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A validade da manifestação de vontade do incapaz e a pessoa com deficiência

A incapacidade civil deve ser suprida pela representação e assistência na manifestação de vontade do incapaz, seja ele deficiente ou não.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Atualizado às 08:38

1. Introdução

Para que um negócio jurídico ou contrato seja válido, a lei prevê que alguns requisitos devem ser preenchidos.

Os requisitos de validade são: manifestação de vontade isenta de vícios, agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei (art. 104 CC).

Deste modo, é possível observar que a manifestação de vontade está vinculada à capacidade do contratante, para que o negócio tenha validade.

Daí importante entender estes dois institutos jurídicos para saber em que circunstâncias o negócio jurídico ficará comprometido, caso a manifestação de vontade do agente não esteja aliada à capacidade civil dele.

2. Manifestação de vontade

A manifestação de vontade, é um dos requisitos de existência do negócio jurídico. Isto quer dizer, que se não houver manifestação de vontade (v.g. a pessoa estiver hipnotizada) o negócio nem existe, não se arguindo da sua validade e eficácia.

Então, é de extrema importância entender como a vontade pode ser manifestada pelo agente.

No nosso sistema jurídico a vontade pode ser manifestada por três formas: expressa, tácita ou presumida.

Na manifestação de vontade expressa, a intenção do agente é inequívoca, ou seja, não há dúvida, já que por ser de modo explícito, possibilita o conhecimento imediato da sua intenção.

Por sua vez, na manifestação de vontade tácita, a declaração da vontade se revela pelo comportamento do agente, que demonstra, implicitamente, sua anuência. Pode-se deduzir da conduta da pessoa a sua intenção. 

E, por fim, a manifestação de vontade pode ser presumida, sendo aquela declaração não realizada expressamente, mas que a lei deduz de certos comportamentos do agente (ex. prazo para manifestação sobre a aceitação da herança, e o interessado se omite).

A diferença entre a manifestação de vontade tácita e a presumida está na lei, eis que a presumida é estabelecida pela lei, enquanto a tácita é deduzida do comportamento do agente pelo destinatário.

Nos contratos, a manifestação da vontade só poderá ser tácita se a lei não exigir que seja expressa (art. 107 CC).

3. Incapacidade civil

No nosso sistema jurídico a capacidade civil é a regra e a incapacidade a exceção.

A pessoa natural ao nascer com vida, adquire a personalidade civil (art. 2º do CC) e consequentemente adquire a capacidade civil, nos exatos termos do art. 1º do Código Civil. Assim, a capacidade civil é a medida da personalidade, podendo ser plena ou limitada.

A capacidade civil prevista no art. 1º do Código Civil é a chamada capacidade de direito ou de gozo, que confere a todas as pessoas a aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações, sendo chamada de capacidade limitada.

Por sua vez, a capacidade de fato ou de exercício prevista no art. 5º, caput e parágrafo único do Código Civil é a chamada capacidade plena, possibilitando ao agente, a prática, por si só dos atos da vida civil.

Portanto, as pessoas que só possuem capacidade de direito ou de gozo são chamadas de incapazes, já que sofrem restrição legal no exercício dos seus direitos, não podendo exercer pessoalmente, e, por si só os atos da vida civil.

Nosso Código Civil brasileiro enumera dois tipos de incapacidade: a incapacidade absoluta (art. 3º CC) e a incapacidade relativa (art. 4º CC).

Na incapacidade absoluta o agente é tolhido totalmente de praticar atos na vida civil e esta incapacidade é suprida pela representação (art. 166, I CC). Já na incapacidade relativa o agente pode praticar atos da vida civil, desde que seja assistido, pois esta incapacidade é suprida pela assistência (art. 171, I CC).

Deste modo, de acordo com o art. 104, I do Código Civil, para que o negócio seja válido deverá ser praticado por agente capaz.

4. A validade da manifestação de vontade feita pelo incapaz. A situação da pessoa com deficiência

Conforme visto anteriormente, a manifestação de vontade é imprescindível para que o negócio jurídico ou o contrato existam. E, além disso, o agente que manifesta sua vontade deve ser capaz.

Porém, caso o incapaz queira manifestar sua vontade na concretização de um contrato, algumas questões devem ser entendidas.

Primeiramente, no que tange ao absolutamente incapaz, ele jamais poderá manifestar sua vontade pessoalmente, exatamente porque ele está tolhido pela lei da prática deste ato.

A incapacidade do absolutamente incapaz é suprida pela representação. Isto quer dizer que que ele não poderá manifestar sua vontade pessoalmente, já que para que o contrato ou negócio tenham validade, quem manifestará a vontade em nome do incapaz será o seu representante.

Se por alguma razão o absolutamente incapaz manifestar sua vontade pessoalmente na concretização de um negócio jurídico ou contrato, eles serão inválidos nos termos do art. 166, I do CV. Neste caso, o legislador considera este vício tão grave que impõe a sanção de nulidade ao negócio realizado.

Em segundo lugar, ao considerar a manifestação de vontade do relativamente incapaz, importa ressaltar que em alguns casos o legislador permite que eles manifestem sua vontade sem a presença do seu assistente. No entanto, na maioria das vezes que o incapaz relativamente quiser manifestar a sua vontade precisará ser devidamente assistido para que o negócio jurídico ou o contrato produzam efeitos jurídicos, nos termos do art. 171, I do Código Civil. O negócio realizado pessoalmente pelo relativamente incapaz, sem assistência, não é considerado pelo legislador como contendo um vício tão grave, sendo passível de convalidação e a sanção aplicada é a anulabilidade.

Outrossim, nos termos da lei 13.146/15 (Estatuto da pessoa com deficiência), que visa a inclusão social e cidadania da pessoa com deficiência (art. 1º), em regra, o deficiente não é considerado incapaz, tanto é assim que está excluído do rol dos incapazes. Na verdade, o deficiente tem uma qualidade que o difere das demais pessoas, mas que não quer dizer incapacidade.

Além do mais, o art. 6º da referida lei prevê expressamente que "a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa", e, também, o art. 84, caput, assegura o direito ao exercício da capacidade legal ao deficiente em igualdade de condições com as demais pessoas.

Inquestionavelmente, o Estatuto da pessoa com deficiência traz uma presunção de que todos os deficientes, inclusive o deficiente mental e intelectual, são capazes. Então, nos termos da lei, qualquer manifestação de vontade do deficiente, no sentido de realizar um negócio jurídico será válido.

Todavia, conquanto o Estatuto considere a pessoa com deficiência autônoma e com a possibilidade de decidir por si mesma, de tomar decisões, exercendo seus direitos, eventualmente, o deficiente não terá aptidão para pessoalmente e sem auxílio, executar os atos da vida civil.

Isto não quer dizer que o deficiente sofrerá restrições ao exercício de sua capacidade civil, já que apenas em duas situações a capacidade dele poderá ser restrita, a saber: no caso da tomada de decisão apoiada, para aquela pessoa que possui discernimento reduzido, necessitando de auxílio para decidir com segurança e poder realizar negócios jurídicos (art. 1.783-A do Código Civil); e, no caso da curatela, que é medida excepcional, apenas sendo adotada em casos que comprovadamente haja necessidade de interdição do deficiente (art. 84, §§ 1º e 3º da lei 13.146/15), situação em que será nomeado um curador - assistente ou representante, para o interditado.

De qualquer modo, mesmo no caso da curatela, o art. 85, caput do Estatuto, determina que ela afete tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, ou seja, para os demais atos da vida civil o deficiente continua tendo o exercício pleno de sua capacidade.

Entretanto, quando se tratar da curatela, o juiz do caso, após a análise de todas as provas e laudos médicos é que definirá o alcance da interdição, se parcial ou total. 

Então, quando a interdição do deficiente afetar apenas os atos de natureza patrimonial e negocial, ele não poderá praticar ditos atos, sozinho ou pessoalmente. Se a decisão da curatela considerar o deficiente relativamente incapaz, a manifestação de vontade dele, para que seja válida, dependerá da assistência do seu curador. E, caso a decisão da curatela considere o deficiente absolutamente incapaz, o deficiente estará tolhido de toda e qualquer prática de ato da vida civil. Assim, para que o negócio jurídico realizado seja válido, deverá ser praticado, única e exclusivamente pelo seu curador (representante legal).

Segundo ensina Waldir Macieira da Costa Filho, o Estatuto da Pessoa com Deficiência "adota o modelo biopsicossocial de deficiência e deixa claro que os impedimentos físicos, sensoriais, mentais e intelectuais não produzem obstáculos por si só, mas sim que as barreiras que impedem o exercício de direitos são produzidas socialmente, sendo fundamental estratégias políticas, jurídicas e sociais que excluam esses obstáculos e discriminações negativas, permitindo aos deficientes demonstrar suas capacidades e usufruir de autonomia e independência para uma real inclusão social". 

A guisa de conclusão, o fato de uma pessoa ser deficiente não lhe confere a condição de incapaz e as limitações impostas pela lei. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência assegura a igualdade de condições entre o deficiente e as outras pessoas, e, apenas, excepcionalmente ele sofrerá restrições no exercício dos seus direitos.

Por fim, ressalte-se que "a intenção será sempre a de proteger a pessoa com deficiência quando extraordinariamente estiver em dificuldade de realizar algum direito". 

Egle Cecconi

VIP Egle Cecconi

Advogada e Professora mestre em Direito Civil. Sócia-proprietária do escritório ECBRP Advocacia. Membro das Comissões Permanente de Direito do Consumidor e Advocacia da Família e Sucessões da OABSP

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