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Regulamentação de criptoativos: problema ou solução?

É imperativo que essa regulamentação seja abordada com a devida cautela. O risco é que, ao tentar proteger o mercado e os investidores, as autoridades possam inadvertidamente reprimir a inovação e o desenvolvimento de novas tecnologias.

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Atualizado em 28 de setembro de 2023 14:54

A regulamentação das criptomoedas na Europa, particularmente através da implementação de mercados de ativos criptográficos - MiCAR, enfrenta desafios complexos, evidenciando que há uma necessidade urgente de diálogo mais eficaz entre os reguladores e a indústria para garantir que as novas regras sejam tanto protetoras quanto facilitadoras de inovação e crescimento.

É amplamente reconhecido que a regulamentação de criptomoedas é essencial para proteger investidores e manter a integridade do mercado financeiro. Nesse contexto, vários países têm se esforçado para implementar medidas regulatórias que tornem o ambiente de criptomoedas mais seguro. A UE não é exceção, tendo introduzido a regulamentação da MiCAR, que começou a ser implementada de forma gradual desde junho deste ano.

A iniciativa visa harmonizar o mercado de criptoativos na UE, especialmente porque países como França e Alemanha já estavam desenvolvendo suas próprias regulamentações para o setor. Esse esforço de regulamentação em nível europeu está alinhado com o princípio da subsidiariedade, conforme estabelecido no Artigo 5(3) do TEU e no Protocolo 2.

Desde o anúncio da vontade da União em regulamentar o setor de criptoativos, houve uma crescente preocupação sobre como essa medida afetaria o mercado financeiro europeu. A UE tem sido pioneira na criação de um quadro regulatório abrangente para criptoativos, uma tarefa que muitas outras jurisdições evitaram devido à complexidade inerente à estrutura desses ativos. Por exemplo, o Bitcoin, com sua estrutura descentralizada, apresenta desafios significativos para o cumprimento de requisitos legais, como medidas anti-lavagem de dinheiro (AML) e procedimentos de conhecimento do cliente (KYC).

Um dos catalisadores para essa "corrida" regulatória tem sido o aumento do uso de stablecoins, criptoativos atrelados a moedas fiduciárias ou outros ativos estáveis como o dólar ou o ouro. Essas moedas foram desenvolvidas para abordar a volatilidade intrínseca que é comum a muitas criptomoedas. No caso de criptoativos com uma autoridade centralizada, a regulamentação torna-se relativamente mais simples, já que a entidade responsável pode fornecer as informações necessárias para o cumprimento de requisitos legais. No entanto, para moedas e exchanges descentralizadas, o cumprimento de normas regulatórias torna-se um desafio significativo.

Atualmente, a UE está desenvolvendo as normas técnicas regulamentares (RTS), que servirão como um guia para o cumprimento da MiCAR. Durante uma audiência pública recente organizada pela Autoridade Bancária Europeia (EBA), da qual participei online, ficou evidente que muitos provedores de criptoativos estão enfrentando dificuldades para se adaptar aos requisitos que são comumente aplicados ao setor financeiro tradicional. Isso levanta a questão de se a aplicação de normas convencionais a empresas de criptoativos poderia ser contraproducente para o mundo das criptomoedas. O risco é claro: os investidores podem simplesmente optar por mercados com regulamentações mais lenientes, levando ao fenômeno conhecido como "arbitragem regulatória".

Durante a audiência pública organizada pela EBA, um dos momentos mais marcantes foi, sem dúvida, a intervenção de Marina Parthuisot, chefe do departamento jurídico da Binance na França1. Parthuisot lançou um alerta sério sobre a possibilidade de uma retirada em massa de stablecoins do mercado europeu até junho de 2024, quando a MiCAR estará totalmente em vigor. Segundo ela, até o momento, nenhum projeto de stablecoin recebeu aprovação sob as novas diretrizes.

É evidente que a maioria das questões levantadas pelos participantes da audiência pública não se concentra especificamente nas responsabilidades da EBA ou nas RTs. Em vez disso, essas perguntas abordam preocupações mais amplas relacionadas à MiCAR como um todo. Este fato sugere que a comunicação entre a UE e a indústria de criptoativos poderia ter sido mais eficaz. Embora o objetivo da União seja proteger os investidores e manter a estabilidade financeira, é crucial que ela também entenda as complexidades inerentes ao mercado de criptoativos para formular regulamentações verdadeiramente eficazes.

A experiência de participar da audiência pública revelou que há uma lacuna significativa entre as expectativas dos reguladores e as preocupações práticas da indústria. Uma abordagem mais colaborativa poderia ajudar a garantir que a regulamentação seja não apenas rigorosa, mas também flexível o suficiente para permitir a inovação e o crescimento. Afinal, o objetivo final desse tipo de regulamentação deve ser o de criar um ambiente que seja seguro para os investidores e propício para o desenvolvimento tecnológico.

Obviamente, a necessidade de regular o mercado de criptoativos é inegável, especialmente à luz dos problemas que surgiram, incluindo diversos investidores perdendo dinheiro em investimentos arriscados ou fraudulentos. No entanto, é imperativo que essa regulamentação seja abordada com a devida cautela. O risco é que, ao tentar proteger o mercado e os investidores, as autoridades possam inadvertidamente reprimir a inovação e o desenvolvimento de novas tecnologias. Tal cenário não apenas estagnaria o crescimento no setor de criptoativos, mas também poderia ter implicações mais amplas para o avanço tecnológico e a competitividade da UE no cenário global. Portanto, enquanto a regulamentação é necessária, ela deve ser equilibrada e bem ponderada para garantir que não sufoque a inovação que é vital para o futuro do setor.

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1 EU's MiCA Could Lead to Multiple Stablecoin Delistings, Binance Warns (coindesk.com)

Pedro Vitor Serodio de Abreu

VIP Pedro Vitor Serodio de Abreu

Mestrando em Direito Internacional e Europeu pela Universität des Saarlandes. Especialista em Direito Econômico Europeu, Comércio Exterior e Investimento. Legal Assistant na MarketVector Indexes.

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