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Marco temporal para aplicação de decadência ao crédito objeto de habilitação instaurada após a vigência da lei 14.112/20

O correto é contar o prazo decadencial a partir da vigência da lei 14.112/20, que inseriu o dispositivo, de forma a preservar a segurança jurídica e o direito adquirido do credor, o qual não pode ser punido por sanção que, até então, não vigorava.

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Atualizado em 30 de outubro de 2023 08:01

A Legislação de 2020 inseriu a regra para aplicação da decadência, de modo a autorizar a perda do direito material do crédito em casos que o credor apresente o pedido de habilitação, no prazo de três anos, após a decretação da quebra.

Com a aprovação da reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falência pela lei 14.112/20, muitas dúvidas surgiram quanto à correta aplicação das alterações trazidas. De acordo com o Art. 5º, caput, esta lei seria aplicada de forma imediata aos processos pendentes, respeitando as exceções expostas em seus parágrafos e incisos subsequentes.

Uma vez que nenhuma destas ressalvas diz respeito ao assunto a ser debatido no presente artigo, surge-se a dúvida: como aplicar o Art. 10, §° 10, texto inserido pela lei reformadora, que estabelece o prazo decadencial de 3 (três) anos, contados a partir da publicação da sentença de decretação da falência, para habilitação do crédito, tendo em vista, também, a regra imposta pelo Art. 5º, caput.

Em uma leitura preliminar dos textos legais em comento, pode-se chegar a uma interpretação equivocada. Analisando-os, entenderia-se que - em conformidade com o Art. 5º, caput, da lei 14.112/20 - o prazo decadencial supramencionado passaria a valer a todos os processos de falência em curso, mesmo àqueles decretados anteriormente à vigência da Lei reformadora.

Isso implicaria a seguinte situação: nos processos em que já havia sido decretada a quebra, credores que não habilitaram seus créditos no prazo de 3 (três) anos após a publicação da sentença teriam esse direito decaído, impossibilitando que possam perseguir o valor que lhe é de direito.

Para melhor entendimento, em um processo que teve sua falência decretada por sentença publicada aos 30/6/08, e que determinado credor ainda não havia postulado a habilitação de seu crédito até o início da vigência da lei reformadora - 23/1/21 - não teria mais o direito de habilitá-lo, uma vez que a decadência teria ocorrido já aos 30/6/11, nos termos do Art. 10, §° 10, da lei 11.101/05.

Indaga-se: poderia um credor ser surpreendido pela decadência, ao tentar habilitar seu crédito, por um prazo inexistente na data da sentença de quebra? Ou até mesmo, sob uma ótica de justiça e equidade, seria justo permitir que um credor que tenha habilitado seu crédito 5 (cinco) anos, por exemplo, após a decretação da falência, mas anteriormente à vigência da lei reformadora, tenha seu direito reconhecido, enquanto que outro credor seja prejudicado pela retroatividade da lei que impôs a decadência, novamente, até então inexistente? São sob essas questões que o presente artigo busca estabelecer um parâmetro para a aplicação correta do Art. 10, §° 10, da lei 11.101/05, levando em consideração a regra de direito intertemporal.

Uma primeira lição necessária para entendimento do tema é o conceito de direito adquirido. Como leciona Humberto Theodoro Júnior, Professor Titular Aposentado da Faculdade de Direito da UFMG e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual:

"Na ótica do direito intertemporal, fala-se em direito adquiridoo em função de ter sido ou estar sendo exercido por quem tenha poder de atuá-lo, mas em razão de já ter ocorrido o fato que, segundo a lei do tempo de sua ocorrência, se revelou idôneo a produzi-lo, embora não se tenha tido ocasião de fazê-lo valer, antes do advento de lei nova instituidora de regime jurídico diverso a seu respeito." (THEODORO JÚNIOR, 2015) (g.n.)

Com isso, entende-se que o conceito de direito adquirido é aquele que, mesmo que ainda não exercido, já pertence ao patrimônio jurídico de seu titular, e não é, apenas, uma mera expectativa de direito, de forma que devem ser, via de regra, "preservados e garantidos como exigência da segurança das relações jurídicas preexistentes, constitucionalmente protegida" (THEODORO JÚNIOR, 2015).

Já tendo como base o conceito de direito adquirido, necessária se faz a compreensão da diferença entre efeito retroativo e efeito imediato da lei, ponto crucial na lógica aqui debatida. Amparado pela doutrina clássica explicada pelo francês Paul Roubier, em seu livro "Les conflits de lois dans le temps", de 1929, Galeno Lacerda, Professor Catedrático de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da UFRGS, Doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra e fundador do Instituto Brasileiro de Direito Processual, em análise ao antigo Código de Processo Civil de 1976, examina a questão.

Segundo ele, é fundamental entender que a eficácia imediata da lei nova não se confunde com a retroatividade desta. A lei nova pode incidir imediatamente sobre as relações jurídicas preexistentes, entretanto, não pode fechar os olhos para os efeitos já produzidos por essas.

Isso porque "a aplicação imediata será sempre a regra de direito comum (ROUBIER, I/558). A retroatividade, ao contrário, não se presume; decorre de disposição legislativa expressa, exceto no direito penal, onde constitui princípio a retroação da lei mais benéfica, retroatividade da lei não pode ser presumida" (LACERDA, 1974).

Com isso, enxerga-se que as situações processuais constituídas pela lei anterior não pode ser atingida pela lei nova, de modo que o direito adquirido, ainda que não exercido, não seja ferido pela lei posterior.

Nesse ínterim, cumpre ressaltar que o processo é o meio pelo qual se busca a tutela jurisdicional mais justa (DINAMARCO, 2001), de modo que seria contra legem a retroatividade de lei nova para eliminar direito material já adquirido em conformidade com a legislação antiga, vigente à época desta relação jurídica.

É por essa vereda que o Art. 5º, inciso XXXVI,  da Constituição Federal garante que a lei não prejudicará o direito adquirido, bem como o Art. 14, do Código de Processo Civil.

Assim, em acordo com os conceitos aqui debatidos, volta-se a discussão: é possível punir um credor com a perda de seu direito de habilitar o crédito por sanção até  então inexistente, vez que a legislação anterior à Reforma de 2020 não punia sua inércia?

A reposta parece clara agora: aplicar o disposto no art. 10, § 10, ao pé da letra, ou seja, mesmo nos processos pendentes, eliminar o direito de habilitação pelo prazo decadencial de 3 (três) anos contados a partir da publicação da sentença de quebra, além de ser uma clara injustiça, desrespeitando a teleologia do processo descrita por Dinamarco, fere o conceito de direito adquirido, tão precioso ao ordenamento brasileiro, bem como vai em lado oposto às regras de direito intertemporal e irretroatividade da lei nova.

Por essa forma, entende-se que a aplicação correta do dispositivo para as falências decretadas anteriormente à reforma é contando o prazo decadencial de 3 (três) anos a partir do início da sua vigência legal do dispositivo reformador, eis que, dessa maneira, o direito adquirido seria preservado, eliminando a hipótese de punir aquele credor que não era punido pela lei antiga e assegurando seu direito.

É nessa intelecção que o Professor de Direito Comercial da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Marcelo Barbosa Sacramone, afirma que:

"A norma legal tem aplicação imediata, inclusive aos processos pendentes, por disposição expressa do art. 5º da Lei n. 14.112/2020. Por versar sobre direito material e não apenas direito processual, sua aplicação não poderá surpreender os credores com uma imposição de decadência até então inexistente. Como a não apresentação de habilitação não gerava decadência, não se pode punir com a perda do direito o credor que até então não sofria referida sanção pela inércia. Dessa forma, a melhor interpretação parece ser que o prazo decadencial de três anos somente começa, em relação às falências decretadas anteriormente, a partir do início da vigência da norma legal. (g.n.)

No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo aplicou o entendimento de que o prazo decadencial, de forma que, para a hipótese em evidência, conta-se a partir da vigência da lei reformadora:

"HABILITAÇÃO DE CRÉDITO (FALÊNCIA) Decisão judicial que julgou improcedente o incidente de habilitação de crédito, diante do reconhecimento de decadência Alegação de que, em que pese a aplicação imediata da Lei n. 14.112/2020, antes da vigência dessa lei, o § 10 do art. 10 da Lei 11.101/2005 não existia, e, portanto, para os processos em curso, o prazo de 3 anos previsto em referido parágrafo deve ser contado a partir da vigência da Lei que o criou, e não da data da publicação da sentença que decretou a falência Cabimento Hipótese na qual, inexistindo prazo e ausência de limite para que o credor resolvesse efetuar a busca de seu crédito, a solução correta é que o triênio previsto na legislação seja contado a partir da vigência daquele dispositivo Decadência afastada Decisão reformada Agravo de instrumento provido. DECURSO DO PRAZOPARA INDICAÇÃO DOS DADOS BANCÁRIOS IRRELEVÂNCIA Plenamente contornável a 'omissão', pagamentos dos credores com privilégio trabalhista que devem ocorrer tão logo definida a habilitação Pagamento preferencialmente antes dos pagamentos das classes subsequentes e mesmo que alguma outra classe tenha sido atendida, nada obsta que se proceda aos pagamentos dos titulares da classe trabalhista, antes de prosseguir-se com os demais pagamentos Agravo de instrumento provido. Dispositivo: deram provimento ao recurso, com observação." (AI- 2203807-44.2022.8.26.0000, RICARDO NEGRÃO)

"FALÊNCIA - Habilitação de crédito - Hipótese em que foi reconhecida a decadência nos moldes do art. 10, §10º, da Lei 11.101/05 Inadequação -Incidente ajuizado depois da entrada em vigor da Lei 14.112/2020 e alterações promovidas na Lei de Falências, contudo, relacionado à falência decretada antes da alteração legislativa - 'Tempus regit actum' - Sentença reformada - Recurso provido." (AI 2130741-31.2022.8.26.0000, J. B. FRANCO DE GODOI).

Transcreve-se trecho do venerando acórdão prolatado nos autos do agravo de instrumento 2203807-44.2022.8.26.0000:

 "em que pese a aplicação imediata da Lei n. 14.112/2020, antes da vigência dessa lei, o § 10 do art. 10, da Lei 11.101/2005 não existia, e, portanto, para os processos em curso, o prazo de 3 anos previsto em referido parágrafo deve ser contado a partir da vigência da Lei que o criou, e não da data da publicação da sentença que decretou a falência; (.) a solução correta é que o triênio previsto na legislação seja contado a partir da vigência daquele dispositivo".

Logo, conclui-se que errado seria a aplicação do prazo decadencial de 3 (três) anos, para os processos em curso, contados a partir da sentença de quebra, como determina o art. 10, § 10, da Lei 11.101/05.

Assim, escorado na doutrina e na jurisprudência, chega-se ao entendimento de que o correto é contar o prazo decadencial a partir da vigência da lei 14.112/20, que inseriu o dispositivo, de forma a preservar a segurança jurídica e o direito adquirido do credor, o qual não pode ser punido por sanção que, até então, não vigorava.

João Marcos dos Santos Ferreira Martins

João Marcos dos Santos Ferreira Martins

Advogado responsável pela área Reestruturação e Insolvência da MAA- Mazzotini Advogados Associados.

Felipe Mazzotini Ramos

Felipe Mazzotini Ramos

Colaborador na Mazzotini Advogados Associados na área de Reestruturação e Insolvência.

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