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O direito à cidadania comprometido pelos altos índices de desigualdade social, de gênero e racial no Brasil

O direito à cidadania deve ser garantido a todos da população brasileira como reflexo dos preceitos da Constituição Federal. No entanto, na prática, o exercício desse direito é prejudicado em decorrência de diversos fatores, que refletem na falta de acesso à órgãos públicos e à direitos básicos como educação, saúde e segurança.

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Atualizado em 28 de fevereiro de 2024 13:32

O direito à cidadania é um princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal brasileira, refletindo a promessa de igualdade e justiça para todos os cidadãos. No entanto, a realidade do Brasil revela uma lacuna significativa entre a teoria e a prática. A desigualdade social, de gênero e racial emerge como um obstáculo substancial, comprometendo o pleno exercício desse direito.

De acordo com Marshall (1967, p.76) "a cidadania é uma condição concedida àqueles que são membros de pleno direito de uma comunidade. Todos aqueles que têm o estado são iguais com respeito aos direitos e obrigações inerentes ao estatuto". Aplicando tal entendimento no contexto nacional, a cidadania é exercida no dia a dia de todo brasileiro e indica a organização igualitária da sociedade, em que todos os indivíduos são igualmente reconhecidos perante a lei e possuem os mesmos direitos e deveres, garantidos constitucionalmente. 

Nesse sentido, o reconhecimento do prejuízo ao exercício dos plenos direitos se dá de forma empírica, uma vez que acontecimentos do cotidiano das pessoas, culturalmente aceitos no meio social, interferem nesse complexo. 

O primeiro ponto a ser abordado é a desigualdade social, que se manifesta de maneira flagrante na distribuição desigual de recursos e oportunidades. A falta de acesso a órgãos públicos é mais pronunciada nas camadas mais vulneráveis da sociedade, relegando milhões de brasileiros a uma cidadania de "segunda classe". A disparidade na oferta de serviços básicos, como educação, justiça, saúde e segurança, perpetua um ciclo de marginalização que mina a base da cidadania. 

No que diz respeito à desigualdade de gênero, observamos que as mulheres enfrentam barreiras significativas para exercer plenamente seus direitos de cidadania. A disparidade salarial, a sub-representação nos cargos de liderança e a persistência da violência de gênero são apenas alguns exemplos das muitas formas pelas quais as mulheres são prejudicadas em razão do machismo. Esses fatores corroem os alicerces de uma sociedade justa e equitativa, indo contra as normas constitucionais que garantem a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres no Brasil.

A desigualdade racial, por sua vez, é uma ferida profunda que o Brasil ainda carrega. A população negra enfrenta discriminação sistêmica em várias esferas da vida, desde o acesso ao mercado de trabalho até o tratamento no sistema público de segurança. O direito à cidadania é, portanto, comprometido para milhões de brasileiros negros, que continuam a lutar por uma igualdade de oportunidades que deveria ser garantida na prática desde sempre.

Ao analisar as múltiplas faces e as dimensões da desigualdade, torna-se evidente que o direito à cidadania no Brasil é comprometido por uma teia complexa de fatores. A marginalização de certos grupos sociais não apenas viola os princípios fundamentais da Constituição, mas também perpetua um ciclo de exclusão que se estende por gerações.

Diante desse cenário, urge a necessidade de abordar essas questões de maneira sistemática, incluindo a promoção de políticas públicas, mecanismos legais e institucionais capazes de garantir a aplicação efetiva dos direitos individuais e coletivos consagrados na Constituição de 88. Nesse sentido, o poder legislativo já incrementou diversos dispositivos a fim de reparar tais desigualdades e promover a igualdade entre os cidadãos.

Dentre algumas medidas tomadas no âmbito legislativo para solucionar a problemática da desigualdade de gênero e racial, alguns dispositivos se destacam:

  1. Lei de cotas para mulheres nas eleições (lei 9.504/97), criada para promover a participação equitativa de mulheres na política e combater o fenômeno da sub-participação feminina nos poderes públicos, estabelece que os partidos destinem no mínimo 30% de suas candidaturas para mulheres nas eleições de vereadores e deputados;
  2. Lei Maria da Penha (lei 11.340/06), legislação criada para enfrentar as problemáticas crescentes de violência de gênero no Brasil, estabelece mecanismos de prevenção e punição à violência doméstica e familiar;
  3. Estatuto da Igualdade Racial (lei 12.288/10), lei criada com o intuito de combater a discriminação racial, determina medidas para garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades nos âmbitos da educação, saúde, cultura e trabalho;
  4. Lei de cotas (lei 12.711/12), dispõe que 50% das vagas nas universidades públicas sejam reservadas para negros, indígenas e pessoas com deficiência, promovendo a diversidade étnica-racial na graduação superior;
  5. Lei de igualdade salarial (lei 14.611/23), promulgada com o objetivo de erradicar a disparidade salarial entre homens e mulheres que desempenham as mesmas funções, assegurando que ambos recebam remuneração equivalente.

Além disso, cita-se o PL 787/15, que determina motivações de preconceito racial e sexual como circunstâncias agravantes de pena para qualquer tipo de crime; e o PL 4373/20 que tipifica como crime de racismo a injúria racial, propostos pelo Senador Paulo Paim (PT/RS), foram posteriormente aprovados nas duas casas do Congresso, e alteraram o DL 2.848/40 (Código Penal) em seus respectivos temas.

Ainda, outras medidas tomadas pelo Estado para a promoção da cidadania e garantia de outros direitos fundamentais são os programas voltados à população de baixa renda, como o "Bolsa Família" e o "Minha Casa, Minha Vida". Não obstante, a própria existência do Sistema Único de Saúde é uma política pública que viabiliza, em tese, o acesso à saúde por todas as parcelas da sociedade.

Portanto, a inclusão do feminicídio como tipo penal; a definição de injúria racial e a tipificação do crime de racismo; a instituição de cotas para pretos, pardos e indígenas e para pessoas de baixa renda para viabilizar o acesso desses grupos às universidades federais e cargos públicos; as constantes manutenções do valor do salário mínimo, que buscam preservar o poder de compra dos cidadãos ao longo dos anos, são exemplos de políticas afirmativas que demonstram o compromisso do Estado com o pleno exercício da cidadania. 

Com isso, o ordenamento brasileiro também se mostra em constante evolução na promoção da cidadania para os demais grupos vulneráveis da população, por meio não só de programas e políticas públicas, mas também de dispositivos normativos capazes de fomentar a participação integral dos indivíduos em todos os aspectos da vida civil.

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ratificado no Brasil por meio do decreto 592 de 6 de julho de 1992, dispõe em seu artigo 14 algumas garantias e deveres processuais e jurídicos, que se baseiam em:

"Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil."

Nesse sentido, as diversas carreiras da área são responsáveis por garantir e defender os direitos previstos nas leis. O acesso à justiça, o direito ao devido processo legal e o atendimento dos princípios constitucionais devem ser assegurados pelos profissionais do meio, como magistrados, advogados e procuradores. 

Inclusive, há uma série de medidas que viabilizem o acesso das pessoas ao Poder Judiciário, como o direito à gratuidade de justiça: a assistência judiciária e a defesa técnica gratuitas, exercidas por defensores públicos; dentre outras garantias processuais, como a celeridade, eficiência e tratamento igualitário entre as partes. 

Assim, resta claro a necessidade constante de acompanhamento dos poderes da União frente às necessidades da sociedade moderna. Sobre isto, diz o jurista Norberto Bobbio (2004, p. 96):

"[...] o que distingue o momento atual em relação às épocas precedentes e reforça a demanda por novos direitos é a forma de poder que prevalece sobre todos os outros. A luta pelos direitos teve como primeiro adversário o poder religioso; depois, o poder político; e, por fim, o poder econômico. Hoje, as ameaças à vida, à liberdade e à segurança podem vir do poder sempre maior que as conquistas da ciência e das aplicações dela derivadas dão a quem está em condição de usá-las. Entramos na era que é chamada de pós-moderna e é caracterizada pelo enorme progresso, vertiginoso e irreversível, da transformação tecnológica e, consequentemente, também tecnocrática do mundo."

Neste tocante, é essencial que a sociedade compreenda a extensão dos problemas gerados pela desigualdade e pressione por mudanças substanciais. O diálogo aberto e inclusivo sobre questões de gênero, raça e classe social é fundamental para criar uma consciência coletiva e uma base sólida para a transformação social, e posterior aplicação dos direitos garantidos constitucionalmente.

Portanto, o desafio do direito à cidadania no Brasil é profundo e multifacetado, exigindo uma abordagem abrangente e coordenada. A superação dos altos índices de desigualdade social, de gênero e racial é essencial para construir uma sociedade mais justa e equitativa, onde todos os cidadãos possam verdadeiramente desfrutar dos direitos consagrados pela Constituição Federal.

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BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 set. 1997. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm. Acesso em: 02 fev. 2024.

BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para prevenir e punir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 ago. 2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 02 fev. 2024.

BRASIL. Lei Nº 14.611 de 3 de julho de 2023. Dispõe sobre a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 jul. 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14611.htm. Acesso em: 02 fev. 2024.

BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 jul. 2010. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm. Acesso em: 02 fev. 2024.

BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 29 ago. 2012. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm. Acesso em: 02 fev. 2024.

BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 jul. 1992. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 02 fev. 2024.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 5. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 10ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

MARSHALL, Thomas Humphrey. (2001). Cidadania, classes sociais e status. 1967.

Elisa Borges das Neves Guimarães

Elisa Borges das Neves Guimarães

Estagiária do escritório Barreto Dolabella Advogados na área de propriedade intelectual e controladoria jurídica. É graduanda em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília (UniCEUB). Possui experiência em direito imigratório.

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