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Da Suprema Corte da "esperança" à Suprema Corte "desonesta"?

Parte significativa da atual maioria da Suprema Corte americana é formada por juízes que muito provavelmente jamais deveriam possuir assento naquele Tribunal, o que serve de lição para o caso brasileiro, algo que se torna mais importante do que nunca neste histórico momento constitucional que não aceita retrocessos, admitindo-se apenas uma Suprema Corte da "Esperança", como a "Garcia".

domingo, 2 de julho de 2023

Atualizado em 30 de junho de 2023 14:22

Os noticiários especializados deram bastante atenção a uma expressão utilizada pelo Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na coletiva de imprensa do último dia 28/06/2023, após ser questionado sobre a mudança de entendimento da Suprema Corte Americana sobre as cotas raciais ("affirmative actions"), ocorrida no caso "Students for Fair Admissions Inc. v. President & Fellows of Harvard College" que, em linhas gerais, por uma maioria de 6 x 3, entendeu pela inadequação de critérios raciais das ações afirmativas para o ingresso universitário.

Biden caminhava para fora da sala de conferência de imprensa quando foi questionado por uma repórter sobre se ele achava que os Estados Unidos estavam lidando com uma Suprema Corte "desonesta", usando a expressão "rogue court". Ao ouvir a pergunta, o presidente americano parou e olhou em silêncio por alguns segundos, e, por fim respondeu: "Este não é um tribunal normal", como se aquiescesse com a acusação.

Convém girar inicialmente em torno da pergunta (e da resposta), acerca das expressões "rogue" e "normal", para posteriormente refletirmos sobre o caso. Os dicionários costumam registar que a primeira expressão, de que se acusou a Suprema Corte, é um substantivo que significa desonesta ("dishonest"), patife ("knavish") e canalha ("scoundrel"), em todo o caso atraindo um sentido extremamente pejorativo (ainda, como: indigno de confiança, maliciosa ou malandra).

A resposta de Biden, tentando reagir diplomaticamente sobre uma questão da maior gravidade, foi no sentido de não se tratar de uma Suprema Corte "normal", ou seja, afirmando que ela seria atualmente "não normal", vale dizer, algo que os dicionários se referem a não operar dentro da normalidade, quando "não normal" significa "não habitual", e similares.

O caso "Students for Fair Admissions Inc. v. President & Fellows of Harvard College" possui uma decisão polêmica, preconizando que os programas de admissão no Harvard College e na University of North Carolina violam a cláusula de proteção igualitária da 14ª Emenda, por usarem critérios raciais de ações afirmativas.

Trata-se de um acórdão decidido pela maioria de 6 x 3, através da opinião da corte, redigido pelo Chief Justice John Roberts, agregado por um voto concordante do Justice Clarence Thomas, enquanto a justice Sotomayor apresentou um longo voto dissidente, ao qual as justices Elena Kagan e Ketanji Jackson se uniram, embora esta última não tenha participado da elaboração do voto, mas tenha aderido à minoria.

Em suas mais de 200 páginas, tanto a opinião majoritária, quanto as opiniões constantes dos votos vencidos, articulam numerosos fundamentos que precisam ser debatidos em perspectiva mais densa e profunda que as breves linhas deste artigo, sob os pontos de vista social, político, econômico e jurídico, embora seja possível fazer alguns registros iniciais apontando para o equívoco da decisão adotada pela maioria.

A opinião majoritária da Corte Suprema se baseou em algumas premissas iniciais, abaixo sintetizadas, em tradução livre.

Disse que "Eliminar a discriminação racial significa eliminar tudo que isso contém. E que a Cláusula de Proteção Igualitária, temos sustentado, se aplica "sem consideração a quaisquer diferença de raça, cor ou nacionalidade" - sendo "universal em [sua] aplicação".

Complementa, dizendo que "qualquer exceção à exigência da Constituição de proteção igualitária deve passar por um profundo exame em duas etapas, conhecido em nossos casos como "escrutínio estrito". Prosseguindo, assevera: "sob esse padrão, perguntamos, primeiro, se a classificação racial é usada para "promover interesses governamentais imperiosos".

Agregam, ainda, que: "Fora das circunstâncias desses casos, nossos precedentes identificaram apenas dois interesses convincentes que permitem recorrer à ação governamental baseada na raça. Um está corrigindo instâncias específicas e identificadas de discriminação passada, violadoras da Constituição ou da lei", prosseguindo: "A segunda é para evitar riscos iminentes e graves para segurança humana nas prisões, como um motim racial".

Aduz, em complemento: "Nossa aceitação de ações estatais baseadas na raça (race-based state action) tem sido rara por um motivo, qual seja, as distinções entre cidadãos apenas por causa de sua ancestralidade são, por sua própria natureza, odiosas para pessoas livres cujas instituições estão baseadas na doutrina da igualdade".

Em sentido contrário, os 3 votos vencidos de Sotomayor, Kegan e Kentaji estabelecem premissas históricas e político-jurídicas em tudo distintas, afirmando que: "a igualdade de oportunidades educacionais é um pré-requisito para se alcançar a igualdade racial em nossa nação. Desde a sua fundação, os Estados Unidos foram uma nova experiência de forma republicana de governo, onde a participação democrática e a capacidade de se autogovernar eram vitais".

Prosseguem: "A luta pela igualdade de oportunidades educacionais, no entanto, foi um dos principais impulsionadores. A alfabetização foi um "instrumento de resistência e libertação". Autodidatismo. Quando educação "significa escrever um passe para a liberdade" e "aprender sobre as atividades abolicionistas". Permitia a pessoas negras escravizadas "perturbarem as relações de poder entre o senhor e o escravo", que, "fundindo seu desejo de alfabetização com seu desejo de liberdade", simplificando, "[o] próprio sentimento de inferioridade que era imposto pela escravidão aos [negros] gerou um desejo intenso de sair de sua condição por meio da educação".

Aduzem: "A exclusão e a discriminação continuaram a fazer parte vida no campus até o século XX. A liderança e os proeminentes professores de Harvard promoviam abertamente "ciência racial'", eugenia racista e outras teorias enraizadas na hierarquia. Atividades para promover essas teorias "ocorreram no campus", incluindo "exames físicos intrusivos" e "fotografia de alunos sem roupas".

Fazem ainda o complemento: "A universidade também valorizou academicamente a admissão de alunos anglo-saxões de origens elitistas - incluindo filhos brancos ricos do sul. Em contraste, uma média de três estudantes negros matriculados em Harvard a cada ano durante as cinco décadas entre 1890 e 1940. Aqueles estudantes negros que conseguiram se matricular em Harvard "se destacaram academicamente, ganhando igual ou melhores registros acadêmicos do que a maioria dos estudantes brancos", mas enfrentaram desafios do legado profundamente enraizado da escravidão e racismo no campus".

Também asseveram: "É uma característica perturbadora da decisão de hoje que a Suprema Corte nem sequer tente demonstrar os requisitos demandados pelo stare decisis. O Tribunal simplesmente move seus limites, quebrando as expectativas estabelecidas, jogando programas de admissão em todo o país em turbulência. No fim, entretanto, é claro que o Tribunal é forçado a mudar as regras do jogo para alcançar o resultado desejado: sob uma aplicação fiel do quadro jurídico estabelecido anteriormente pela Corte, os programas de admissão de Harvard e UNC são constitucionais e cumprem o Título VI da lei dos Direitos Civis de 1964".

Agregando, alegam: "Respondendo à pergunta sobre se as políticas de admissão de Harvard e UNC sobrevivem a um escrutínio estrito sob o direito estabelecido, é simples, tanto pela postura processual desses casos e, ainda, por causa do escopo estrito das questões apresentadas pelos peticionários", e, aduzem: "o uso da raça é estritamente adaptado, a menos que seja "viável" com abordagens neutras de raça "disponíveis", o que significa dizer que alternativas raciais neutras promovem as metas de diversidade da instituição e o fazem com "'despesas administrativas toleráveis'". Compatibilidade estrita não significa compatibilidade perfeita. Os precedentes da Corte deixam claro que "estrita compatibilidade não requer o esgotamento de todas as alternativas raciais neutras".

E, ainda: "Também não significa que a universidade deva escolher entre manter uma reputação de excelência ou cumprir um compromisso de fornecer educação com oportunidades para membros de todos os grupos raciais".

Prosseguem: "O resultado da decisão de hoje é que a cor da pele de uma pessoa pode desempenhar um relevante papel na avaliação da suspeita individualizada, mas não pode desempenhar um papel na avaliação individualizada dessa pessoa para um ambiente de aprendizagem diversificado. Essa leitura indefensável da Constituição não se fundamenta no direito e também subverte a garantia da Décima Quarta Emenda de Proteção Igualitária".

Apontam, ainda: "A maioria não contesta que alguns usos de raça são constitucionalmente admissíveis. De fato, concordam que o uso limitado de raça é permitido em alguns programas de admissão em faculdades. Em nota de rodapé, a Corte isenta as academias militares de sua decisão à luz dos "interesses potencialmente distintos" que podem apresentar. Na medida em que a Corte sugere que interesses de segurança nacional são "distintos", esses interesses não podem explicar a decisão do Tribunal na exceção "estrita", uma vez que os interesses de segurança nacional também estão ligados à universidades civis".

Apontam, na sequência: "O Tribunal também tenta justificar sua exclusão com base no fato de que nenhuma academia militar é parte nesses casos. No entanto, o mesmo pode ser dito de muitas outras instituições que não são parte aqui, incluindo as universidades religiosas que os apoiam, o que a Corte não considera, igualmente, isentos de sua opinião abrangente".

O final é altamente largo e profundo: "O Tribunal chegou a fundamentar a conclusão final no sentido de que a diversidade racial no ensino superior só vale a pena na medida em que pode ser necessária para preparar Americanos negros e outras minorias sub-representadas para o sucesso no bunker, não na sala de estudos (um local particularmente difícil de se acessar, à luz da história que a maioria opta por ignorar).

Seria profundamente lamentável se a Cláusula de Proteção Igualitária, na verdade, exigisse essa perversidade a-histórica e contraproducente. Para impor esse resultado em nome da Cláusula, quando ela não requer tal efeito, acabam obstruindo nosso progresso coletivo em direção à plena realização da promessa da Cláusula, o que é verdadeiramente uma tragédia para todos nós".

Pois bem, é evidente que enquanto os 3 votos vencidos das justices Sotomayor, Kegan e Kentaji representam um luminoso repositório da mais densa defesa da Constituição, desde que o constitucionalismo agrega, no mínimo, a ideia de três importantes elementos (garantia de direitos fundamentais, proteção contra o abuso do poder governamental e afirmação da regra do estado de direito), a opinião da maioria da Suprema Corte americana adentra o pantanoso campo da política mais maliciosa, quando diz que os critérios distintivos de raça podem ser admitidos para separar negros nas prisões, em questões de segurança nacional, admitidos nas fileiras militares para potencialmente morrerem no lugar dos brancos, mas não para ingressar nas universidades pelo acesso à educação.

A posição política majoritária subverteu a posição jurídica minoritária, lembrando as mais tenebrosas decisões do Tribunal nos casos Dred Scott v. Sandford (1857) e Plessy v. Ferguson (1896), que representam o momento de maior institucionalização jurídica do racismo, preconizador de que os negros não eram cidadãos americanos (e jamais viriam a ser) e de que o tratamento racista por segregação racial seria justo e "igualitário", desde a infamante técnica do "diferentes mas iguais", período constitucional mais "desonesto" da Corte Suprema, em contraposição ao momento de iluminação que começou a mudar as coisas, com o caso Brown v. Board of Education of Topeka (1954), que inaugura a "Era da Suprema Corte da Esperança".

Por fim, é importante recordar que a atual maioria da Suprema Corte Americana é formada por juristas que possuem origens ligadas a ala mais radical da extrema direita do partido republicano, indicados pelas administrações Bush (pai e filho) e Trump, que por sua vez estão vinculados ao arquétipo de Robert Bork, jurista considerado o "modelo tipo" da extrema direita, que espelha o não menos extremista James Fitzjames Stephen, antigo juiz das colônias inglesas que já foi comparado ao "Grande Inquisidor", de "Os irmãos Karamazov", de Fiódor Dostoiévskii1.

Quando Robert Bork foi indicado à Suprema Corte, em 1987, acabou rejeitado pelo Senado, mas é importante destacar o importante papel exercido na imprensa pelo professor Ronald Dworkin2, aquele que, à época, escreveu o mais importante artigo sobre os critérios de admissão de um jurista para a Suprema Corte, defendendo a rejeição do nome de Bork, o que acabou acontecendo3.

No referido artigo, escreveu Dworkin: "Seria impróprio aos senadores rejeitarem um futuro juiz apenas porque discordam de suas opiniões detalhadas sobre questões constitucionais. Mas o Senado tem uma responsabilidade constitucional no processo de nomeações para a Suprema Corte, além de garantir que o candidato não seja um vigarista ou um tolo. A Constituição é uma tradição tanto quanto um documento, e o Senado deve se certificar de que um candidato pretende, de boa fé, aderir e ajudar a interpretar essa tradição de maneira jurídica, não para desafiá-la e substituí-la por alguma visão política radical que argumento jurídico nenhuma jamais irá tocar".

De fato, parte significativa da atual maioria da Suprema Corte americana é formada por juízes que muito provavelmente jamais deveriam possuir assento naquele Tribunal, o que serve de lição para o caso brasileiro, algo que se torna mais importantedo que nunca neste histórico momento constitucional que não aceita retrocessos, admitindo-se apenas uma Suprema Corte da "Esperança", como a "Garcia".

Por isso, este artigo finaliza recomendando a leitura de 8 obras fundamentais, a 1ª para a compressão do binômio desigualdade/igualdade, a 2ª para assentar os mecanismos da jurisdição constitucional, a 3ª para "logicizar" aspectos político-jurídicos da Suprema Corte, a 4ª para compreensão histórica do ethos histórico da Suprema Corte, a 5ª para apreensão do "humanismo", a 6ª para assentar a busca da felicidade, a 7ª e a 8ªpara compressão profunda acerca das perversas linhas do racismo, respectivamente, os livros de Jefferson Carús Guedes ("Igualdade e Desigualdade: Introdução Conceitual Normativa e Histórica Dos Princípios"), de Lenio Streck ("Jurisdição Constitucional"), de Daniel Vila-Nova ("#supremologia"), de João Carlos Souto ("Suprema Corte dos Estados Unidos - Principais Decisões"), de Carlos Ayres Britto ("O humanismo como categoria constitucional"), de Saul Tourinho ("Direito à Felicidade"), de Silvio Almeida ("Racismo Estrutural"), e de Adilson Moreira ("Tratado de Direito Antidiscriminatório"), que permitirão iluminar nosso caminho para um futuro de esperança no qual jamais alcançaremos tal nível de retrocesso sobre a (Des)Igualdade, Racismo ou sobre a Corte Suprema, embora nossa construção e racial e jurídica sejam em tudo distintas.

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1 Cfr. POSNER, Richard. The Romance of Force: James Fitzjames Stephen on Criminal Law. Ohio State Journal of Criminal Law, vol. 10, 2012; POSNER, Richard. The First Neoconservative. In: Overcoming Law. Cambridge: Harvard University Press, 1995, p. 259-270.

2 Cfr. Há tradução de nossa autoria. Publicado originalmente como: Ronald Dworkin. The Bork Nomination. The New York Review of Books, ago./1987; Traduzido como: Ronald Dworkin. A Indicação de Bork. Tradução Thiago Pádua. Cadernos de Direito, v. 1 n. 1, 2019.

3 Confira-se, ainda: Ronald Dworkin. Bork's Jurisprudence. The University of Chicago Law Review, v. 57, 1990; Tom Lininger. On Dworkin and Borkin. Mich. L. Rev. n. 1315, 2007; Miguel Beltrán de Felipe. Originalismo e interpretación: Dworkin vs. Bork, una polémica constitucional. Madri: Cuadernos Civitas, 1989.

 

Thiago Aguiar de Pádua

VIP Thiago Aguiar de Pádua

Doutor em direito. Professor da Faculdade de Direito da UnB. Ex-assessor de ministro do STF. Autor do livro "O Common Law Tropical: o caso Marbury"(2023). Sócio de Aguiar de Pádua & Lima Advogados.

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