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Parte IV: Possibilidade de redução aquém do mínimo, sem necessidade de aumento além do máximo

Demonstradas as diferenças entre os marcos penais mínimo e máximo, compreendemos que a pena jamais poderia ser extrapolada além de seu limite, seja pelo reconhecimento de circunstância agravante, seja pelo reconhecimento de causas de aumento.

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Atualizado às 08:25

Introdução

Nos artigos anteriores vimos como não subsiste qualquer fundamento legal ou doutrinário para a vedação à diminuição da pena abaixo do mínimo legal após a entrada em vigor da Parte Geral de 1984.

No presente artigo procuraremos responder a uma pergunta ainda mais complexa: a admissão da redução aquém do mínimo legal na presença de atenuante, deve levar à correspondente admissão do aumento além da pena máxima, na presença de agravantes?

Análise da função dos marcos penais

O sistema hermenêutico legal e democrático propugna que à norma penal se deverá dar a interpretação que melhor atenda aos interesses do acusado, diminuindo dessa forma, as hipóteses de incidência da norma penal no caso concreto. Assim, além dos mecanismos internos de redução de incidência, chamados por Salo de Carvalho de propostas crítico-minimalistas,1 a hermenêutica de fundo garantista, evitará o avanço do aparato punitivo em situações cuja resolução se mostra suficiente por outros ramos do direito ou cuja dignidade penal se vê abalada ante fatores externos ao sistema penal (heteropoiesis).

Desde esse ponto de vista, é possível se perceber que, mesmo o princípio da legalidade poderia ser afastado em razão de elementos exteriores ao sistema-jurídico penal que conclamem o afastamento da incidência da norma penal.2 Ressalte-se que essa flexibilização ao princípio da legalidade sempre se operará na direção da extensão dos direitos do cidadão, na busca por um direito penal libertário, mas, jamais, na direção da ampliação do sistema punitivo.

Disso poderíamos já extrair o primeiro fundamento para se defender a redução da pena além do mínimo legal pelo reconhecimento de circunstância atenuante, sem a contrapartida da possibilidade de aumento além do máximo, ante o reconhecimento de circunstância agravante.

Ao fundamento, adira-se a concepção defendida por Antonio Luís Chaves de Camargo, sobre a necessidade de se encarar o sistema jurídico-penal como um sistema aberto, atento, portanto, às modificações sociais, em estreita ligação com a sociologia e filosofia.3 Novos parâmetros sociais exigirão, dessa forma, novas respostas do direito penal, adequadas às finalidades da pena e da política-criminal.

Contudo, no presente trabalho, além das consagradas orientações de cunho garantista, procedemos a uma releitura das funções dos marcos penais existentes no preceito secundários. Pois, é nessa releitura que encontramos o fundamento primordial pelo qual entendemos a possibilidade da redução da pena além do mínimo.

Sob essa ótica, levanta-se a primordial questão: qual é a função dos marcos penais no preceito secundário do tipo penal? Intuitivamente, chega-se à resposta de que, acima de tudo, a princípio, essa delimitação do interregno de apenamento guarda relação com o respeito ao princípio da legalidade.4

De fato, vigora em nosso ordenamento jurídico5 o princípio do nullum crimen, nulla poena sine lege praevia, pelo qual se entende que não poderá se aplicar sanções penais sem que haja lei anterior e certa que preveja a conduta concreta como criminosa. Mas não só. Deve também cominar uma pena certa, em nosso ordenamento estipulada hipoteticamente pela qualidade (detenção, reclusão, multa, prestação de serviços, etc.) e pela quantidade (tempo de privação de liberdade, montante de multa a ser paga, tempo de restrição de direitos).

À luz do princípio da taxatividade, corolário do princípio da legalidade (lex certa), seria de se esperar que a pena fosse a mais certa possível, não se permitindo qualquer margem de variação. Esse sistema de absoluta determinação da pena foi adotado pelo Código Penal Francês de 1791, e mostrou-se tão insatisfatório quanto o sistema medieval da indeterminação absoluta.6

E isso porque, sem que se flexibilize a taxatividade do preceito secundário do tipo penal, impossível se torna a aplicação do princípio da individualização da pena, assim como da culpabilidade. Em atenção a essa necessidade, surge com o Código Penal francês de 1810 o sistema de indeterminação relativa das penas, fixadas legislativamente entre marcos penais máximos e mínimos,7 os quais seriam modulados pela decisão judicial no caso concreto, a luz dos princípios da culpabilidade e da proporcionalidade, ambos a orientar a individualização da pena. Assim, precisamente nesse espaço aberto entre pena mínima e máxima, atuaria a individualização da pena.8

Entendemos, contudo, que, para que haja terreno propício à individualização da pena e ao mesmo tempo para que se respeite o princípio da legalidade, é prescindível a fixação de uma pena mínima, bastando que se fixe para tanto a pena máxima, de modo que se permita saber até que ponto o estado pode invadir a esfera individual no condenado. Destarte, não há qualquer infração ao princípio da legalidade, o fato de não se indicar o mínimo que o deverá constranger o agente.9

Ter delimitado com precisão qual o grau de ingerência máxima do estado em direitos fundamentais tão caros ao ordenamento jurídico é imprescindível ao estado que se diz democrático e ao indivíduo que se pretenda livre. Desse modo, exibe-se a delimitação da pena máxima como uma garantia inexorável ao Estado Democrático de Direito, colocando limites à intervenção estatal sobre o particular.10

A função do marco penal máximo, portanto, é a de limitar a aplicação do direito penal, evitando-se dessa maneira o arbítrio estatal.

Por óbvio, não tem a mesma natureza a pena mínima. Conforme asseverado, o marco penal inferior, ao contrário da pena máxima, não se exibe e jamais se exibiu como uma garantia do indivíduo oponível ao Estado11 mas sim como um marco norteador da aplicação da pena, reflexivo do desvalor em abstrato da conduta hipotética.12

A pena mínima guarda relação com o princípio da proporcionalidade e da individualização legislativa da pena. Sua função precípua é, portanto, traduzir o quantum de reprovabilidade da conduta abstrata em quantidade de pena, de modo que, assim, se oriente a aplicação da pena no caso concreto13 e diminua ao máximo a discricionariedade do juiz na aplicação da pena, mas sem que com isso se engesse sua margem de atuação, necessária aos princípios da culpabilidade e da individualização da pena.

Esse receio da discricionariedade judicial é refletido na obra de, Maurício Antonio Ribeiro Lopes que condena amplitude exagerada dos marcos penais,14 assim como a inexistência da pena mínima,15 tal qual ocorre nos ordenamentos jurídicos alemão, francês e português. De qualquer forma, se vê que, a inexistência da pena mínima recebe críticas, não pela inexistência de uma garantia de punição, mas sim, em razão da inexistência de parâmetros de punição, que permitiriam a flutuação desmedida da vontade do magistrado no momento da decisão sobre a quantidade de pena aplicada, assim como a aplicação de penas discrepantes para casos semelhantes.

Diante de tais considerações, é possível perceber que a permissão da diminuição da pena aquém do mínimo legal, em face do reconhecimento de circunstâncias atenuantes de maneira alguma encontraria óbice no princípio da legalidade, uma vez que sua função desenhada é a de modular e auxiliar a aplicação da pena, por meio da fixação legal de uma quantidade hipotética de pena, que se presume ser a adequada a uma determinada conduta.

Sua função não é, portanto, e de maneira nenhuma poderia ser, a de uma garantia legal, ou seja, a de garantia de que uma pena seja aplicada no caso do cometimento de um ilícito.16

Conclusão

A possibilidade de diminuição harmonizaria as melhores características dos diversos sistemas de fixação da pena, pois, partindo-se da pena mínima, (i) não se deixaria de aplicar penas semelhantes a caso semelhantes, ressalvando a isonomia das penas, (ii) ter-se-ia uma orientação legislativa sobre o desvalor das condutas, que orientaria a aplicação em concreto da pena, evitando-se a arbitrariedade judicial, mas permitindo-se sua modulação correspondente às circunstancias concretas, (iii) não se afrontaria de forma patente o princípio da individualização da pena e (iv) poder-se-ia corrigir a eventual injustiça oriunda da presunção de culpabilidade do agente advinda da pena mínima, modulando-se a pena de maneira otimizada à culpabilidade em concreto do agente.

Em síntese, no nosso entender, não haveria qualquer óbice à diminuição da pena aquém do mínimo legal, eis que a função do marco inferior é tão somente o de orientar a aplicação da pena, não se exibindo precipuamente como um limite; ao contrário do marco superior que, além de orientador, exerce a função de limitador da pena, em consonância com o princípio da reserva legal e a garantia de não se ter aplicada uma pena arbitrária.

Por todas essas razões, demonstradas as diferenças entre os marcos penais mínimo e máximo, compreendemos que a pena jamais poderia ser extrapolada além de seu limite, seja pelo reconhecimento de circunstância agravante, seja pelo reconhecimento de causas de aumento.

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1 CARVALHO, Salo de. Pena e Garantia. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2003. P. 87.

2 Nesse sentido Salo de Carvalho assenta que "existem, desde uma visão garantista, condições de flexibilização da legalidade via interpretação material, conformando o que se poderia denominar dogmática penal garantista". (CARVALHO, Salo de. Op. Cit. P. 89).

3 CHAVES CAMARGO, Antonio Luís. Sistemas de penas, dogmática jurídico-penal e política criminal. São Paulo. Editora Cultural Paulista, 2002. P. 27.

4 Cezar Roberto Bitencourt, sobre o tema arremata que "precisa-se ter presente que o princípio da reserva legal não se limita à tipificação das condutas, estendendo-se às consequências jurídicas, especialmente à pena e á medida de segurança, caso contrário, o cidadão não terá como saber quais são as consequências que poderão atingi-lo" (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral - Volume I. 10ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva, 2006. P. 17.).

5 Por força do artigo 5ª, inciso XXXIX da Constituição Federal, bem como do artigo 1ª do Código Penal.

6 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit. P. 698.

7 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit. P. Cit.

8 Apoiando-se na doutrina de Maurício Antonio Ribeiro Lopes, Sérgio Salomão Shecaira e Alceu Corrêa Júnior destacam a desvantagem desse sistema que, aprioristicamente, presume a culpabilidade do agente (SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu.Teoria da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. P. 78)

9 A título de exemplo, citem-se os ordenamentos jurídicos Alemão, Francês e Português, que delimitam somente a pena máxima e não a pena mínima. A principal crítica que se opõe a não indicação da pena mínima é a infração ao princípio da isonomia, que permitiria a aplicação de penas notadamente diferentes para casos semelhantes.

10 Mencionada garantia vai encontrar suas origens na pauta iluminista de Beccaria, que militava sobre a necessidade de se delimitarem as penas aplicadas, sob pena de se permitir o mais amplo arbítrio estatal. Sobre o tema, José Cerezo Mir destaca que "la formulación del principio de legalidad se debe a Beccaria en su famosa obre , que acusa la influencia de Montesquieu y Rousseau y a Feuerbach que lo desarrolla en función de su teoría de la pena como coacción psicológica, y al que se remonta su formulación latina" (CEREZO MIR, José. Derecho Penal. parte general. 2. ed. Madrid: Universidad Nacional de Educación a Distancia, 2000. P. 243).

11 E que nem se cogite em falar na pena mínima como uma garantia da sociedade de punição mínima, garantia essa que não encontra qualquer respaldo na Constituição Federal, nem se coaduna com o Estado de Direito. Em que pese ser a segurança pública um direito social constitucionalmente garantido, não é lícito que se correlacione a aplicação de uma pena desproporcional a uma sensação ilusória de segurança.

12 Nas palavras de Patrícia Ziffer "la función de los marcos penales no es, como podría pensar-se, sólo la de poner límites a la discrecionalidad judicial. No se trata simplesmente de ámbitos dentro dos cuales el juez se pude mover libremente y sin dar cuenta de su decisión, sino que através de ellos el legislador refleja el valor proporcional de la norma dentro del sistema" (ZIFFER, Patricia S. Lineamientos de la determinación de la pena.1. ed. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1996. P. 36-37)

13 É claro que essa característica também se adere à pena máxima, vale dizer, o marco superior também guiará o desvalor da conduta, com a peculiaridade de que esse, também se impõe como garantia estatal, ao contrário do marco inferior.

14 Essa amplitude exagerada ensejaria um arbítrio judicial no momento da aplicação da pena, assim como a incerteza da pena que seria aplicada. Nesse sentido, o autor destaca que "a determinação da pena deverá, portanto, ser sempre um compromisso entre a fixação legal (exigência de segurança jurídica) e a determinação judicial (justiça do caso particular), e este compromisso desaparece quando o juiz através de margens penais dilatadas absorve tarefas próprias do legislados, com significação de arbítrio incontrolável e de ofensas aos princípios da legalidade e da separação dos poderes, que são pressupostos fundamentais do estado de Direito" (LOPES, Maurício Antonio Ribeiro.Princípio da legalidade penal: projeções contemporâneas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. P. 131.

15 O autor assevera que "repudia-se, igualmente, o sistema do Código Penal alemão, em 1871, que prevê aos delitos apenas um máximo de pena privativa de liberdade que pode ser imposta pelo juiz. Tal sistema, de uma única margem penal, pode permitir a violação de outra garantia constitucional genérica, está a da isonomia, dando margem a sem-número de reclamações pela pena imposta, comparando-a àquela aplicada a outros condenados" (LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Op. Cit. P. 131-132)

16 Sobre o "problema" da pena-zero, vale mencionar que o ordenamento jurídico possui hipóteses de não aplicação da pena como no caso princípio da insignificância e do perdão previsto no parágrafo 5º do artigo 121 do Código Penal.

Bruno Salles Ribeiro

VIP Bruno Salles Ribeiro

Sócio do escritório Salles Ribeiro Advogados.

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