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A reforma do Código Civil e a sucessão do cônjuge

No Senado, em reunião presidida por Luis Felipe Salomão, relatórios parciais sobre a reforma do Código Civil foram apresentados, destacando a profunda reformulação do Direito das Sucessões, enfocando autonomia privada, tecnologias no testamento e direitos sucessórios de cônjuges e companheiros.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Atualizado em 22 de dezembro de 2023 14:42

Na última segunda-feira (18/12), em reunião no Senado Federal presidida pelo Ministro Luis Felipe Salomão, houve a apresentação, pelos grupos de trabalho, dos relatórios parciais à Comissão Especial para Reforma do Código Civil. Como relator da subcomissão de sucessões, coube-me coordenar os debates, ouvir os especialistas e compilar as sugestões recebidas no que tange ao Livro V da Parte Especial do CC.

A reforma do Direito das Sucessões será profunda, com ampliação dos espaços de autonomia privada na sucessão legítima, inclusão de novas tecnologias, especialmente no âmbito da sucessão testamentária, tornando o testamento um negócio jurídico mais acessível, introduzindo novas opções ao planejamento sucessório, além de simplificar e desjudicializar vários aspectos do inventário. Entretanto, o tema que mais demandou a atenção e o cuidado da subcomissão, até porque foi objeto do maior número de sugestões recebidas pelos canais de comunicação disponibilizados pelo Senado, foi a questão atinente aos direitos sucessórios de cônjuges e companheiros.

Como sabemos, o Código Civil de 2002 promoveu importantes inovações no direito sucessório, com destaque para a modificação da situação do cônjuge sobrevivente, que assumiu lugar de destaque, passando a concorrer na herança com os descendentes e ascendentes, inclusive no regime de separação absoluta de bens (art. 1.829), além de ostentar a qualidade de herdeiro necessário (art. 1.845).  Durante o período em que vigorou o Código Civil de 1916, o cônjuge era herdeiro exclusivamente da terceira classe, só era chamado a suceder na ausência de descendentes (herdeiros de primeira classe) e de ascendentes (herdeiros de segunda classe) e não havia direito concorrencial. Além disso, era herdeiro meramente facultativo, o que significava dizer que o cônjuge poderia ser excluído da sucessão por ato voluntário do testador.

Esses novos direitos atribuídos ao cônjuge (e, de quebra, ao companheiro, segundo alguns autores) não foram bem compreendidos pela sociedade. A concorrência na herança com descendentes e ascendentes (arts. 1.829, I e 1.837), e o lugar de destaque como herdeiro necessário (art. 1.845), pareceram incoerentes com a realidade atual de fluidez dos relacionamentos, de facilitação do divórcio e de prevalência das famílias recompostas no cenário das entidades familiares. A ideia de um "super cônjuge", protagonista da sucessão, era contemporânea da sociedade pré-divórcio, marcada pelo casamento indissolúvel, em que o integrante do núcleo familiar mais longevo era sempre o cônjuge, forçado a ficar ao lado do outro "até que a morte os separasse".     

As críticas ao protagonismo sucessório do cônjuge vêm de longe. Para José de Oliveira Ascensão, "esse grande reforço da posição sucessória do cônjuge surge paradoxalmente ao mesmo tempo que se torna o vínculo conjugal cada vez mais facilmente dissolúvel. A posição do cônjuge é concebida como uma posição mutável, mesmo precária. Aquele, porém, que teve a sorte de ocupar posição de cônjuge na altura da morte, esse é que vai ter uma muito privilegiada protecção sucessória. Suceder como cônjuge entra na aleatoriedade. Por outras palavras, a lei só se preocupa em favorecer o vínculo conjugal depois de ele estar dissolvido. Ironicamente, dizemos que a lei tende a conceber o casamento como um instituto mortis causa". (Direito civil - sucessões. 5. ed. rev. Coimbra Editora, p. 343).

Portanto, se havia um consenso entre os membros da subcomissão, era o de que as regras sobre a sucessão do cônjuge demandavam uma reforma estrutural, que o requalificasse e o reposicionasse em face dos demais herdeiros. A tentativa de empoderamento feita pelo legislador de 2002 não deu certo!

Restava definir quais seriam os pilares da reforma. E, muito cedo, dois pontos se sobressaíram, principalmente nas manifestações que nos chegaram por e-mail e presencialmente nas audiências públicas. O primeiro, no que toca à condição de herdeiro necessário, a restringir a liberdade do testador casado, constituindo forte amarra ao planejamento sucessório. E o segundo, a concorrência sucessória com descendentes e ascendentes, notadamente quando o casamento se dera sob o regime da separação convencional de bens. Ninguém entendia que a escolha do casal pelo regime de incomunicabilidade de bens não se estenderia para após a morte, muito menos se compreendeu a lógica do legislador em assegurar a concorrência justamente sobre os bens particulares, em relação aos quais o viúvo nada contribuiu. A situação torna-se ainda mais dramática nas famílias recompostas, em que o novo cônjuge, normalmente mais jovem ou com menos tempo de casamento, pode concorrer com os filhos unilaterais do falecido, sobre o patrimônio construído no relacionamento anterior ou adquirido por sucessão. Logo, a lógica do legislador de 2002, de assegurar a concorrência ao cônjuge desprovido de meação (quem tem meação não herda), também precisava mudar.

Sobre o primeiro ponto, a definição foi a de excluir o cônjuge do rol de herdeiros necessários, fazendo com que o casamento (ou a união estável) deixassem de constituir um óbice ao direito de dispor do próprio patrimônio para depois da morte. Propusemos nova redação ao art. 1.845, restrito, doravante, aos descendentes e ascendentes.  

Sobre o segundo ponto, no entanto, nenhuma das propostas de nova redação para o art. 1.829 nos pareceu satisfatória. Foram discutidas, essencialmente, três possibilidades.

A opção inicial era suprimir o direito concorrencial, retornando, o art. 1.829 do CC/02, à antiga redação do art. 1.603 do CC/1916, em que o cônjuge sobrevivente só seria chamado à sucessão legítima na ausência de descendentes e ascendentes. Alguns questionamentos se ergueram contra essa primeira alternativa. Sendo o direito de herança um direito subjetivo fundamental (CF, art. 5º, XXX), fazer retroceder o status sucessório do cônjuge implicaria violação ao princípio da vedação do retrocesso?1  A redução de direitos sucessórios impactaria muito mais as mulheres do que os homens, contribuindo para manter a desigualdade de gênero que ainda subsiste na sociedade brasileira?

A outra alternativa seria manter a concorrência sucessória, independentemente do regime de bens, afastando a confusa redação do inciso I do art. 1.829. Essa é a solução adotada no Código Civil Português e em quase todos os diplomas de língua portuguesa. O cônjuge concorreria sempre com descendentes e ascendentes, a não ser que viesse a ser afastado da sucessão por testamento ou renúncia. Com isso, se manteria o direito concorrencial, ao mesmo tempo em que se ampliaria a liberdade do autor da herança. Ocorre que essa proposta esbarrou em uma questão prática: poucas pessoas no Brasil possuem o hábito de testar. E não havendo testamento, o cônjuge concorreria com os descendentes mesmo no regime da separação convencional de bens, o que contrariava a principal reivindicação que chegara à comissão, ou seja, que o regime de separação de bens também produzisse efeitos para após a morte (independentemente de testamento).

Evoluímos, então, para a terceira alternativa: manter a concorrência sucessória, "salvo no regime de separação de bens". Se aprovada essa ideia, o direito concorrencial de cônjuges e companheiros somente existiria nos regimes comunitários e desde que o falecido não tivesse testado de outra forma.

Essa foi a proposta, ao final, acolhida no âmbito da subcomissão de sucessões e submetida, ato contínuo, à análise da relatoria geral e demais integrantes da comissão, pois, por um lado preserva o direito concorrencial, à luz do que fazem outros importantes Códigos Civis, afastando-o, no entanto, nos regimes de separação de bens, independentemente da sua exclusão por testamento ou renúncia. 

Por fim, um ponto precisava ser esclarecido, de forma a afastar idênticas controvérsias surgidas após a entrada em vigor do CC/02. Nos casos em que houvesse concorrência do cônjuge com descendentes e ascendentes, sobre qual monte aquela se daria? Isso porque, mesmo nos regimes de bens comunitários, podem existir bens particulares. Na comunhão parcial, por exemplo, são particulares todos aqueles bens anteriores ao casamento ou os adquiridos por doação e sucessão. Na comunhão universal, os cônjuges podem adquirir bens gravados com cláusula de incomunicabilidade. A concorrência, então, se daria sobre todo o patrimônio? Apenas sobre os bens particulares? Ou tão somente sobre os bens comuns?

A interpretação consolidada no STJ, sobre o art. 1.829, I, era a de que a concorrência se daria apenas sobre os bens particulares. Porém, essa lógica do "quem tem meação não herda" se contrapõe, exatamente, às aspirações da sociedade, que não consegue compreender por que razão alguém, que não participou da construção de um patrimônio, teria o direito de reparti-lo com os filhos daquele que o construiu, muitas vezes com a colaboração de outro parceiro afetivo?

E foi por essa razão que a subcomissão de sucessões propôs, para a discussão, o acréscimo de um polêmico parágrafo único ao art. 1.829, esclarecendo que a concorrência sucessória, quando houvesse, se daria sobre os bens comuns, e não mais sobre os bens particulares. Inverte-se, assim, a lógica da sucessão do cônjuge. Não se trata mais de assegurar herança a quem não tem meação, mas, sim, a quem contribuiu para formação do patrimônio hereditário.

Em conclusão, para que os cônjuges não concorram na herança dos filhos, estariam disponíveis no Código Civil (se a aprovada a sugestão) as seguintes possibilidades: a) casamento sob regime de separação de bens (convencional ou obrigatória); b) testamento; c) renúncia ao direito concorrencial. Não se valendo, os cônjuges ou companheiros, de nenhuma dessas possiblidades, vale dizer, nos casamentos em comunhão universal ou parcial, sem testamento ou renúncia ao direito concorrencial, o sobrevivente concorreria com descendentes e ascendentes exclusivamente sobre os bens comuns.

Estamos cientes de que talvez não seja a melhor proposta. Aguardamos que as discordâncias, que certamente virão e serão sempre bem recebidas, nos levem a novos caminhos e que possam, efetivamente, solucionar os problemas que envolvem a sucessão do cônjuge e do companheiro.

O relatório da subcomissão foi submetido à relatoria geral dos professores Flávio Tartuce e Rosa Nery os quais, sob a condição dos ministros Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Bellizze, haverão de aprimorar o texto sugerido, ou, ainda, apresentar outras alternativas para a pacificação dessa questão tão relevante para a sociedade brasileira.  

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1 Segundo Barroso e Barcellos, "a vedação do retrocesso propõe se possa exigir do Judiciário é a invalidade da revogação de normas que, regulamentando o princípio, concedam ou ampliem direitos fundamentais, sem que a revogação em questão seja acompanhada de uma política substitutiva ou equivalente". (BARROSO, Luís Roberto. BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Revista Interesse Público. n. 19, v. 5, p. 51-80, 2003)

Mário Luiz Delgado

Mário Luiz Delgado

Advogado fundador do escritório MLD - Mário Luiz Delgado Sociedade de Advogados. Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado. Presidente da Comissão de Direito de Família e das Sucessões do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família.

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