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Fraudes bancárias e a falta do dever de cautela do consumidor como excludente de responsabilidade das instituições

Os casos de "golpes"/fraudes bancárias analisados pelo Poder Judiciário o devem ser por uma perspectiva ampla, e não focada na simplista e limitada perspectiva geral acerca da vulnerabilidade informacional do consumidor, de modo a não desequilibrar a relação em desfavor das instituições financeiras.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Atualizado às 14:08

A trapaça, a fraude, a má-fé, o engodo, não existem de hoje, nem de ontem. Se formos a fundo na história da humanidade, certamente encontraremos registros de pessoas que praticavam atos objetivando obter vantagem para si ou para outrem, em prejuízo alheio, nos mais variados âmbitos (desde uma trapaça num jogo, até uma grande "armação" para tomar o poder em um reino, em um Estado, etc.).

No Brasil, desde o primeiro Código Penal (Código Criminal do Império do Brasil, de 1830), há quase 200 anos, já havia previsão do crime de estelionato, assim disposto no art. 264:

Art. 264. Julgar-se-ha crime de estellionato:

1º A alheação de bens alheios como proprios, ou a troca das cousas, que se deverem entregar por outras diversas.

2º A alheação, locação, aforamento, ou arretamento da cousa propria já alheiada, locada, aforada, ou arretada á outrem; ou a alheiação da cousa propria especialmente hypothecada á terceiro.

3º A hypotheca especial da mesma cousa á diversas pessoas, não chegando o seu valor para pagamento de todos os credores hypothecarios.

4º Em geral todo, e qualquer artificio fraudulento, pelo qual se obtenha de outrem toda a sua fortuna, ou parte della, ou quasquer titulos.

Atualmente, o crime de estelionato está previsto no art. 171 do Código Penal (decreto-lei 2.848/40), que estabelece a seguinte tipificação, "obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento".

Na linguagem popular, o número 171 é, inclusive, sinônimo de pessoa de caráter duvidoso, de pessoa que não é confiável, de pessoa que vive enganando e "levando vantagem" em prejuízo alheio.

Em decorrência do vertiginoso aumento de crimes na modalidade de fraude eletrônica, foi incluído o § 2º-A no art. 171 do Código Penal, que estabelece o seguinte:

A pena é de reclusão, de quatro a oito anos, e multa, se a fraude é cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo.

Nesse sentido, importa destacar que, diariamente, nos mais variados jornais, revistas e programas na televisão (aberta ou fechada) e na internet; nas rádios; nas redes sociais; nos grupos de conversa de Whatsapp; entre outros, circulam reportagens, notícias, propagandas de bancos, etc., sobre as mais variadas ocorrências sociais, mas especialmente sobre crimes, sendo que, atualmente, a maioria está relacionada a fraudes/golpes financeiros, tais como: "golpe da maquininha"; "golpe da falsa central ou do falso funcionário"; "golpe do boleto falso"; "golpe do falso motoboy"; phishing; "golpe da troca de cartão"1. Basta uma pesquisa simples e rápida no Google para encontrar conteúdos sobre, inclusive reportagens que foram veiculadas em programas de televisão de canais abertos de grande audiência como Globo, Record, Rede Bandeirantes e SBT.

Em vista disso, não é exagerado afirmar que é de conhecimento geral que há pessoas que cometem crimes mediante fraude e que, especialmente com relação às informações e/ou transações bancárias, não se deve prestar informações, aceitar a ajuda e/ou seguir a "orientação" de terceiros que não sejam funcionários/colaboradores da instituição financeira. Trata-se, na realidade, de premissa básica que, geralmente, se aprende quando criança, e se transmite para as gerações seguintes, "não aceite a ajuda e não converse com estranhos!".

Certamente, a maioria das pessoas que acabam vitimadas, se indagadas, orientariam qualquer pessoa a não aceitar a ajuda e/ou a não seguir a orientações de pessoa estranha com relação às informações e/ou transações bancárias. Entretanto, essas são as mesmas que não seguem as próprias orientações e/ou os alertas e orientações veiculados nos mais variados meios e mídias de comunicação, e acabam vitimadas por inobservância do dever cautela (negligência).

É possível afirmar, nesse sentido, que essas modalidades delitivas fraudulentas "estão no dia a dia da população", que estão "na boca do povo", especialmente nas metrópoles.  Isso porque, hora ou outra, parcela considerável das pessoas já deve ter "ouvido falar" sobre - e também sobre como se prevenir -, razão pela qual, em certas situações, não soa verossímil a alegação no sentido do absoluto desconhecimento por parte da pessoa/consumidor quando acaba vítima, especialmente quando se trata de "golpe antigo" e de fácil compreensão e prevenção, tais como o "golpe da maquininha"; "golpe da falsa central ou do falso funcionário"; "golpe do boleto falso"; "golpe do falso motoboy"; phishing; "golpe da troca de cartão".

Tal afirmação tem base na pesquisa TIC Domicílios 20222, realizada pelo CETIC.br, na qual foi constatado que 94,7% dos domicílios brasileiros possuem aparelho de televisão; que 93,5% possuem aparelho celular, sendo que 80,2% possui acesso à internet; e que 52,1% possuem rádio.

Com relação aos usuários de internet, a pesquisa apontou que 84,5% da população é usuária de internet e que, destes, 95,5% faz uso diário3.

Importa destacar que não se trata de dizer que vivemos num país em que todos têm educação e discernimento para a adequada compreensão e uso das informações recebidas, mas sim que os casos analisados pelo Poder Judiciário o devem ser por uma perspectiva ampla, e não focada na simplista e limitada perspectiva de que o consumidor é absolutamente vulnerável, e que nessas situações as instituições financeiras "sempre" têm responsabilidade na ocorrência dessas práticas delitivas.

Isso porque, se o Judiciário, mesmo diante de um cenário informacional vasto, acessível, objetivo e contínuo, considerar que para a caracterização de responsabilidade das instituições financeiras basta a alegação do consumidor no sentido de que teria sido vítima de "golpe"/fraude por falha na prestação dos serviços, mesmo diante de circunstâncias em que se observa que ocorrência se deu por negligência da pessoa/consumidor por não guardar o dever/cuidado mínimo de cautela, a sociedade, como um todo, poderá ser colocada numa posição delicada e temerária, já que pessoas mal intencionadas e/ou orientadas, podem vir a utilizar de subterfúgios objetivando se esquivarem do cumprimento das obrigações assumidas.

Nesse sentido, lembrando que a vulnerabilidade do consumidor é presumida, e não absoluta, em "golpes"/fraudes como as citadas é importante que a análise do caso concreto leve em consideração as circunstâncias específicas que circundam os fatos narrados pelas partes, especialmente em situações em que a demanda é fundada somente na "palavra do consumidor"- já que, comumente, esses "golpes"/fraudes acabam não tendo testemunha do ocorrido -, de modo que a solução ocorra conforme a narrativa específica do caso concreto, e não com base numa presunção geral e cega de vulnerabilidade informacional do consumidor - que pode resultar em condenações desacertadas das instituições financeiras.

Isso porque, a título de exemplo, não é verossímil uma pessoa com idade entre 18 e 50 anos; plenamente capaz para os atos da vida civil; ativa no mercado de trabalho; moradora de uma grande região metropolitana; usuária de internet; e com, no mínimo, ensino fundamental, alegar que é vulnerável em termos informacionais, e que desconhece as modalidades delitivas citadas, bem como as formas mínimas de prevenção (tais como não aceitar a ajuda de pessoas estranhas no quando do uso de caixas eletrônicos ou aplicativo de internet banking; conferir o valor da transação na maquineta de cartão; não fornecer dados pessoais para estranhos que não estejam devidamente identificados como colaboradores da instituição, entre outras), e que a responsabilidade é absoluta e exclusiva da instituição financeira.

Mediante simples reflexão, é possível concluir, nesse sentido, que, se acabar vítima, a pessoa o será por culpa própria em razão da inobservância do dever mínimo de cautela, não por falha na prestação dos serviços, já que, não é razoável alegação, por exemplo, no sentido de que não sabia que não deveria aceitar a ajuda ou transmitir informações a pessoas que não sejam colaboradores/funcionários da instituição financeira; ou que não sabia que o banco não solicita a retirada do cartão e da senha por meio de "motoboy"; que não conferiu, no visor da maquineta de cartão, o valor da transação, nem solicite a emissão do comprovante, entre outras situações em que a mínima cautela por parte da pessoa evitaria a ocorrência do delito.

Nesse sentido, cumpre destacar que, de acordo com Caio Mario da Silva, do conceito previsto no art. 9274 do Código Civil, extraem-se os seguintes requisitos:

i) em primeiro lugar, a verificação de uma conduta antijurídica, que abrange o comportamento contrário a direito, por comissão ou por omissão, sem necessidade de indagar se houve ou não o propósito de malfazer; ii) em segundo lugar, a existência de um dano, tomada a expressão no sentido de lesão a um bem jurídico, seja este de ordem material ou imaterial, de natureza patrimonial ou não patrimonial; iii) e em terceiro lugar, o estabelecimento de um nexo de causalidade entre uma e outro, de forma a precisar-se que o dano decorre da conduta antijurídica, ou, em termos negativos, que sem a verificação do comportamento contrário a direito não teria havido o atentado ao bem jurídico5.

Não é demais pontuar que, em termos de responsabilidade civil, mesmo nos casos de responsabilidade objetiva, a presença desses requisitos é indispensável.

Considerando as circunstâncias fáticas e jurídicas apresentadas, reflitamos: qual é a conduta omissiva ou comissiva da instituição financeira e o nexo causal com eventual dano sofrido por pessoa - conforme a acima descrita - que, espontaneamente, ao receber uma ligação telefônica, fornece informações e segue orientações dadas por terceiro estranha, sem antes fazer contato com a instituição pelos meios de comunicação oficiais? Ou, qual é a conduta omissiva ou comissiva da instituição financeira e o nexo causal com o dano sofrido por pessoa que entrega o cartão bancário - por vezes até com a senha -, a terceiro estranho, também sem antes sem fazer contato com a instituição? Em ambas as situações, qual é, objetivamente o fortuito interno apto a ensejar a responsabilização da instituição financeira?

Há muitos que objetarão argumentando que há "golpes"/fraudes que podem ter decorrido de vazamento de dados pessoais sigilosos, tais como nome, CPF, endereço, dados bancários, etc. - e, de fato, podem até ter razão em certa medida, já que, sabidamente, os dados de milhões de brasileiros circulam indevidamente no mundo digital. Entretanto, para fundamentar uma demanda e, especialmente, uma condenação judicial nesse sentido, deve haver a comprovação mínima de um evento específico que evidencie um vazamento de dados que se vincule ao "golpe"/fraude sofrida pela pessoa. A simples alegação genérica de responsabilidade da instituição financeira por suposto vazamento de dados, sem base fática concreta e probatória alguma, é vazia e não pode servir de alicerce para eventual condenação.

Pois bem, nas situações exemplificadas é evidente a negligência, a falta do dever mínimo de cautela por parte da pessoa/consumidor, e não falha na prestação dos serviços por parte da instituição financeira, o que enseja a incidência do art. 14, § 3°, inciso II, do CDC, que estabelece que o fornecedor não será responsabilizado quando provar a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

A produção de prova neste sentido demanda pesquisa e análise do perfil da pessoa/consumidor, devendo ser levado em consideração, primordialmente, as seguintes informações: idade; nível de educação formal; ocupação; região de residência; se possui redes sociais e se é ativo (a) nelas; se faz uso de aplicativo de internet banking; entre outras possíveis.

Aliado a isso, as instituições financeiras devem continuar investindo em orientações aos consumidores, e que criar um acervos das publicações, publicidades, reportagens, entre outras, especialmente daquelas veiculadas em massa nas mídias tradicionais (televisão e rádio) e na internet (site da instituição, reportagens, redes sociais, avisos no aplicativo de internet banking) para, quando o caso, serem utilizados como elementos probatórios, quando o caso, acerca do cumprimento do dever de informar na construção da defesa, de modo a evidenciar que tem adotado mecanismos para orientar os consumidores.

Tudo isso de modo a, de acordo com o caso concreto, evidenciar que a pessoa/consumidor não é vulnerável informacional com relação às modalidades delitivas, e que a instituição financeira adota as medidas cabíveis e pertinentes relativas ao dever de informar, e que, portanto, o suposto fato danoso narrado decorreu da inobservância do dever de cautela, que enseja caracterização da culpa exclusiva da pessoa/consumidor pelos prejuízos eventualmente suportados.

Nesse sentido, é importante que as instituições financeiras e o (a) magistrado (a) utilizem da hermenêutica jurídica criadora de significado jurídico, de modo que a narrativa apresentada seja adequada e concretamente analisada, e a legislação vigente interpretada e aplicada, de acordo com as circunstancias de mundo (sociais, econômicas, etc.) do momento em que os fatos ocorreram, a fim de que a solução do caso não destoe da realidade nele observa, e não se mostre ancorada na presunção geral e cega de vulnerabilidade do consumidor, que pode tornar a relação de consumo indevidamente desequilibrada em desfavor das instituições financeiras.

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1 Saiba mais sobre o modus operandi dessas modalidades acessando: https://www.policiacivil.sp.gov.br/portal/imagens/CRIMES%20CIBERN%C3%89TICOS%20-%20PERGUNTAS%20E%20RESPOSTAS%20V2.pdf

2 Disponível em: https://cetic.br/media/docs/publicacoes/2/20230825143720/tic_domicilios_2022_livro_eletronico.pdf. Acesso em 25 de setembro de 2023.

3 Ibidem

4 Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

5 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol. I. 26 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 554.

João Felipe Oliveira Brito

VIP João Felipe Oliveira Brito

Sócio no OBMA Advogados | Professor Universitário | Especialista em Direito Civil e Processo Civil e Mestre em Direito pela FMU.

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