorno do empreendedor às atividades empresariais.

sexta-feira, 24 de março de 2023

Atualizado às 07:30

Falência. No dicionário, carência, falta, falecimento. Negativa em sua definição, a palavra ainda guarda, em alguns contextos, um estigma social. A falência financeira, por exemplo, foi associada, historicamente, à falha, ao insucesso e até, mesmo, a preconceitos relacionados às dívidas. Não à toa, campanhas publicitárias de empresas de crédito, por exemplo, têm tentado retirar o caráter pejorativo do termo "endividado" ao chamar de "negativado" pessoas físicas que contraem dívidas.

No universo do Direito de Insolvência, a Justiça também vem se empenhando para desvincular a imagem negativa de empresários que estejam passando por processos de recuperação judicial. A lei 11.101/05 teve o objetivo de disciplinar a recuperação judicial e extrajudicial, assim como a falência do empresário. A proposta era substituir os arcaicos processos de falência e concordatas por procedimentos mais objetivos. No que se refere à recuperação judicial e extrajudicial a lei de 2005 realmente representou um avanço, no entanto, no tocante a falência, talvez.

Por conta da insuficiência de regras mais contundentes e da cultura nacional, que tendia a desvalorizar a figura do empresário que tivesse a falência de sua empresa decretada, o estigma sobre a figura do falido permaneceu. Um estigma cultural, já que não é segredo para ninguém que a atividade empresarial seja desenvolvida em um ambiente repleto de riscos e que nem sempre o insucesso esteja relacionado à fraude ou dolo do sócio contra as demais partes do mercado.

Além disso, muitos processos de recuperação judicial foram ajuizados sem que a empresa pudesse ser considerada viável economicamente para o desenvolvimento da atividade empresarial. Esse fato culminou na criação de um conglomerado de "empresas zumbis", que tiveram recuperações judiciais convoladas em falência. Foram casos pontuais, mas que acabam por reforçar a imagem negativa do sócio falido.

Com a lei 14.112/20, as reformas promovidas na Lei de Recuperações e Falências começaram a vigorar, consolidando entendimentos jurisprudenciais que estavam sendo aplicados aos processos de insolvência e promovendo, ainda, a inserção de novas ferramentas. O objetivo foi oferecer mais celeridade, segurança jurídica e efetividade aos referidos processos. As alterações promoveram mudanças significativas no procedimento de falência, as quais impactam diretamente a conclusão do processo.

Dentre as diversas alterações relativas à falência, uma das mais importantes foi a equiparação do art. 75 no processo falimentar à mesma categoria do art. 47 na recuperação judicial, o que favorece a realocação eficiente dos recursos da massa falida e o retorno do empreendedor às atividades empresariais. O novo enunciado do art. 75 reflete a modernidade em relação ao processo falimentar, deixando para trás o antigo preceito de que a falência tem caráter punitivo, para excluir do mercado atividades inviáveis e o mau empresário.

O resultado é que a nova legislação atua como instrumento de preservação dos recursos produtivos, como satisfação do direito dos credores, como liquidação célere de empresas inviáveis para proteção do mercado e, também, para o reingresso do sócio falido à atividade econômica com o objetivo de fomentar o empreendedorismo. A falência passa, ainda, a ser entendida como um modo de tornar mais eficiente o exercício da atividade econômica, permitindo que outras empresas usufruam dos bens que foram alienados no processo falimentar, contribuindo para a preservação da função social do negócio.

Outro ponto importante é que a legislação de 2020 disciplinou o chamado Fresh Start. Importado da legislação americana, esse recurso estimula o empresário falido a retornar rapidamente ao mercado empresarial, conservando aqui a ideia de que o indivíduo é um agente econômico e desempenha um papel essencial na produtividade do mercado. No modelo, o devedor se torna isento de suas obrigações desde que não tenha ocorrido nenhuma situação adversa à norma, como algum tipo de ato com intuito de fraudar os credores.

Após dois anos de vigência da nova Lei podemos dizer que iniciamos, efetivamente, a colheita dos frutos positivos dessa mudança. Todas elas contribuem para o rápido recomeço do empresário, permitindo uma nova visão sobre aqueles que não tiveram êxito na empreitada empresarial e tiveram a falência de suas empresas decretadas. São medidas que procuram desassociar, assim, do empresário a imagem do responsável exclusivo pelo insucesso da atividade empresarial que, muitas vezes, se dá em razão de circunstâncias alheias ao seu controle.

Cybelle Guedes Campos

Cybelle Guedes Campos

Sócia do Moraes Jr Advogados.

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