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O Brasil segue as diretrizes da UNESCO em seu financiamento da educação?

Nos resta aguardar pelos impactos dessa nova reforma educacional oriunda da EC 108/20. Ainda estamos distantes do nível ideal no quesito qualitativo do nosso ensino público, mas não podemos negar os nossos avanços pós Constituição de 1988.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Atualizado às 08:52

O direito à educação apresenta duas faces: trata-se de direito fundamental de primeira e segunda dimensões, simultaneamente, denotando uma realidade individual e social. A educação, logo, abrange: (1) o direito à instrução como um processo de desenvolvimento individual; (2) o direito a uma política educacional; e (3) uma obrigatória coparticipação dos pais e da sociedade no processo educacional1.

A educação enquanto direito de primeira dimensão, ou seja, um direito de abstenção de terceiros no campo de liberdade do indivíduo, pode ser mais bem visualizada nos casos de violação. Em alguns países do oriente médio, por exemplo, mulheres muçulmanas são impedidas de terem acesso à educação em razão de visões religiosas radicais. Segundo algumas crenças culturais, as mulheres teriam uma posição pré-determinada na sociedade e o acesso à educação às pessoas de sexo feminino seria uma concepção meramente ocidental2.

A educação na perspectiva de direito de segunda dimensão exige do Estado o fornecimento de políticas educacionais de qualidade para toda a população. Em um primeiro momento, exige-se a existência de condições de acesso à educação para todos; num segundo momento, impõe-se que a educação fornecida seja de qualidade, permitindo o amplo desenvolvimento do cidadão e seu acesso ao mercado de trabalho. No entanto, para que um direito prestacional seja efetivamente concretizado, há a necessidade de que haja um efetivo esquema de financiamento. A gratuidade e a obrigatoriedade do ensino apresentaram historicamente um encargo financeiro considerável para o Poder Público.

1. O direito à educação no plano internacional e no Brasil

No plano internacional, a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 (DUDH) concebe o direito à instrução na sua conotação clássica individual, adicionando-lhe, ainda, uma finalidade social em seu artigo 26. Essa norma declara a educação como direito de todos, estabelecendo que a instrução será gratuita nos graus elementares e fundamentais, ressaltando que a instrução elementar é obrigatória.

Destaca-se ainda o artigo 13 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966. Segundo a alínea "a" do item 2 do artigo 13, a educação primária deverá ser obrigatória e acessível gratuitamente a todos. A alínea "e" do item 2 do mesmo artigo estabelece que os Estados signatários devem assegurar o "desenvolvimento de uma rede escolar em todos os níveis de ensino", implementando "um sistema adequado de bolsas de estudo" e melhorando continuamente as "condições materiais do corpo docente".

No plano interno, a Constituição brasileira de 1988 incorporou os preceitos básicos do artigo 26 da Declaração Universal de Direitos Humanos nos seguintes dispositivos: a) definir o dever do Estado e família com a educação (artigo 205); b) dever de incentivar a educação com a colaboração da sociedade (artigo 205); c) dever de instrução do indivíduo, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, enquanto cidadã e trabalhadora qualificada (artigo 205); d) comprometimento do Estado com o desenvolvimento nacional e com a construção de uma sociedade justa e solidária (artigo 3º); e) direito subjetivo de acesso ao ensino obrigatório e gratuito (artigo 208, § 1º); e f) deveres de universalização e igualdade de ensino (artigo 206). Denota-se a fundamentalidade material de tais normas constitucionais, permitindo, consequentemente, a sua classificação como cláusulas pétreas

Dentro dessa ideia, a ONU elaborou, em 2015, a agenda 2030 de desenvolvimento sustentável - um documento contendo 17 objetivos para obtenção do desenvolvimento sustentável. O 4º objetivo desta lista é: "Assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos".

2.  A Declaração de Incheon e as diretrizes para o financiamento à educação

No âmbito da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), destaca-se a Declaração de Incheon3 e Marco de Ação para a implementação do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 (ODS 4). Nesse documento, afirma-se a necessidade de um aumento significativo no financiamento para que o ODS 4 seja alcançado.

A UNESCO, junto com o UNICEF, o Banco Mundial, o UNFPA, o PNUD, a ONU Mulheres e o ACNUR, organizou o Fórum Mundial de Educação 2015, em Incheon, na Coreia do Sul, entre 19 e 22 de maio de 2015. Mais de 1.600 participantes de 160 países, incluindo mais de 120 ministros, chefes e membros de delegações, líderes de agências e funcionários de organizações multilaterais e bilaterais, além de representantes da sociedade civil, da profissão docente, do movimento jovem e do setor privado adotaram a Declaração de Incheon para a Educação 2030, que estabelece uma nova visão para a educação para os próximos 15 anos.

Segundo essa declaração da UNESCO, a realização completa da agenda da Educação 2030 requer financiamento constante, inovador e bem orientado. Necessita-se igualmente de arranjos eficientes de implementação, sobretudo nos países que estão mais longe de alcançar uma educação de qualidade para todos, em todos os níveis e em situações de emergência. Os seguintes modelos regionais e internacionais são pontos de referência cruciais: (1) alocar pelo menos de 4% a 6% do produto interno bruto (PIB) para a educação e/ou; (2) alocar pelo menos de 15% a 20% do gasto público para a educação.

Nesse sentido, para a melhoria do financiamento doméstico para a educação, seria necessário: (a) aumentar o financiamento público; (b) priorizar os mais necessitados; (c) aumentar a eficiência e a responsabilização; (d) inovar, com foco em parcerias, transparência, equidade e eficiência; (e) concentrar os investimentos em qualidade, inclusão e equidade; (f) orientar recursos de financiamento privado da educação; (g) desafiar e expor a má utilização dos recursos públicos; e (h) instituir monitoramento e avaliação transparentes.

Segundo a conclusão da Declaração:

Nós, a comunidade internacional de educação, permanecemos fortemente unidos em uma nova abordagem global para garantir educação equitativa e de qualidade a crianças, jovens e adultos, que promova, ao mesmo tempo, oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos. Nós trabalharemos coletivamente para cumprir todas as metas educacionais; isso, por sua vez também fortalecerá a cooperação internacional entre o mundo da educação. Concordamos que é necessário um financiamento adicional significativo para alcançar as novas metas e também que os recursos devem ser usados da forma mais efetiva para impulsionar o progresso da Educação 2030. Reforçamos, ainda, a necessidade de boa governança e responsabilização liderada pelos cidadãos na educação. Convencidos de que a educação 2030 trará um progresso histórico na educação, nos comprometemos com ações ousadas, inovadoras e sustentáveis para garantir que a educação efetivamente transforme vidas em todo o mundo. Alcançar a Educação 2030 significa que somente podemos declarar o sucesso quando essa conquista puder ser declarada para todos.

3. O Brasil segue os parâmetros da Declaração de Incheon?

De fato, anualmente o Brasil investe cerca de 6% do PIB em educação. O valor é maior do que a média praticada nos países desenvolvidos. Outros dados, contudo, devem ser levados em consideração como o contingente populacional e a estrutura demográfica, na medida em que a população brasileira é composta por mais crianças e jovens do que em todos os países considerados de "primeiro mundo".

Não se deve confundir os percentuais mínimos de aplicação de receita de impostos do artigo 212 da Constituição Brasileira com a segunda garantia da Declaração de Icheon - 15%  a 20% do gasto público para a educação. Segundo a norma brasileira, há a obrigação de aplicação, no desenvolvimento do ensino, do percentual mínimo 18% da receita de impostos e transferências no caso da União e de 25% no caso dos Estados, Distrito Federal e Municípios. Ressalta-se que a receita fiscal de um ente público não advém somente de impostos, sendo oriunda igualmente de outras receitas tributárias (taxas, contribuições de melhoria e contribuições sociais) e ainda de receitas patrimoniais diversas (aluguéis, dividendos, compensações financeiras/royalties, concessões etc).

O problema brasileiro, no entanto, não está na indisponibilidade de recursos para a educação, mas sim nos aspectos da governança fiscal, diminuição das desigualdades e busca da qualidade do ensino4.

4. O diagnóstico do Tribunal de Contas da União em 2019.

O Tribunal de Contas da União (TCU) realizou, sob a relatoria do ministro Walton Alencar Rodrigues, levantamento de auditoria para conhecer a estrutura de Financiamento da Educação no Brasil e analisar seus aspectos críticos. A fiscalização também tem o objetivo de direcionar futuras ações de controle externo com base em critérios de materialidade, relevância e risco5.

A análise do TCU traçou um panorama do arranjo institucional e desenho das políticas públicas voltadas ao financiamento da educação. "O levantamento do Tribunal aponta vulnerabilidades que podem comprometer a eficiência, eficácia e efetividade das principais políticas públicas federais por três razões. Limitar a universalização de acesso ao ensino básico e superior, fragilizar a equidade na oferta de oportunidades e afetar a qualidade dos serviços educacionais", alerta o ministro-relator Walton Alencar Rodrigues. A Corte de Contas registrou a insuficiência dos atuais critérios normativos para redistribuição e complementariedade de recursos arrecadados pela União e destinados à educação, em apoio a outras unidades federativas, sobretudo as mais carentes.

Políticas como a distribuição das receitas do salário-educação e a suplementação dos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) "não têm sido suficientes para superar as desigualdades regionais quanto ao aumento da oferta, melhoria de infraestrutura, e garantia de padrão de qualidade de ensino", asseverou o membro do Tribunal de Contas da União.

5. Avanços consideráveis foram obtidos com a aprovação da Emenda Constitucional 108/20.

Após a Emenda Constitucional 108 de 2020, ressalta-se a nova posição textual do Fundeb na Constituição Federal, que deixou sua antiga localização como norma constitucional transitória (artigo 60 do ADCT) para ser incorporado ao texto definitivo da Constituição em seu artigo 212-A. O Fundeb tornou-se permanente e não mais possui prazo para terminar. O artigo 60 do ADCT passa a tratar somente de detalhes de implementação progressiva da complementação da União no Fundeb.

O percentual de gasto mínimo na remuneração dos profissionais da educação básica em efetivo exercício aumentou de 60% (sessenta por cento) para 70% (setenta por cento) de cada fundo contábil da estrutura do FUNDEB.

Adicionalmente, a União já destinava o equivalente a 10% da contribuição total do Distrito Federal, dos Estados e Municípios de todo o país para os estados que não atingirem o valor médio ponderado por aluno definido nacionalmente. Esse percentual de 10% totalizará 23% da receita total do fundo até 2026.

Uma mudança pouco tratada pela doutrina decorrente da Emenda Constitucional 108/2020 é a constitucionalização das finanças vinculadas ao desempenho qualitativo do serviço público, precisamente as transferências intergovernamentais de desempenho ou resultado em dois níveis: 1) Na complementação federal do FUNDEB, da União para os entes subnacionais (art. 212-A, V, "c" da CF); e 2) Na repartição de ICMS conforme critérios educacionais (art. 158, parágrafo único, II, da CF), dos Estados para os municípios6.

No primeiro caso, a União fica obrigada a distribuir verbas federais às redes públicas estaduais, municipais ou distritais conforme atingimento de condições de melhoria na gestão pública educacional e de acordo com a evolução de indicadores educacionais com redução das desigualdades.

O segundo caso cuida da modificação do parágrafo único do artigo 158. No caso, o percentual de 10% do total do repasse de ICMS aos municípios será distribuído "com base em indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade, considerado o nível socioeconômico dos educandos". A partir da Emenda 108/2020, portanto, passa a ser obrigatória a distribuição de receita de ICMS conforme critérios educacionais de acesso, qualidade e equidade na educação pública.

Nos resta aguardar pelos impactos dessa nova reforma educacional oriunda da Emenda Constitucional 108/20. Ainda estamos distantes do nível ideal no quesito qualitativo do nosso ensino público, mas não podemos negar os nossos avanços pós constituição de 1988.

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1 CAGGIANO, Monica Hermann S. A educação: direito fundamental. In: RANIERI, Nina Beatriz Stocco. Direito à Educação: aspectos constitucionais. São Paulo: EDUSP, 2009.

2 Allana de Freitas Lacerda e Francisca Geny Lustosa explicam a existência de discriminação por gênero nas políticas adotadas pelo Talibã em uma região do Paquistão: "A questão é política, porque, quando o Talibã assumiu o controle daquela região, impôs seus ideais e suas regras restritivas, sendo a maioria delas uma postura religiosa considerada como ultraconservadora, principalmente quanto a como figurava a mulher na sociedade, e a educação tomada como ideia ocidental". Fonte: LACERDA, Allana de Freitas; LUSTOSA, Francisca Geny. Educação e direitos humanos para mulheres muçulmanas. Tensões Mundiais, v. 13, n. 25 jul/dez, p. 207-232, 2017.

3 UNESCO. Fórum Mundial de Educação 2015 - maio 19-22, Coreia do Sul. Educação 2030: Declaração de Incheon e Marco de Ação da Educação - Rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos. Brasília: Unesco, 2016. 

4 MEC. Pisa 2018 revela baixo desempenho escolar em Leitura, Matemática e Ciências no Brasil. 

5 TCU, Acórdão 1.656/2019 - Plenário

6 MASCARENHAS, Caio Gama. Emenda Constitucional 108/2020 e as novas técnicas de financiamento: controle financeiro de resultado e direito à educação. REVISTA ELETRÔNICA DA PGE-RJ, v. 5, n. 1, 2022.

Caio Gama Mascarenhas

Caio Gama Mascarenhas

Doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP). Mestre em Direitos Humanos (UFMS). Extensão em federalismo comparado pela Universität Innsbruck. Procurador do Estado do Mato Grosso do Sul.

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